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Tuberculose renal em paciente com leucemia mieloide crônica tratado com imatinibe

Tuberculose renal em paciente com leucemia mieloide crônica tratado com imatinibe

Autores:

Abhilash Chandra,
Namrata Rao,
Kiran Preet Malhotra

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Nephrology

versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239

J. Bras. Nefrol., ahead of print Epub 27-Abr-2020

http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0123

INTRODUÇÃO

A leucemia mieloide crônica (LMC) é um distúrbio mieloproliferativo. Na LMC, a translocação cromossômica do gene BCR para o gene ABL produz a proteína quimérica BCR-ABL. O imatinibe, um medicamento amplamente utilizado no tratamento da LMC, inibe a atividade constitutiva da tirosina-quinase da proteína BCR-ABL.

Ainda hoje, a tuberculose (TB) é um dos maiores problemas de saúde da Índia. A incidência de TB na Índia é uma das mais altas do mundo: 2,15 milhões de casos de tuberculose foram notificados no país no ano de 2018 1. Baixo status imunológico é um dos mais importantes fatores de risco para o desenvolvimento da doença. Outros fatores de risco conhecidos incluem idade avançada, sexo masculino, diabetes mellitus, doença obstrutiva crônica das vias aéreas, doença renal terminal 2, doença hepática crônica e algumas neoplasias. A associação entre TB e LMC não ocorre regularmente. Silva et al. relataram prevalência muito baixa de TB em pacientes com LMC em comparação com outras neoplasias hematológicas (2,2%) 3.

O presente artigo apresenta um caso de LMC com TB disseminada, com manifestações de disfunção renal e sintomas pulmonares discretos, em que o medicamento terapêutico utilizado, o imatinibe, foi um fator contribuinte.

CASO

Um homem de 29 anos foi diagnosticado com LMC BCR-ABL positiva. O paciente encontrava-se em tratamento com mesilato de imatinibe (400 mg/dia) há cerca de dois anos (desde os 27 anos de idade). Três meses após o início do tratamento, a dose de imatinibe foi aumentada para 600 mg/dia. O paciente respondeu bem à terapia. A relação BCR-ABL/ABL (%) mostrou declínio gradual de 60,36% ao início do tratamento para 0,08% no momento da apresentação. Durante o tratamento, o paciente desenvolveu anorexia e náusea, que persistiram por dois meses, levando seu médico a realizar uma avaliação mais meticulosa. Pelos resultados da investigação, ele foi considerado anêmico (Hb-9g/dL). A contagem total de leucócitos e plaquetas estava normal. A creatinina sérica subiu para 1,99 mg/dL, a partir do valor basal de 1,1. Os resultados dos testes sorológicos para vírus da imunodeficiência humana e vírus da hepatite B e C foram negativos, enquanto testes de função hepática deram resultados normais. Urinálise revelou proteinúria 1+ com 20-25 hemácias por campo de alta potência e 4-5 leucócitos por campo de alta potência. A partir desses resultados, o paciente foi encaminhado ao departamento de Nefrologia. Em vista da deterioração da função renal, proteinúria e sedimentos urinários ativos, ele foi submetido a uma biópsia renal, que revelou nefrite intersticial granulomatosa (Figuras 1 e 2). Não foram observadas células positivas para CD117 ou mieloperoxidase no interstício (Figuras 2 e 3). A coloração de Ziehl-Neelsen foi negativa para AFB e o teste tuberculínico deu negativo. PCR do tecido renal foi positiva para DNA de M. tuberculosis. Uma amostra de urina submetida a cultura no sistema BACTEC MGIT deu resultado positivo. Foi realizada uma tomografia computadorizada do tórax para identificar a fonte primária de TB, que revelou uma área de colapso e consolidação no segmento posterior do lobo superior direito e no segmento lateral do lobo médio do pulmão direito. O segmento ápico-posterior do lobo superior esquerdo apresentou alterações cavitárias. Também foram observados vários linfonodos para-aórticos, pré-carinais e subcarinais aumentados. Apesar dos importantes achados da tomografia computadorizada, o paciente não apresentava sintomas relacionados ao sistema respiratório. Além disso, não se queixava de febre ou perda ponderal significativa. Ele nunca havia sido avaliado antes para tuberculose latente nem tinha histórico de tratamento para tuberculose. Foi iniciado tratamento antituberculínico com isoniazida, rifampicina, pirazinamida e etambutol. O paciente apresentou melhora sintomática e sua creatinina sérica se estabeleceu no patamar de 1,3 mg/dL. Foi dado prosseguimento ao tratamento com imatinibe à dose de 600 mg/dia. A terapia antituberculínica foi mantida por seis meses.

