Compartilhar

Tumor neuroendócrino primário do fígado: descrição de caso e revisão da literatura

Tumor neuroendócrino primário do fígado: descrição de caso e revisão da literatura

Autores:

Éden Sartor Camargo,
Marcelo de Melo Viveiros,
Isaac José Felippe Corrêa Neto,
Laercio Robles,
Marcelo Bruno Rezende

ARTIGO ORIGINAL

Einstein (São Paulo)

versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385

Einstein (São Paulo) vol.12 no.4 São Paulo out./dez. 2014 Epub 18-Nov-2014

http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082014RC2745

INTRODUÇÃO

Apesar de o fígado ser o principal órgão acometido por metástases dos tumores carcinoides,(1-3) os carcinoides primários desse órgão são extremamente raros, com descrição de apenas 60 casos até o ano de 2008(4) e de 94 casos em publicação mais recente. Inicialmente reportado por Lubarsch em 1888,(5)os tumores carcinoides são neoplasias funcionais que podem se desenvolver em qualquer parte do corpo. Entretanto, cerca de 54 a 90% dos casos têm sua origem no trato gastrintestinal,(6,7) principalmente no apêndice cecal, intestino delgado e reto.

Os tumores neuroendócrinos primários do fígado (TNPF) são neoplasias derivadas de células neuroendócrinas produtoras de hormônios, notadamente a serotonina, que, principalmente por sua raridade, os tornam de difícil diagnóstico antes da biópsia, ressecção cirúrgica ou mesmo da necropsia.(8) Não apresentam predileção por sexo e acometem indivíduos na faixa etária entre 40 e 50 anos.(9) Os casos relatados se apresentam como tumorações de grandes dimensões no parênquima hepático, com sintomas inespecíficos e frustos, tornando ainda mais raros os casos passíveis de ressecção cirúrgica, devido à rápida progressão tumoral e à demora no diagnóstico.(10)

O TNPF foi inicialmente descrito por Edmonsdson no ano de 1958 e sua origem ainda permanece incerta.(11) As células mutantes originam-se de tecido ectópico pancreático ou adrenal encontrado no parênquima hepático ou, então, de células neuroendócrinas localizadas no epitélio biliar intra-hepático.(12) Além disso, também é proposto que a inflamação crônica dos canalículos biliares pode acarretar metaplasia intestinal, a qual predispõe ao desenvolvimento do tumor neuroendócrino.(12) O TNPF não apresenta associação com cirrose ou doença hepática preexistente(4) e corresponde a apenas de 0,3% dos casos de tumores carcinoides.(7)

RELATO DE CASO

Paciente masculino de 34 anos de idade, com relato de dor abdominal há 3 meses, intermitente, progressiva, de caráter compressivo, em flanco direito, com irradiação para o dorso e ombro ipsilateral. Apresentava plenitude pós-prandial, constipação intestinal e perda ponderal de 3% do peso corpóreo.

Possuía hemograma e exames de função hepática normais, sorologias negativas para hepatites, aumento discreto das enzimas canaliculares e marcadores tumorais dentro da normalidade. A ultrassonografia abdominal evidenciava uma massa heterogênea em lobo hepático direito de 12x10cm, com componente sólido-cístico, e a tomografia computadorizada, fígado com dimensões aumentadas às custas do lobo hepático direito, apresentando extensa lesão infiltrativa com contornos mal definidos, com centro liquefeito e periferia parcialmente realçada ao meio de contraste, além de ausência de comprometimentos de outros órgãos (Figura 1 A e B).

Figura 1 (A) Tomografia computadorizada - corte axial - fase portal - veia hepática media - contato com a lesão. (B) Tomografia computadorizada - corte coronal 

O paciente foi submetido à biópsia hepática percutânea guiada por ultrassonografia. O laudo histopatológico demonstrou tratar-se de neoplasia de histogênese indeterminada, sugerindo tumor carcinoide, e a imuno-histoquímica comprovou o diagnóstico sugerido. Investigação complementada com OctreoScan®demostrou tratar-se especificamente de um TNPF (Figura 2).

