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Trombo Gigante em Átrio Esquerdo com Vascularização Coronária Dupla

Trombo Gigante em Átrio Esquerdo com Vascularização Coronária Dupla

Autores:

Ciambelli Giuliano Serafino,
Mariana Lins Baptista,
Vitor Emer Egypto Rosa,
Antonio Sérgio de Santis Andrade Lopes,
Tarso Augusto Duenhas Accorsi,
Flávio Tarasoutchi

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.104 no.2 São Paulo fev. 2015

https://doi.org/10.5935/abc.20140128

Introdução

A doença valvar reumática, sobretudo a estenose mitral (EM), e fibrilação atrial (FA) são os principais fatores relacionados à formação de trombos em átrio esquerdo (AE)1‑6. A incidência pode variar de 16 a 64%, sendo o apêndice auricular esquerdo o sítio mais comum1,7.

A embolização sistêmica é responsável por 10 a 45% das complicações, sendo a apresentação clínica mais frequente1. Apesar de rara, a obstrução mecânica da valva mitral pelo trombo deve ser lembrada por ser potencialmente grave, principalmente naqueles portadores de EM prévia. As manifestações clínicas desta condição são variadas, apresentando desde piora de classe funcional (NYHA) ao choque cardiogênico2.

O trombo atrial esquerdo relacionado à EM, mais raramente, pode apresentar-se como uma grande e organizada massa com características indistinguíveis de tumores vascularizados, principalmente o mixoma atrial. Características clínicas e ecocardiográficas podem não ser suficientemente específicas para diferenciá-los com segurança e, muitas vezes, exames adicionais se fazem necessários7.

Relata-se o caso de uma paciente portadora de EM reumática moderada e FA sem anticoagulação, com grande trombo organizado em AE mimetizando tumor atrial, com difícil diferenciação clínica pelos exames de complementares.

Relato do Caso

Paciente do sexo feminino, 57 anos, com quadro de dispneia, evoluindo para ortopneia, dispneia paroxística noturna e edema de membros inferiores há dois meses. Era portadora de valvopatia reumática diagnosticada há sete anos, FA permanente sem anticoagulação e tabagista. Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, frequência cardíaca de 44 bpm, pressão arterial de 150 x 80 mmHg, ausculta cardíaca com primeira bulha hiperfonética, segunda bulha normofonética, presença de estalido de abertura próximo à segunda bulha, sopro diastólico em ruflar 2+/6+ em área mitral e ausculta pulmonar com crepitação fina em ambas as bases. O eletrocardiograma apresentava ritmo de FA. A radiografia de tórax demonstrava congestão pulmonar bilateral e índice cardiotorácico aumentado. O ecocardiograma transtorácico mostrou valva mitral com fusão comissural, espessamento de suas cúspides e redução da abertura valvar, gradiente diastólico médio AE-VE de 4 mmHg e máximo de 16 mmHg, com área valvar de 1,2 cm2, compatíveis com comprometimento reumático moderado. Foram descritos AE de 51 mm e presença de imagem hiperecogência estendendo-se do teto à parede lateral do AE, com medidas de 65 x 54 mm (Figura 1A e B). Existia ainda hipertensão arterial pulmonar grave (PSAP 66 mmHg) e aumento importante de câmaras esquerdas, hipertrofia excêntrica e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo (fração de ejeção de 35%) com hipocinesia difusa.

Figura 1 A) Janela ecocardiográfica apical 4 câmaras demonstrando extensa massa em AE com dimensões de 65 x 54 mm; B) Janela ecocardiográfica apical 4 câmaras demonstrando extensa massa em AE; C) Cineangiocoronariografia com incidência oblíqua anterior direita demonstrando massa delimitada com circulação coronariana esquerda (seta); D) Cineangiocoronariografia com incidência oblíqua anterior direita demonstrando circulação coronariana direita para massa atrial (seta). 

A paciente foi então submetida a um cateterismo cardíaco, que afastou lesões coronarianas obstrutivas e evidenciou presença de extensa vascularização da massa atrial com irrigação proveniente das coronárias esquerda (Figura 1C) e direita (Figura 1D). A ressonância nuclear magnética do coração evidenciou aumento importante de AE, com paredes espessadas e imagem compatível com volumoso trombo aderido às suas paredes (teto, assoalho e parede lateral), além de realce positivo parietal difuso, compatível com hipertrofia e fibrose atrial, provavelmente associado à EM. Entretanto, na interface entre o trombo e a parede lateral do AE havia perfusão positiva, não podendo afastar outros processos expansivos da parede atrial. O realce tardio no ventrículo esquerdo foi negativo.

Considerando a presença de imagem em AE em paciente com EM moderada e FA sem anticoagulação, levantou-se a hipótese de trombo gigante. Pela progressão dos sintomas, tamanho do trombo e risco de embolização ou obstrução mecânica da valva mitral, optou-se pelo tratamento cirúrgico.

