versão impressa ISSN 1806-3713
J. bras. pneumol. vol.39 no.4 São Paulo jul./ago. 2013
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132013000400013
O câncer de pulmão (CP) é o tipo mais letal de câncer na população mundial e representa um importante problema de saúde pública. É a principal causa de morte por câncer no Brasil e no mundo, com 1,3 milhões de óbitos ao ano atribuídos ao CP mundialmente.( 1 ) A tuberculose é outra causa significativa de morbidade e mortalidade, especialmente em países em desenvolvimento.( 2 )
Tem sido sugerido que a inflamação e a fibrose pulmonar decorrentes da tuberculose podem induzir dano genético, podendo aumentar o risco de CP.( 3 - 5 ) A ocorrência aumentada de CP em pacientes com tuberculose também pode estar ligada à imunodepressão causada pela infecção.( 6 ) Por outro lado, a imunodepressão causada pelo câncer ou pela quimioterapia também pode aumentar a reativação de tuberculose em pacientes com neoplasias sólidas.( 7 )
A ocorrência de tuberculose pulmonar e CP no mesmo paciente, simultaneamente ou não, tem sido descrita em diversas séries de casos e estudos de caso-controle.( 8 - 13 ) A associação entre essas duas doenças é importante, já que ambas são bastante prevalentes e acarretam grande impacto na saúde pública. Além disso, considerando que um estudo( 10 ) demonstrou que a associação entre tuberculose e CP varia em diferentes grupos étnicos e também em diferentes regiões, seria importante conhecer as características desses casos em nosso meio. Portanto, o objetivo do presente estudo foi descrever as características clínicas de pacientes com tuberculose pulmonar e CP.
Trata-se de um estudo transversal com coleta de dados de forma retrospectiva, realizado com o objetivo de determinar as características de pacientes com tuberculose e CP atendidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), na cidade de Porto Alegre, sul do Brasil. O HCPA é um hospital geral, terciário e universitário com 750 leitos e aproximadamente 30.000 hospitalizações/ano. O Comitê de Ética do HCPA aprovou o acesso aos registros dos pacientes. Foi aprovada a dispensa do consentimento livre e informado, e os investigadores assinaram um termo de confidencialidade.
Foram incluídos no estudo pacientes com diagnóstico de tuberculose e CP, seja concomitante, seja com um dos diagnósticos antecedendo o outro. Foi realizada uma busca nos ambulatórios de pneumologia para localizar os pacientes com tuberculose e CP, e o prontuário eletrônico desses pacientes foi revisado. Um formulário padronizado foi preenchido para cada paciente incluído no estudo. Foram coletados dados demográficos, dados referentes ao diagnóstico de tuberculose e de CP, assim como resultados de provas de função pulmonar.
O diagnóstico de tuberculose pulmonar seguiu os critérios estabelecidos em um consenso( 14 ): detecção de BAAR pela coloração de Ziehl-Neelsen (duas amostras positivas); detecção de BAAR pela coloração de Ziehl-Neelsen (uma amostra positiva e uma cultura positiva para Mycobacterium tuberculosis); detecção de BAAR pela coloração de Ziehl-Neelsen e achados radiológicos compatíveis com tuberculose pulmonar; somente uma cultura positiva para M. tuberculosis; ou presença de achados epidemiológicos, clínicos e radiológicos compatíveis com tuberculose pulmonar, associados com uma resposta favorável ao tratamento com tuberculostáticos. O diagnóstico de CP foi baseado em resultados de exames anatomopatológicos.
Os diagnósticos de CP e tuberculose foram considerados da seguinte maneira: simultâneos – quando o diagnóstico de tuberculose e CP foi simultâneo ou com uma diferença < 2 meses entre os dois diagnósticos; sequencial (CP primeiro) – quando a tuberculose foi diagnosticada ≥ 2 meses após o diagnóstico de CP e dentro de 12 meses do término do tratamento de CP; e sequencial (tuberculose primeiro): quando o CP foi diagnosticado ≥ 2 meses após o diagnóstico de tuberculose, indefinidamente, pela possibilidade de câncer de cicatriz.( 10 , 15 , 16 )
Os dados foram digitados em planilhas do programa Microsoft Office Excel, sendo processados e analisados com auxílio do programa Statistical Package for the Social Sciences, versão 18.0 (SPSS Inc., Chicago, IL, EUA). Foi realizada uma análise descritiva das variáveis em estudo. Os dados quantitativos são apresentados como média ± dp. Os dados qualitativos estão expressos em n (%).
Foram incluídos no estudo 24 pacientes com diagnósticos de tuberculose e CP no período entre 2009 e 2012. As principais características dos pacientes estão demonstradas na Tabela 1. Dos 24 pacientes, 10 tiveram o diagnóstico simultâneo de tuberculose e CP e 14 foram primeiramente diagnosticados com tuberculose. A mediana do tempo entre os diagnósticos foi de 5 anos (variação interquartil:1-30 anos).