Figura 2 Cintilografia com ocreotide - evidenciando captação de radiofarmaco em lesão hepática 

Realizada hepatectomia direita regrada, com evidência, no intraoperatório, de extensa lesão irregular que ocupava todo lobo hepático direito (Figura 3). O paciente apresentou boa evolução e alta hospitalar no 7º dia. A anatomopatologia demonstrou se tratar de neoplasia maligna com diferenciação neuroendócrina e imuno-histoquímica positiva para sinaptofisina, vimentina, cromogranina e KI-67, confirmando o diagnóstico de TNPF (Figura 4).

Figura 3 Fígado com lesão extensa acometendo lobo hepático direito 

Figura 4 Histologia - neoplasia epitelióide com células de tamanho intermediário, nucleos irregulares, dispostas em arranjos organóides e blocos - 8 mitoses por 10 cga com focos de necrose 

DISCUSSÃO

O TNPF pode ser um achado incidental ou, então, apresentar-se com sintomas de dor abdominal, icterícia, massa palpável em quadrante superior direito do abdome, perda ponderal, síndrome de Cushing e síndrome carcinoide.(4,13) Quando ocorre a síndrome carcinoide (rubor facial, dor abdominal e diarreia), geralmente há metástase hepática. Essa apresentação clínica é bastante rara, com descrição de apenas dois casos na literatura.(8,14)

A investigação deve se iniciar com ultrassonografia abdominal, que demonstra, na maioria das vezes, um tumor sólido-cístico.(2) A propedêutica adicional com tomografia computadorizada de abdome geralmente corrobora os achados ultrassonográficos. Além disso, ressalta-se a dificuldade em se estabelecer o diagnóstico definitivo devido, principalmente, à sua similaridade com o carcinoma hepatocelular. Finalmente, o auxílio do OctreoScan® é bastante benéfico, apresentando especificidade que chega a 83%.(15)

A histopatologia revelava se tratar de neoplasia maligna, com diferenciação neuroendócrina, com oito figuras de mitose por campo de grande aumento e, assim como dados da literatura, não é específica para o diagnóstico de TNPF.(2) A imuno-histoquímica, no presente estudo, demonstrou correlação com a literatura, evidenciando a positividade da cromogranina em 89,1% e sinaptofisina em 55% dos casos.(8)

O tratamento mais eficaz é a hepatectomia.(4) Há possibilidade de aumento de sobrevida de 29% para até 78%.(5) Quimioterapia sistêmica ou quimioembolização mostraram resultados incertos.(2) A indicação do transplante hepático ainda é um dilema, sendo que algumas pesquisas sugerem essa terapia em pacientes com múltiplas lesões ou em casos de doença hepática com função prejudicada.(16) Outra possibilidade terapêutica é a utilização de radiofrequência.(4)

Recentes trabalhos demonstraram sobrevida de 5 anos em 74 a 78% dos casos de pacientes submetidos a hepatectomia, com uma taxa de recidiva em torno de 18%.(17,18) As metástases à distância, de acordo com Schwartz et al.,(4)não são descritas sem envolvimento hepático.

Até o ano de 2009, Lin et al.,(8) na maior casuística da literatura, reportaram 94 casos e evidenciaram dor abdominal como o sintoma mais frequente (presente em 44% dos casos), seguido por massa abdominal (14,3%) e ausência de sintomas (13,1%); localização unilobar (76,6%) e lesão única (62,8%). A hepatectomia foi realizada 86,8% de seus pacientes, com uma taxa de mortalidade global de 25,5%.

Huang et al.(2) são os autores com a maior casuística de um único serviço, com relato de 11 casos de TNPF em 13 anos de análise.

CONCLUSÃO

Os tumores carcinoides metastáticos para o fígado são relativamente comuns. Entretanto, o acometimento primário desse órgão é bastante raro. Necessita-se de melhora nos métodos diagnósticos para que haja uma diferenciação pré-operatória mais precisa entre tumores neuroendócrinos primários do fígado e carcinoma hepatocelular.

