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Tuberculose nos presídios brasileiros: entre a responsabilização estatal e a dupla penalização dos detentos

Tuberculose nos presídios brasileiros: entre a responsabilização estatal e a dupla penalização dos detentos

Autores:

Bernard Larouzé,
Miriam Ventura,
Alexandra Roma Sánchez,
Vilma Diuana

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.31 no.6 Rio de Janeiro jun. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311XPE010615

O risco de desenvolver tuberculose (TB) durante o encarceramento é considerável para os 580 mil detentos no Brasil 1, inclusive para aqueles que ainda aguardam julgamento (40% do total), frequentemente encarcerados nas mesmas condições que os condenados. A incidência de TB ativa nas prisões é cerca de vinte vezes superior à da população geral (Ministério da Saúde. Sistema de Informação de Agravos de Notificação. http://dtr2004.saude.gov.br/sinanweb/tabnet/dh?sinannet/tuberculose/bases/tubercbrnet.def, acessado em 27/Fev/2015) e rastreamentos de massa realizados em prisões das regiões Sul e Sudeste, onde as características de encarceramento são semelhantes às da maioria das prisões do país, mostraram que 5 a 10% dos detentos apresentam uma TB ativa 2,3.

Assim, a TB constitui, de fato, uma segunda pena para muitos detentos no Brasil. Esse alto risco de TB é partilhado com guardas, profissionais de saúde, visitantes e todas as outras pessoas que frequentam as prisões, além da possibilidade de disseminação da doença nas comunidades onde os detentos irão se inserir após o livramento.

Para explicar a hiperendemicidade da TB nas prisões, frequentemente invocam-se as características próprias dos detentos: sua origem, na maioria das vezes, de comunidades desafavorecidas com alta endemicidade de TB, a maior frequência de infecção pelo HIV e de uso de drogas na população carcerária do que na população em geral, além de antecedentes de encarceramento. Dessa forma, os presos poderiam ser considerados como os “principais responsáveis” pela situação caótica da TB nas prisões.

Entretanto, essa visão é equivocada, já que a transmissão da TB é predominantemente intrainstitucional como mostram diversos estudos. Uma pesquisa de epidemiologia molecular realizada em uma prisão do Rio de Janeiro apontou que a maioria dos casos de TB identificados estavam relacionados não à reativação de infecções anteriores, mas sim a infecções recentes por cepas que circulavam massivamente na prisão estudada 4. Essa conclusão, que é similar à de estudo de epidemiologia molecular realizado em Barcelona, Espanha 5, é corroborada por pesquisa em prisões de Mato Grosso do Sul, que demonstrou o aumento da taxa de infecção latente (teste tuberculínico positivo) de 5% ao ano em função da duração do encarceramento 6.

Todas as condições estão reunidas, na maioria das prisões brasileiras, para perpetuar a disseminação massiva de uma infecção de transmissão respiratória como a TB: o confinamento de grande número de casos, frequentemente bacilíferos, em celas na maioria das vezes coletivas (50 detentos ou mais), mal ventiladas, sem iluminação solar e superpopulosas (taxa média de ocupação: 160%) 1, associadas à insuficiência notória dos serviços de saúde penitenciária.

Para responder a essa situação, claramente de responsabilidade do Estado, o Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT) do Ministério da Saúde 7 recomenda, conforme normas internacionais, a detecção com base na demanda espontânea dos detentos, busca ativa sistemática entre ingressos, screening de massa periódico, supervisão do tratamento e informação e conscientização das pessoas privadas de liberdade e guardas, além de melhoria das condições ambientais 8.

Essas normas nacionais são apenas parcialmente aplicadas pelos estados, enquanto o número de detentos aumenta rapidamente (28% entre 2008 e 2013) 1. Nesse aspecto, mudanças na política criminal são de capital importância para limitar a população penal.

Os principais obstáculos para enfrentar essa situação são, de fato, políticos e sociais. A inércia do poder estatal é retroalimentada por um contexto social e cultural marcado por forte estigma, discriminação e preconceito em relação à população carcerária. Nesse contexto, a atuação do sistema de justiça é fundamental, especialmente num cenário preocupante, no qual observa-se a minimização da responsabilização jurídica do Estado em relação à integridade física, psicológica e moral dos presidiários. Nesse sentido, buscou-se identificar casos exemplares e atuais de como o Poder Judiciário vem tratando essa responsabilidade, considerando que a transmissão massiva da TB nas prisões é intrainstitucional.

