versão impressa ISSN 1677-5449versão On-line ISSN 1677-7301
J. vasc. bras. vol.14 no.2 Porto Alegre abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1677-5449.0065
A Doença de Behçet é uma vasculite multissistêmica de etiologia desconhecida, que afeta tipicamente adultos jovens dos 20 aos 40 anos, especialmente a população da região mediterrânea e os japoneses. É caracterizada por úlceras orais recorrentes e manifestações sistêmicas, que incluem úlceras genitais, lesões cutâneas, artropatia e doença ocular, neurológica ou vascular1 - 6.
O envolvimento vascular ocorre em 23 a 50% dos pacientes, sendo mais frequente em pacientes homens e jovens, com início comumente tardio na evolução da doença1 , 7 - 13. A Doença de Behçet pode acometer vasos de todos os calibres (pequenos, médios e grandes) e tanto o sistema venoso como o arterial, sendo menos comum o acometimento arterial. As manifestações podem ser diversas, desde a trombose venosa e arterial até aneurismas aórticos e viscerais1 , 12.
Paciente do gênero masculino procurou o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, em 2008, aos 34 anos, com queixa de claudicação intermitente nos membros inferiores. Devido à história de tabagismo por 20 anos, sem comorbidades, firmou-se o diagnóstico de Tromboangeíte Obliterante e optou-se por tratamento clínico. Em 2009, apresentou piora da claudicação do membro inferior esquerdo. A arteriografia demonstrou oclusão de artérias tibiais anterior e posterior. Devido à oclusão de segmento extenso e à ausência de leito distal para enxerto, optou-se por simpatectomia lombar esquerda. Em 2012, procurou atendimento no Pronto Socorro, referindo dor em repouso, cianose fixa de pododáctilos e lesão trófica no membro inferior esquerdo. À aortografia, observou-se oclusão aórtica distal (Figura 1), sendo realizado enxerto aorto-bi-ilíaco com sucesso.
Em consulta de pós-operatório tardio, em março de 2013, paciente apresentava múltiplas úlceras orais (Figura 2), genitais (Figura 3) e lesões descamativas de pele (Figura 4). Nesse momento, foi aventada a hipótese diagnóstica de Doença de Behçet, sendo iniciado acompanhamento reumatológico e uso de colchicina, com remissão das lesões.
A patogênese da trombose vascular na Doença de Behçet ainda não está clara. Diversos estudos têm sido realizados e apontam resultados contraditórios. Infecções bacterianas e virais, mutação do fator V de Leiden, presença do gene HLA-B5, mutação do gene MEFV, hiper-homocisteinemia, deficiência de vitamina B12 e folato, aumento do fator de von Willebrand e trombomodulina são algumas das alterações pesquisadas2 , 3 , 7. Aventa-se a hipótese de haver diferentes alterações da coagulação de acordo com o grupo étnico estudado. Sabe-se, até o momento, que a trombose na Doença de Behçet é ocasionada por certos fatores trombofílicos, mas que tem como causa primária fatores associados à parede do vaso1 , 7 , 10. Shin-Seok Yang e colaboradores observaram elevação sérica de VHS (velocidade de hemossedimentação) e PCR (proteína C-reativa) em pacientes com acometimento arterial pela Doença de Behçet, assim como uma correlação de aumento de PCR plasmático e gravidade da doença5.
O acometimento arterial na Doença de Behçet é menos comum que o venoso, correspondendo a 1 a 7% dos pacientes5 , 7 , 8 , 10 , 14. Lesões arteriais periféricas ocorrem em 2,6%, segundo o estudo de Shin-Seok Yang e colaboradores5. Em 50% dos casos, ocorrem lesão arterial e lesão venosa concomitantes8 , 14. Costuma ser mais frequente em pacientes do gênero masculino e tabagistas7 , 8. Nível sérico elevado de endotelina-1 pode estar presente7.
Em geral, a doença arterial apresenta lesões únicas. Porém, a apresentação com lesões múltiplas pode ser também encontrada. Os sintomas da oclusão arterial podem ser de claudicação intermitente ou de isquemia crítica, dependendo da extensão das lesões e do tempo de evolução7.
O acometimento vascular de grandes vasos ocorre em até 35 a 39% dos pacientes5 , 14, envolvendo tipicamente as artérias pulmonares, a aorta, as artérias ilíacas, femorais ou poplíteas6 , 14. É uma das poucas manifestações da doença que estão associadas a sintomas sistêmicos e evidência laboratorial7. Em geral (33%), ocorre dentro dos primeiros cinco anos após o diagnóstico8 , 12. No entanto, em 7% a 30% dos pacientes, o envolvimento vascular ocorre antes do diagnóstico clínico da doença6 , 8.
Quanto ao tratamento, as indicações de cirurgia seguem as mesmas utilizadas para a doença arterial obstrutiva periférica de outras etiologias. Entretanto, devido ao risco aumentado de recorrência da doença, da trombose do enxerto e do aneurisma anastomótico, deve-se manter acompanhante estrito do ponto de vista vascular e reumatológico7. Existem controvérsias quanto ao melhor material a ser utilizado para o enxerto arterial, se protético ou venoso. Apesar de o enxerto venoso usualmente apresentar maior perviedade em longo prazo, na Doença de Behçet, pode ocorrer envolvimento concomitante venoso e prejudicar a qualidade do enxerto5.
O tratamento endovascular tem sido utilizado com maior frequência, quando possível tecnicamente, haja vista a redução de complicações pós-operatórias e a grande chance de recorrência do acometimento arterial nesses pacientes7 , 14.
Muitos autores sugerem o uso adjuvante de corticosteroides ou imunossupressores no período pós-operatório, assim como de anticoagulantes ou antiagregantes plaquetários, podendo reduzir o risco de oclusão do enxerto1 , 5 , 7 , 14 . Jayachandran e colobaroradores sugerem que pulsos de corticosteroides e ciclofosfamida são a melhor opção terapêutica na vigência de acometimento arterial agudo11.