Figura 1 Seção de biópsia renal exibindo dois glomérulos normais e um esclerosado. Infiltrado linfocítico moderado pode ser observado no interstício com um granuloma (seta) e uma célula gigante de Langhans (asterisco). Coloração ácido periódico-Schiff, ampliação de 200x. 

Figura 2 Seção da biópsia renal sem célula CD117 positiva no interstício (diaminobenzidina, ampliação de 100 x). 

Figura 3 Seção de biópsia renal sem células positivas para mieloperoxidase no interstício (diaminobenzidina, ampliação de 100 x). 

DISCUSSÃO

A relação entre LMC e TB não foi totalmente elucidada. Enquanto alguns estudos relataram maior incidência de TB em indivíduos com LMC 4, outros não encontraram fortes evidências de tal associação 3. Possivelmente, diferenças entre os delineamentos dos estudos e variações regionais na incidência da doença contribuíram para os diferentes resultados.

Além de ser o tratamento de primeira linha para LMC, o imatinibe carrega consigo outras implicações imunológicas, incluindo efeito imunomodulador e diferentes vias para a modulação da função dos linfócitos T. O medicamento inibe a ativação e proliferação de linfócitos T induzidas por antígenos e inibe a fosforilação da ZAP70, um membro da família da tirosina-quinase, interferindo assim na cascata de sinalização relacionada ao receptor de linfócitos T. A produção de citocinas também é adversamente afetada 5. Além disso, foi demonstrado que o imatinibe causa acúmulo de células na fase G0/G1 do ciclo celular e inibe a hipersensibilidade do tipo retardado, levando a aumento no número de infecções 6. Contudo, esses efeitos podem ser revertidos com a interrupção do medicamento 6. O imatinibe também inibe a função das células dendríticas apresentadoras de antígenos, além da resposta positiva de células CD8T de memória 7. Redução dos níveis de imunoglobulina também é observada em pacientes tratados com imatinibe. Esse efeito é mais pronunciado naqueles com melhor resposta citogenética, o que pode ser devido à disfunção dos linfócitos B associada à inibição do ABL pelo imatinibe 8.

Considerando que nosso paciente respondeu bem ao imatinibe e estava em terapia de manutenção, o fator predisponente subjacente à sua TB ativa pode ter sido o próprio medicamento, por meio dos mecanismos detalhados acima.

A TB pode ser adquirida através da transmissão de uma pessoa com doença ativa ou iniciada a partir da ativação de infecção latente. As alterações imunológicas introduzidas pelo imatinibe podem servir de terreno fértil para a TB ativa por qualquer uma das vias. Embora casos semelhantes de TB tenham sido relatados em pacientes com LMC tratados com imatinibe 9,10, até onde sabemos acometimento renal não havia sido relatado até o momento. Daniels et al. 9 relataram três desses casos. Dois apresentavam TB pulmonar, enquanto outro apresentava uma massa paravertebral. A dose de imatinibe nesses casos variou de 400 a 800 mg/dia. Como no nosso caso, todos responderam bem à terapia antituberculínica. Pravin Salunke et al. 11 relataram outro caso de tuberculoma meníngeo em paciente com LMC em uso de imatinibe 400 mg/dia.

Dietz et al. 6 identificaram que a dose necessária para inibir a proliferação de linfócitos T é de 400 mg, valor inferior ao ministrado ao nosso paciente. Essa pode ser uma das razões por trás de sua suscetibilidade à infecção por TB e anergia ao exame antituberculínico. A redução na dosagem de manutenção do imatinibe também é uma opção viável nos pacientes que apresentam boa resposta na fase inicial do tratamento 12,13. Essa estratégia pode ajudar a eliminar alguns dos efeitos colaterais evidentes do fármaco. Como a rifampicina é um indutor da CYP3A4, a dose de imatinibe precisa ser aumentada em aproximadamente 50% 14. Contudo, no nosso caso a dose de imatinibe foi mantida a 600 mg/dia em função do baixo status patológico da LMC.