Tabela 1 Principais características dos pacientes.a
Características | Resultados |
Sexo masculino | 14 (58.3) |
Idade, anosb | 62.8 ± 10.6 |
Raça branca | 20 (83.3) |
Tabagismo ativo | 11 (45.8) |
Ex-tabagistas | 11 (45.8) |
História de contatos de TB | 3 (12.5) |
História familiar de CP | 3 (12.5) |
Momento dos diagnósticos | |
TB e CP simultâneos | 10 (41.7) |
TB antes do CP | 14 (58.3) |
CP antes da TB | 0 (0.0) |
Tipo de CP | |
Adenocarcinoma | 14 (58.3) |
Carcinoma epidermoide | 6 (25.0) |
Outros | 4 (16.7) |
aTB: tuberculose; e CP: câncer de pulmão. Valores expressos em n (%), exceto onde indicado.
bValor expresso em média ± dp
Três pacientes (12,5%) referiram história de tuberculose duas vezes. O diagnóstico da tuberculose foi realizado através de baciloscopia de escarro espontâneo, em 3 pacientes; cultura de escarro espontâneo, em 2; baciloscopia de escarro induzido, em 2; cultura de lavado broncoalveolar (LBA), em 2; PCR positiva para M. tuberculosis no LBA, em 4; e achados clínicos e radiológicos compatíveis com tuberculose, em 11.
O tratamento da tuberculose foi realizado com o esquema rifampicina, isoniazida e pirazinamida, em 11 pacientes (45,8%); e esquema rifampicina, isoniazida, pirazinamida e etambutol, em 7 (29,2%), enquanto 6 pacientes (25,0%) não souberam informar ou não havia informações no prontuário sobre o esquema de tratamento utilizado. Apenas 1 paciente (4,2%) relatou abandono de tratamento da tuberculose, 3 (12,5%) evoluíram a óbito, e 16 (66,7%) tiveram alta por cura. Em 5 (20,8%) dos pacientes, não se obteve o desfecho do tratamento.
A média de idade dos pacientes no momento do diagnóstico de CP foi de 62,8 ± 10,6 anos. Dos 24 pacientes, 7 (29,2%) já apresentavam metástases à distância no momento do diagnóstico; desses, 71% tiveram o diagnóstico de CP e tuberculose simultaneamente. Os tratamentos realizados para CP foram radioterapia exclusiva, em 6 (25,0%); quimioterapia e radioterapia, em 4 (16,7%); cirurgia exclusiva, em 3 (12,5%); quimioterapia exclusiva, em 2 (8,3%); cirurgia e radioterapia, em 2 (8,3%); cirurgia e quimioterapia, em 2 (8,3%); e tratamento de suporte exclusivo, em 5 (20,8%).
No presente estudo, relatamos as características de 24 pacientes que apresentaram, simultaneamente ou não, tuberculose pulmonar e CP. O diagnóstico de tuberculose ocorreu antes do de CP na maioria dos pacientes e, em nenhum caso, o diagnóstico de CP ocorreu antes do de tuberculose. O carcinoma brônquico não pequenas células, em especial o adenocarcinoma, foi o tipo histológico mais comum.
A coexistência de tuberculose pulmonar e CP foi primeiramente descrita em 1810, sendo demonstrada histologicamente alguns anos mais tarde.( 9 ) Desde então, foram publicados diversos estudos sobre essa associação, em sua maioria séries de casos e estudos de caso-controle.( 8 - 13 ) Entretanto, os autores sempre questionaram se essa associação seria casual ou se poderia ser explicada por algum mecanismo biológico plausível. Uma hipótese seria que a inflamação associada com infecções pode contribuir para a carcinogênese.( 4 ) Espécies reativas de oxigênio ou nitrogênio produzidas por neutrófilos ativados podem se ligar ao DNA, induzindo dano genético e transformação neoplásica.( 17 , 18 ) De fato, já foi evidenciado que alterações no gene fragile histidine triad podem estar envolvidas na carcinogênese pulmonar em pacientes com tuberculose pulmonar crônica.( 19 - 21 ) Além disso, durante o reparo tecidual, há uma maior proliferação celular, angiogênese, e o epitélio é mais propenso a sofrer metaplasia. Ainda, os carcinógenos se concentram preferencialmente em locais de hiperatividade para induzir alterações neoplásicas.( 22 , 23 )
Os casos que descrevemos são semelhantes aos relatados em estudos prévios.( 8 - 13 ) O adenocarcinoma foi o tipo histológico mais frequente em nossa série de casos. Em uma meta-análise( 10 ) de 37 estudos de caso-controle e 4 estudos de coorte, a associação entre tuberculose e CP foi significativa com adenocarcinoma (risco relativo = 1,6), mas não com carcinoma epidermoide ou de pequenas células. Em uma série de casos de CP no Japão,( 24 ) o adenocarcinoma também foi o câncer mais comum. Outro estudo( 9 ) demonstrou que todos os carcinomas de cicatriz eram adenocarcinomas e, mesmo nos casos em que não havia proximidade entre a cicatriz e a neoplasia, esse ainda era o tipo histológico mais comum.