Em outubro 2012, o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro (MPE) ingressou com ação coletiva contra o Estado do Rio de Janeiro após constatar a “queda nas taxas de detecção, cura e de oferta de consultas e exames a detentos tuberculosos a partir de 2010, com o aumento das taxas de mortalidade no sistema prisional9. A decisão liminar judicial determinou que o Estado do Rio de Janeiro providenciasse, no mínimo, 12 médicos capacitados no Hospital Sanatório Penal e o funcionamento pleno de laboratórios para os exames de tuberculose. O Estado do Rio de Janeiro recorreu alegando que medidas já tinham sido adotadas e, apesar da contestação do MPE, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) revogou a decisão liminar em maio de 2013. O processo continua no sentido de se estabelecer os deveres e responsabilidades estatais. Certamente será possível mensurar os danos em razão de medidas não adotadas oportunamente. O questionamento que permanece é se esse mesmo Tribunal, comprovado os danos e riscos à saúde dos detentos, reconhecerá o direito à indenização do cidadão por omissão e/ou a não efetividade das medidas adotadas pelos poderes públicos.

Entre os poucos pedidos individuais dessa natureza, há uma ação de indenização proposta pela mãe de um jovem presidiário, detido no Rio de Janeiro em 2006 e diagnosticado com tuberculose e gastrite em 2009. Alega que seu filho ficou sem assistência médica durante a reclusão, foi internato em 2010 e faleceu quatro dias após a internação. O TJRJ reconheceu o direito a um valor indenizatório por dano moral à genitora em razão do tratamento desumano, mas negou a concessão de pensão por morte. O argumento é que o detento não exercia atividade lícita para contribuir com o sustento do lar 10. A jurisprudência atual reconhece o direito dos pais à pensão indenizatória mesmo no caso de criança, e o não reconhecimento deste direito no caso em tela aponta uma injustificada discriminação na aplicação da lei civil, que não considerou sequer a possibilidade do exercício laboral no sistema penitenciário e após o cumprimento da pena e saída do jovem do sistema penitenciário.

A problemática também está em discussão no Supremo Tribunal Federal. O procedimento de repercussão geral em tramitação tem como objetivo dirimir divergências dos tribunais locais sobre pedidos judiciais de indenização por dano moral decorrente da excessiva população carcerária. Os argumentos contrários à indenização ressaltam: não ser aceitável a tese de que a indenização tem função pedagógica; não ser razoável indenizar individualmente, pois isto retiraria recursos para a melhoria do sistema, agravando a própria situação do detento; consideram que a precariedade dos presídios é resultante da escassez de recursos públicos, que pode ser agravada com a concessão de indenizações. Por fim, ressaltam que “em vez da perseguição de uma solução para alterar a degradação das prisões, o que acaba por se buscar é uma inadmissível indenização individual que arrisca formar um ‘pedágio masmorra’ ou uma ‘bolsa indignidade’11 (p. 300). E concluem que a fixação de uma indenização pecuniária individual não contribuiu para a melhoria do sistema prisional.

Os argumentos contrários são frágeis quando analisados na perspectiva dos direitos humanos, pois deixam de considerar a necessária interdependência dos direitos civis e sociais. Claramente a Constituição Federal de 1988 e as leis internacionais de direitos humanos não excluem a responsabilidade objetiva estatal pelos danos e riscos causados por sua atuação deficiente, não afastam o dever estatal por ausência de recursos orçamentários e garantem o direito à indenização individual como fundamental. Além disso, abre-se a possibilidade de mais uma condenação por violação de direitos humanos relacionada ao direito à saúde, como os precedentes de condenações do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos 12.

Diante da gravidade e natureza das violações de direitos no contexto carcerário, é certo que a condenação estatal em uma perspectiva exclusivamente individual é insuficiente. Mas a minimização da responsabilidade jurídica do Estado em relação à dimensão individual da integridade física, psicológica e moral dos presidiários, com a consequente relativização na aplicação da lei civil para este segmento, pode efetivamente perpetuar a desumanização e ampliar o rol de direitos violados.

Ao final desta reflexão, nossa preocupação inicial se alarga na medida em que tais entendimentos no âmbito judicial podem colocar em risco o Estado de Direito Democrático e reduzir as possibilidades dos cidadãos de garantia de seus direitos. Além disso, nos traz outros questionamentos. Qual será o próximo grupo a ser excluído do direito de receber indenização em face do Estado? Quais serão os efeitos dessa minimização dos deveres e responsabilidades estatais em relação às políticas e ações de saúde para todos nós?