Foram descritas associações entre nefrite intersticial granulomatosa e antibióticos, analgésicos e infecções como tuberculose, infecções fúngicas, sarcoidose e granulomatose com poliangiíte 15. Em nosso caso, a positividade da PCR de tecido para DNA de M tuberculosis, da cultura de urina para M. tuberculosis e a boa resposta à terapia indicaram claramente a origem tubercular dos granulomas no tecido renal. A ausência de células positivas para CD117 e mieloperoxidase no interstício exclui a possibilidade de causa mielogênica para a nefrite intersticial relatada. Achados semelhantes em casos de tuberculose renal também foram relatados por Daher et al. 16

CONCLUSÃO

O presente caso levanta a hipótese de que o tratamento da LMC com imatinibe pode aumentar a suscetibilidade a infecções, incluindo TB, provavelmente afetando a imunidade adquirida por sua influência sobre linfócitos T específicos. A avaliação do risco de infecção por TB antes do tratamento com imatinibe pode ajudar na prevenção da doença. A apresentação clínica atípica de infecção por TB nesses casos requer alto grau de suspeita, principalmente em regiões endêmicas.

REFERÊNCIAS

1 Ministry of Health and Family Welfare (IND). TB India Report 2018: Central of Tuberculosis Division - Government of India [Internet]. India: Ministry of Health; 2018. Available from:
2 Hu HY, Wu CY, Huang N, Chou YJ, Chang YC, Chu D. Increased risk of tuberculosis in patients with end-stage renal disease: a population-based cohort study in Taiwan, a country of high incidence of end-stage renal disease. Epidemiol Infect. 2014 Jan;142(1):191-9.
3 Silva FA, Matos JO, Mello FCQ, Nucci M. Risk factors for and attributable mortality from tuberculosis in patients with hematologic malignances. Haematologica. 2005;90(8):1110-5.
4 Liu CJ, Hong YC, Teng CJ, Hung MH, Hu YW, Ku FC, et al. Risk and impact of tuberculosis in patients with chronic myeloid leukemia: a nationwide population-based study in Taiwan. Int J Cancer. 2015 Apr;136(8):1881-7.
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6 Dietz AB, Souan L, Knutson GJ, Bulur PA, Litzow MR, Vuk-Pavlovic S. Imatinib mesylate inhibits T-cell proliferation in vitro and delayed-type hypersensitivity in vivo. Blood. 2004 Aug;104(4):1094-9.
7 Sinai P, Berg RE, Haynie JM, Egorin MJ, Ilaria Junior RL, Forman J. Imatinib mesylate inhibits antigen-specific memory CD8 T cell responses in vivo. J Immunol. 2007;178:2028-37.
8 Steegmann JL, Moreno G, Aláez C, Osorio S, Granda A, Cámara R, et al. Chronic myeloid leukemia patients resistant to or intolerant of interferon alpha and subsequently treated with imatinib show reduced immunoglobulin levels and hypogammaglobulinemia. Haematologica. 2003 Jul;88(7):762-8.
9 Daniels JM, Vonk-Noordegraaf A, Janssen JJ, Postmus PE, Van Altena R. Tuberculosis complicating imatinib treatment for chronic myeloid leukaemia. Eur Respir J. 2009 Mar;33(3):670-2.
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11 Salunke P, Gupta K, Singla N, Singh H, Singh P, Mukherjee KK. Meningeal tuberculoma mimicking chloroma in a patient with chronic myeloid leukemia on imatinib. Neurol India. 2011;59:628-30.
12 Petzer AL, Fong D, Lion T, Dyagil I, Masliak Z, Bogdanovic A, et al. High-dose imatinib induction followed by standard-dose maintenance in pre-treated chronic phase chronic myeloid leukemia patients - final analysis of a randomized, multicenter, phase III trial. Haematologica. 2012 Oct;97(10):1562-9.
13 Faber E, Divoká M, Skoumalová I, Novák M, Marešová I, Mičová K, et al. A lower dosage of imatinib is sufficient to maintain undetectable disease in patients with chronic myeloid leukemia with long-term low-grade toxicity of the treatment. Leuk Lymphoma. 2016 Feb;57(2):370-5.
14 Sorà F, Matteis S, Di Mario A, Maiuro G, Laurenti L, Chiusolo P, et al. Antituberculosis therapy and imatinib for chronic myeloid leukemia. Clin Infect Dis. 2006 Nov;43(9):1224.
15 Shan S, Carter-Monroe N, Atta MG. Granulomatous interstitial nephritis. Clin Kidney J. 2015;8(5):516-23.
16 Ede FD, Silva Junior GB, Barros EJ. Renal tuberculosis in the modern era. Am J Trop Med Hyg. 2013 Jan;88(1):54-64.