A grande maioria dos pacientes que descrevemos tinha história de tabagismo (ativo ou no passado). Apesar dos efeitos aditivos do tabaco como carcinógeno, a relação entre tuberculose pulmonar e CP persiste mesmo após controle para o tabagismo, com um risco até 2,5 vezes maior de câncer entre os pacientes com tuberculose.( 6 , 8 , 25 ) Uma meta-análise( 10 ) corroborou essa evidência, mostrando que a associação entre tuberculose e CP não era devida aos efeitos do tabagismo, pois, analisando apenas os pacientes não tabagistas, houve um aumento de 1,78 vezes no risco de CP entre os pacientes com tuberculose. Naquela mesma meta-análise, foi demonstrado que a associação entre tuberculose e CP não era decorrente do tempo de diagnóstico da tuberculose. Como os sintomas iniciais de CP podem ser confundidos com os sintomas de tuberculose pulmonar, os estudos incluídos na análise foram restritos àqueles em que a tuberculose foi diagnosticada há mais de 1 ano antes do câncer, para minimizar esse viés. Os estudos foram combinados de acordo com o tempo entre os dois diagnósticos (1-5, 6-10, 11-20 e mais de 20 anos). O aumento do risco de câncer foi maior nos primeiros 5 anos após o diagnóstico de tuberculose; entretanto, o risco permaneceu 1,99 vezes maior no tempo entre diagnósticos por mais de 20 anos. Isso foi observado em nossa amostra, visto que a mediana do tempo entre o diagnóstico de tuberculose e o de CP foi de 5 anos, com um intervalo interquartil de 1-30 anos. Outro estudo mais recente( 11 ) mostrou que o maior risco de CP era no período de 2 anos após o diagnóstico de tuberculose (OR = 5,01), mas permanecia elevado mesmo após 2 anos de diagnóstico (OR = 1,53).
Aproximadamente 30% dos pacientes apresentavam metástases à distância no momento do diagnóstico de CP. Desses, 71% tiveram o diagnóstico de CP e tuberculose simultaneamente. Outros autores também demonstraram em uma série de casos que 50% dos pacientes apresentaram CP em estádio IV.( 24 ) Como os sintomas iniciais dessas duas patologias se assemelham, deve-se considerar que pode haver atraso no diagnóstico de uma das duas e, consequentemente, com a apresentação de CP ou tuberculose em uma fase mais avançada.( 26 )
Não relatamos nenhum caso de CP diagnosticado antes da tuberculose pulmonar. Contrariamente, em um recente estudo de caso-controle retrospectivo,( 15 ) dos 36 pacientes com CP, 10 (27,8%) tiveram o diagnóstico de tuberculose concomitantemente com o de câncer, enquanto 26 (72,2%) tiveram o diagnóstico de tuberculose após o de câncer. Em uma série de casos japonesa,( 24 ) em 6 pacientes, o diagnóstico foi concomitante; em 5 casos, a tuberculose precedeu o CP; e, nos 5 restantes, o CP antecedeu a tuberculose. É possível que a tuberculose tenha sido mais frequentemente diagnosticada antes do CP devido ao viés de causalidade reversa, ou seja, um CP oculto pode reduzir a imunidade e levar à reativação da tuberculose latente. Sendo assim, a tuberculose pode se apresentar clinicamente antes do CP.( 16 , 19 )
Nosso estudo apresenta limitações que precisam ser consideradas. A principal é que os casos foram identificados retrospectivamente a partir de uma busca ativa no grupo de pacientes atendidos nos ambulatórios especializados em nosso hospital. Estudos retrospectivos correm risco de vieses de seleção (por perda de casos), bem como de aferição (dados obtidos de prontuários médicos). Há ainda que se considerar o viés de Berkson, em que é mais provável que os pacientes com um diagnóstico índice tenham a outra doença diagnosticada do que aqueles pacientes sem o diagnóstico índice. Por exemplo, pacientes com tuberculose, ao fazer radiografias de tórax para acompanhamento, podem ter o diagnóstico de câncer mais facilmente realizado do que pacientes sem o diagnóstico de tuberculose.( 27 ) Apesar disso, como a ocorrência simultânea ou não de tuberculose e CP pode ter características próprias conforme o grupo étnico e a região,( 10 ) torna-se relevante a descrição dos casos identificados localmente. Adicionalmente, a importância desses casos reside no fato de que pacientes com diagnóstico de tuberculose devem ser orientados a evitar ao máximo a exposição a carcinógenos pulmonares, como o tabagismo, que contribuiriam para um aumento substancial no risco de CP.
Em conclusão, no presente estudo demonstramos que a maioria dos pacientes com tuberculose e CP são tabagistas e que a tuberculose ocorreu tanto antes quanto simultaneamente ao diagnóstico de CP. O carcinoma brônquico não pequenas células, em especial o adenocarcinoma, foi o tipo histológico mais comum.