versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.41 no.2 São Paulo abr./jun. 2019 Epub 10-Jan-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0186
A lesão abdominal contusa em crianças geralmente envolve órgãos sólidos, como fígado e baço. Os rins são menos comumente lesados, estima-se que estejam envolvidos em cerca de 20% das crianças com lesão abdominal contusa1. O manejo ideal da lesão renal tem sido objeto de debate há muito tempo. O manejo cirúrgico para lesão renal de alto grau não demonstrou aumentar a recuperação e taxas paradoxalmente mais altas de nefrectomia são registradas na literatura. O manejo conservador é o padrão atual de tratamento adotado nas lesões viscerais abdominais e sólidas do fígado e do baço. Assim, há uma mudança geral com relação ao manejo não-cirúrgico da lesão renal, semelhante ao resultado bem-sucedido observado no manejo das lesões do fígado e do baço2.
A maioria das lesões de baixo grau do rim são eminentemente responsivas à observação sem intervenção. Entretanto, ainda precisamos investigar se o mesmo modo conservador pode ser extrapolado para as lesões de alto grau, que podem estar associadas a um estado crítico. Este estudo foi planejado para analisar os desfechos da lesão renal contusa de alto grau em crianças.
Uma revisão retrospectiva de prontuários foi realizada em nosso departamento (um hospital universitário de atendimento terciário), para identificar os dados das crianças admitidas com trauma renal de alto grau, de janeiro de 2015 a agosto de 2018. Resultados relevantes incluindo modo de lesão, parâmetros clínicos, achados de imagem, parâmetros laboratoriais, intervenção e desfecho foram anotados (Tabela 1). A classificação da lesão renal foi relatada de acordo com a Escala de Pontuação de Lesões da Associação Americana para a Cirurgia do Trauma (AAST)3. A permanência hospitalar incluiu observação com monitoramento rigoroso dos sinais vitais e medicamentos relevantes, como analgésicos e antibióticos endovenosos. Após a alta, as crianças foram acompanhadas em intervalos de 2 a 4 meses com exames de imagem e ambulatoriais.
Tabela 1 Dados das crianças com trauma renal de alto grau
Idade (Em anos) | Gênero | Lado | Modo da lesão | Grau da lesão | Intervenção | Lesão associada de outro órgão | Duração da internação hospitalar (Em dias) | Desfecho | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | 9 | F | Direito | Queda | 4 | nada | nada | 9 | Bom |
2 | 9 | F | Direito | Queda | 4 | Aspiração | nada | 16 | Bom |
3 | 5 | M | Direito | Queda | 4 | Dreno "pigtail" | nada | 28 | Bom |
4 | 11 | M | Esquerdo | AA | 4 | nada | Baço | 3 | Bom |
5 | 11 | M | Esquerdo | AA | 4 | nada | Baço | 14 | Bom |
6 | 7 | M | Direito | AA | 4 | nada | Fígado | 7 | Bom |
7 | 12 | F | Direito | Queda | 3 | nada | nada | 3 | Bom |
8 | 9 | M | Direito | Queda | 4 | Dreno "pigtail" | nada | 14 | Bom |
9 | 12 | M | Esquerdo | AA | 3 | nada | nada | 8 | Bom |
10 | 10 | M | Direito | Queda | 5 | nada | Baço | 25 | Bom |
11 | 11 | M | Direito | Queda | 4 | nada | nada | 14 | Bom |
12 | 2 | F | Direito | AA | 3 | nada | nada | 7 | Bom |
13 | 3 | M | Direito | AA | 3 | nada | nada | 4 | Bom |
AA - Acidente automobilístico
Um total de 13 crianças foi internado com lesão renal de alto grau (grau 3 e acima) durante o período do estudo, dos quais 9 eram meninos e 4 eram meninas, com idade variando de 2 a 12 anos. O modo mais comum de lesão foi queda em 7 crianças e acidente de trânsito em 6 crianças. Lesões de órgãos associados foram observadas em 4 de 12 crianças, das quais 3 tiveram lesões no baço (Figura 1) e uma delas sofreu uma lesão no fígado. Dez crianças tiveram lesão renal do lado direito e três tiveram lesão renal do lado esquerdo. Todos apresentavam história de trauma com dor abdominal seguida de vômito e hematúria. Em nosso estudo, a maioria foi de lesão de grau 4 em 8 casos, seguida por 4 crianças com lesão de grau 3 (Figura 2), e uma lesão de grau 5 (Figura 3). A média de permanência hospitalar foi de 11,7 dias (variação de 3 a 28 dias), 6 crianças apresentaram picos febris persistentes durante o período de internação, dos quais 3 necessitaram de intervenções e o restante melhorou espontaneamente. Transfusão de sangue foi realizada em 3 crianças devido à queda da hemoglobina, que se estabilizou após a transfusão inicial. No geral, apenas 3 das 13 crianças com lesão renal de alto grau necessitaram de intervenções, a saber, aspiração guiada por ultrassonografia em um e inserção de dreno pigtail em duas crianças. O aspirado resultante foi de urina em todas as 3 crianças. Todas as crianças se recuperaram bem, sem a necessidade de novas intervenções ou procedimentos. As crianças foram atendidas no ambulatório em intervalos regulares de 3-4 meses por um período de pelo menos 1 ano após o trauma, após o qual o acompanhamento continuou anualmente.