A paciente foi submetida à cirurgia, sendo retirada a massa que se apresentava com coloração vermelha, de consistência macia e friável, confirmando diagnóstico de trombo gigante de origem em aurícula esquerda e acometimento de toda a parede posterior do AE, com peso de 80 gramas (Figura 2A e B). Foi realizada ainda comissurotomia anterior e posterior da valva mitral. O ecocardiograma transtorácico pós-operatório evidenciava valva mitral com gradiente diastólico médio AE‑VE de 4 mmHg e máximo de 12 mmHg, com área valvar de 1,6 cm2. Existia ainda disfunção sistólica (FE 42%) decorrente de hipocinesia difusa. A paciente teve boa evolução no pós-operatório e recebeu alta hospitalar assintomática, em anticoagulação com varfarina.

Figura 2 A) Vista cirúrgica da massa após abertura de átrio esquerdo (seta); B) Trombo extraído do átrio esquerdo com peso de 80 gramas. 

Discussão

A EM, com seu marcado aumento atrial, predispõe à FA em 40 a 75% dos pacientes sintomáticos e sua ocorrência aumenta com o avançar da idade e com o grau de obstrução valvar3,4,8. Nessa condição, a estase sanguínea no apêndice atrial esquerdo e AE favorece a formação de múltiplos trombos nessas áreas, sendo muito importante a sua identificação pelo risco de embolização sistêmica e, menos frequente, de obstrução mecânica valvar2,8.

Neste caso, a massa atrial estava relacionada à EM com FA sem anticoagulação e ao aumento do AE, sendo diagnosticada como trombo pelo ecocardiograma. Entretanto, o achado de vascularização da massa no cateterismo pré-operatório gerou dúvidas quanto à natureza da massa. A descoberta de grande massa em AE no ecocardiograma obriga o clínico a fazer a diferenciação entre mixoma cardíaco e trombo, as entidades mais comuns nos casos de massas redondas nessa câmara8.

O mixoma localiza-se no AE em 90% dos casos e também existem inúmeros relatos de vascularização anormal de origem coronariana nesses tumores, constituindo-se assim como o principal diagnóstico diferencial4. O diagnóstico preciso é importante pelas diferentes propostas terapêuticas. O mixoma requer a ressecção cirúrgica, enquanto o trombo pode ser resolvido com a anticoagulação3. A ressonância nuclear magnética tem um importante papel nessa diferenciação, entretanto, o trombo quando organizado pode adquirir as mesmas características da imagem do mixoma4. Assim, a presença de vascularização não é patognomônica de mixoma atrial e não pode, isoladamente, ser usada para distinguir um mixoma de um trombo.

Os trombos gigantes, que se desenvolvem no interior da câmara atrial, geralmente são imóveis, bem organizados e fibróticos, com íntima relação com a parede. Eles possuem uma resposta desfavorável à terapia trombolítica, além desta não apresentar segurança pelo alto risco de embolização sistêmica9. Os raros casos descritos na literatura sugerem que a remoção cirúrgica seja o tratamento de escolha2,10.

A obstrução mecânica da valva mitral é rara, porém potencialmente grave, principalmente em portadores de EM prévia. Neste caso, a paciente era portadora de EM moderada sintomática há dois meses (NYHA III) e hipertensão arterial pulmonar (PSAP 66 mmHg), condições suficientes para indicação do tratamento cirúrgico. Somava-se à indicação, a presença de grande massa em AE, que além de poder ter contribuído para os sintomas apresentados pela paciente, acrescentava risco de embolização sistêmica. Em relação à disfunção ventricular esquerda, foram afastadas demais etiologias, podendo tal disfunção ser justificada pela redução da pré-carga e da alteração da geometria ventricular devido à calcificação e imobilidade do anel valvar mitral11,12.

Na literatura, os achados angiográficos de neovascularização ou formação de fístula das artérias coronárias para o AE têm sido, ocasionalmente, descritos em associação com trombo atrial em pacientes com EM3,4,9. Na maioria das vezes, a irrigação desses trombos organizados origina-se da artéria circunflexa, sendo extremamente rara a origem dupla da irrigação pelas coronárias esquerda e direita9, como visto nesse caso.

A EM e a FA são os principais fatores relacionados à formação de trombos em AE, que muitas vezes são indistinguíveis de tumores vascularizados. Apesar de a paciente ter substrato trombogênico suficiente, os exames subsidiários, principalmente o achado angiográfico pré‑operatório, trouxeram essa dúvida diagnóstica. A cirurgia mostrou-se a melhor estratégia tanto na abordagem diagnóstica quanto terapêutica. Esse caso remete ao diagnóstico de trombo atrial esquerdo gigante com vascularização coronária dupla, configurando o segundo relato mundial e o primeiro relato brasileiro.

REFERÊNCIAS

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