Pacientes sem um passado de hepatopatia crônica, com níveis normais de alfafetoproteína e imagem sólido-cística nos exames de imagem, combinadas com diarreia e dor abdominal, devem ter aventada a hipótese de um caso de tumor neuroendócrino primário do fígado.

REFERÊNCIAS

. Fernandes LC, Pucca L, Matos D. Diagnóstico e tratamento de tumores carcinoides do trato digestivo. Rev Assoc Med Bras. 2002;48(1):87-92.
. Huang YO, Xu F, Yang JM, Huang B. Primary hepatic neuroendocrine carcinoma:clinical analysis of 11 cases. Hepatobiliary Pancreas Dis Int. 2010;9(1):44-8.
. Maggard MA, O´Connell JB, Ko CY. Update population based review of carcinoid tumors. Ann Surg. 2004;240(1):117-22.
. Schwartz G, Colanta A, Gaetz H, Olichney J, Attiyeh F. Primary carcinoid tumor of the liver. World J Surg Oncol. 2008;6:91.
. Lubarsch O. Uberdenprimäeren Krebs desileum, nebstbemerkungenüber das gleichzeitigevorkommenvonkrebsund tuberculose. Virchows Arch. 1888; 111:280-370.
. Caplin ME, Buscombe JR, Hilson AJ, Jones AL, Watkinson AF, Burroughs AK. Carcinoid tumor. Lancet. 1998;352(9130):799-805.
. Fenoglio LM, Severini S, Ferrigno D, Gollè G, Serraino C, Bracco C, et al. Primary hepatic carcinoid: a case report and literature review. World J Gastroenterol. 2009;15(19):2418-22.
. Lin CW, Lai CH, Hsu CC, Hsu CT, Hsieh P, Hung KC, et al. Primary hepatic carcinoid tumor: a case report and review of the literature. Cases J. 2009;2(1):90.
. Modlin IM, Kidd M, Latich I, Zikusoba MN, Shapiro MD. Current status of gastrointestinal carcinoids. Gastroenterology. 2005;128(6):1717-51.
. De Paula R, Gonçalves JP. Carcinoma neuroendócrino primário de fígado. Rev Med Ana Costa. 2007;12(2):57-8.
. Edmondson HA. Differential diagnosis of tumors and tumor-like lesions of liver in infancy and childhood. AMA J Dis Child.1956;91(2):168-86.
. Gravante G, De Liguori Carino N, Overton J, Manzia TM, Orlando G. Primary carcinoids of the liver: a review of symptoms, diagnosis and treatments. Dig Surg. 2008;25(5):364-8.
. Shah NA, Urusova IA, D’Agnolo A, Colquhoun SD, Rosenbloom BE, Vener SL, et al. Primary hepatic carcinoid tumor presenting as Cushing´s syndrome. J Endocrinol Invest. 2007;30(4):327-33.
. Tohyama T, Matsui K, Kitagawa K. Primary hepatic carcinoid tumor with carcinoid syndrome and carcinoid heart disease: a case report of patient on long-term follow-up. Intern Med. 2005;44(9):958-62.
. Oberg K, Eriksson B. Nuclear medicine in the detection, staging and treatment of gastrointestinal carcinoid tumours. Best Pract Res Clin Endocrinol Metab. 2005;19(2):265-76.
. Fenwick SW, Wyatt JI, Toogood GJ, Lodge JP. Hepatic resection and transplantation for primary carcinoid tumors of the liver. Ann Surg. 2004;239(2):210-9.
. Mizuno Y, Ohkohchi N, Fujimori K, Doi H, Orii T, Asakura T, et al. Primary hepatic carcinoid tumor: a case report. Hepatogastroenterology. 2000;47(32):528-30.
. Knox CD, Anderson CD, Lamps LW, Adkins RB, Pinson CW. Long term survival after resection for primary hepatic carcinoid tumor. Ann Surg Oncol. 2003;10(10):1171-5.