Crianças estão sob maior risco de trauma renal devido às diferenças anatômicas exclusivas em comparação aos adultos. Em crianças, certas características anatômicas as tornam mais expostas e vulneráveis a lesões, rins maiores em relação ao tamanho do corpo da criança, rins posicionados mais abaixo no abdômen e menos protegidos por causa de menos gordura peri-renal, musculatura da parede abdominal mais fraca, e uma caixa torácica menos calcificada. Além disso, a cápsula renal e a fáscia de Gerota são menos desenvolvidas que nos adultos, criando um potencial maior de laceração parenquimal, sangramento não confinado e extravasamento urinário. Mecanismos de lesão renal contusa incluem acidentes com veículos motorizados/pedestres (60%), quedas (22,5%), lesões esportivas (10%), agressão (3,5%) e outras causas (4%)4.
Em contraste com os adultos, a hematúria em crianças é um sinal pouco confiável na determinação da necessidade de rastrear lesões renais. Em alguns estudos, não há evidência de hematúria macroscópica ou microscópica em até 70% das crianças com lesão renal de grau 2 ou superior. Como as características clínicas podem não ser uma indicação confiável da gravidade da lesão visceral, um protocolo de imagem por ultrassonografia e tomografia computadorizada com contraste deve ser seguido para evitar atraso no diagnóstico de lesão renal5.
A maioria das lesões renais isoladas pode ser classificada como lesões relativamente pequenas. A mortalidade associada a um trauma renal isolado é rara, e é mais frequentemente atribuída aos efeitos combinados de um grande trauma multissistêmico. O objetivo final do manejo da lesão renal é maximizar o parênquima renal funcional e minimizar a morbidade do paciente. Os avanços no estadiamento radiográfico na avaliação da gravidade da lesão renal ajudam a prognosticar e planejar com precisão as estratégias de manejo.1,2
As lesões renais são classificadas em uma escala de I a V, variando de menor (grau I) até mais complexa (grau V) de acordo com o AAST. Tradicionalmente, as lesões grau I a grau III foram tratadas com sucesso de forma conservadora, enquanto as lesões grau V são submetidas à exploração e reparo cirúrgico. Para pacientes com lesão renal grau IV, o papel e o momento da intervenção cirúrgica, endourológica e radiográfica são menos estabelecidos e permanecem controversos.6 No entanto, dados de estudos recentes sugerem tratamento conservador, mesmo para o trauma renal contuso pediátrico de alto grau. As taxas de manejo bem-sucedidas variam de 40 a 84%.7 Quando o traumatismo contuso é acompanhado por extravasamento urinário significativo, intervenções como drenagem percutânea, aspiração guiada e implante de stent interno podem ser necessárias para lidar com as complicações causadas pelo extravasamento de urina. Pelo contrário, a maioria das explorações cirúrgicas de acordo com o manejo contemporâneo de trauma renal de alto grau resultou em nefrectomia. Quando possível, o manejo conservador em casos semelhantes resultaria em aumento das taxas de resgate e subsequente preservação renal.8
No presente estudo, a maioria foi de lesões renais grau 4, com queda como o modo comum de lesão. Todas as crianças estavam hemodinamicamente estáveis. Excluindo-se três crianças que foram submetidas a intervenção na forma de inserção de drenos pigtail e aspiração percutânea para aumento progressivo do urinoma perinéfrico e febre alta, nenhum requereu intervenção cirúrgica importante. Além disso, todos eles estavam indo bem no acompanhamento após o trauma.
As consequências a longo prazo não foram abordadas em nosso estudo, devido ao acompanhamento contínuo dessas crianças. Tem sido proposto que o início da hipertensão e as funções renais alteradas são consequências de traumas renais anteriores de alto grau.9,10
Embora o número de pacientes neste estudo fosse pequeno, o estudo ganhou significância devido à incidência incomum de trauma renal de grau importante em crianças.
Avanços na imagem, melhorias na monitorização hemodinâmica, sistemas validados de pontuação de lesão renal e detalhes precisos sobre os mecanismos de lesão permitem estratégias bem-sucedidas de manejo conservador para a preservação renal. O tratamento não-cirúrgico pode ser recomendado com segurança em crianças com trauma renal de alto grau, desde que não haja hemorragia contínua e haja estabilidade hemodinâmica. A intervenção seletiva na forma de drenagem percutânea pode ser necessária em uma minoria de pacientes, para ajudar a acelerar a resolução completa do vazamento de urina quando o traumatismo contuso for acompanhado de extravasamento urinário significativo.