versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.109 no.6 São Paulo dez. 2017
https://doi.org/10.5935/abc.20170169
Há cerca de 200 anos, o médico francês Theophile Hyacinthe Laënnec (1781-1826) inventou o estetoscópio (do Grego stethos = tórax, e skopein = explorar). Inicialmente, a comunidade médica estava cética em relação à utilidade do estetoscópio e houve resistência inicial ao uso: <que ele venha a ter ampla utilização, não obstante seu valor, é extremamente duvidoso; porque a sua aplicação benéfica requer muito tempo e dá um bocado de problemas tanto para o paciente como para o médico>. No entanto, em curto período de tempo, o estetoscópio tornou-se um componente-chave do exame físico, e a ausculta passou a ter valor destacado, promovendo grande avanço no diagnóstico e manejo de pacientes com doenças cardíacas e pulmonares.1 Dada a importância desse instrumento, o estetoscópio tornou-se icônico, passando a constituir símbolo do conhecimento da arte de Hipócrates - é difícil reconhecer outro que identifique tão fortemente o médico quanto um estetoscópio adornando o pescoço de seu usuário.
Várias décadas se passaram, e agora estamos diante de cenário semelhante: outro paradigma a ser mudado. Durante um longo período de tempo, a comunidade científica acreditou que o pulmão estaria fora do escopo da investigação ultrassônica: <porque a energia do ultrassom é rapidamente dissipada no ar, a imagem ultrassonográfica não é útil para a avaliação do parênquima pulmonar>. Essa afirmação é verdadeira em condições fisiológicas normais; todavia, a ocorrência de água na estrutura pulmonar cria uma janela acústica que permite ao ecocardiografista identificar a presença de congestão e, também, efetuar análise semiquantitativa da mesma. A ultrassonografia point-of-care (exame centrado, ou seja, realizado no próprio local de atendimento do paciente, muitas vezes pelo médico/provedor de atendimento) emergiu como extensão do exame físico, e a ultrassonografia pulmonar foi proposta como parte dela para detectar e estimar o edema pulmonar intersticial. Portanto, os cardiologistas podem dispor agora dessa tecnologia do ultrassom como parte do exame clínico, a qual pode ser aplicada tanto na beira do leito, como no consultório, e se propõe a responder a perguntas específicas em abordagem de tomada de decisão.
A congestão pulmonar, a exemplo do baixo débito cardíaco, é elemento preponderante nos pacientes com insuficiência cardíaca (IC), a qual é considerada importante causa de internações hospitalares e de morte.2,3 Assim, a identificação do líquido extravascular pulmonar em portadores de IC pode ser utilizada como auxílio em estratégias de otimização da terapêutica clínica.
Tradicionalmente, a avaliação da congestão pulmonar tem sido baseada no estado clínico e no exame físico do paciente. Entretanto, essa avaliação apresenta limitações mesmo para profissionais habilidosos, mostrando alta especificidade, mas baixa sensibilidade para a detecção da congestão pulmonar.4,5 Assim, os casos de descompensação muitas vezes são reconhecidos em uma fase muito tardia de congestão clínica, de modo que não são evitadas as frequentes hospitalizações. Na cascata da congestão, a manifestação clínica representa um estágio final, diferente da congestão hemodinâmica (aumento da pressão de enchimento do ventrículo esquerdo), pulmonar e sistêmica.6 A congestão pulmonar corresponde especificamente à presença de líquido extravascular pulmonar, o qual pode ser avaliado por ultrassom pulmonar.
O ultrassom pulmonar surgiu como uma avaliação adicional sobre os testes e as estratégias já utilizadas no ambiente clínico. Contudo, muitos estudos têm demonstrado que esse exame apresenta resultados comparáveis a métodos complementares tradicionais, passível, portanto, de ser utilizado como substituto. Com efeito, é difícil postular a plena aplicabilidade e “suficiência” de um único método complementar isoladamente. Exemplo disso, a restrição de uso de exame radiológico durante a gestão e a dificuldade em arcar com os custos da dosagem de BNP (brain natriuretic peptide). Entretanto, a ecocardiografia pulmonar, considerando-se que o ecocardiógrafo já se encontra disponível em determinada instituição, torna-se uma alternativa plausível de ser utilizada isoladamente ou diante das restrições apontadas para os exames radiográficos e dosagens bioquímicas sofisticadas.
A detecção ultrassonográfica pulmonar das linhas B (anteriormente denominadas de cometas pulmonares) tem sido proposta como uma ferramenta simples, não invasiva e semiquantitativa para avaliar a presença de líquido extravascular pulmonar.7,8 Quando o pulmão está normalmente arejado, nenhuma linha B é visível e a imagem é “preta”. Por outro lado, quando os vasos pulmonares ficam ingurgitados e o líquido transuda para o interstício, as linhas B começam a aparecer e a imagem torna-se “preta e branca”. Com edema alveolar, a imagem é completamente “branca”, cheia de linhas B (Figura 1). Esse sinal foi inicialmente proposto para o diagnóstico diferencial da dispneia aguda; agora se encontra incluído nas recomendações da Sociedade Europeia de Cardiologia para o manejo pré e intra-hospitalar da IC aguda,9 bem como nas recomendações das Associações Europeia de Imagem Cardiovascular e de Cuidados Cardiovasculares Críticos sobre o uso de ecocardiografia em cuidados cardiovasculares intensivos10 e na emergência.11 Vários estudos demonstraram a relação entre as linhas B e o líquido extravascular pulmonar, pressão de enchimento capilar pulmonar,12 NT-proBNP13 e relação E/e' em pacientes com IC.
Figura 1 Imagens de ultrassonografia pulmonar mostrando um pulmão normal e um pulmão com sinais de congestão. À direita, vemos um pulmão aerado e a única estrutura que pode ser identificada é a pleura, aparecendo na imagem como uma linha horizontal hiperecogênica. A partir da linha pleural, vemos diversas linhas horizontais em intervalos regulares (linhas A). À esquerda, vemos um pulmão com edema intersticial; a discrepância acústica entre o ar e os tecidos circundantes muda, gerando um artefato de reverberação vertical (linhas B).
A ultrassonografia pulmonar também pode identificar edema pulmonar clinicamente silencioso14-16 e é um preditor independente de eventos em pacientes com IC aguda,17,18 IC crônica,19,20 síndromes coronarianas agudas,21 hemodiálise22,23 ou dispneia aguda e/ou dor torácica,24 sugerindo seu valor adicional para melhorar o perfil hemodinâmico e a otimização do tratamento.
A sensibilidade e a especificidade da ecocardiografia pulmonar para a detecção de linhas B têm variado de 85 a 98%, e de 83 a 93%, respectivamente.14,25
A implantação do ultrassom pulmonar requer uma curva de aprendizagem, como costuma ocorrer em diversos exames complementares. Por outro lado, a implantação é altamente acessível, podendo ser realizada a partir de tecnologia de ultrassom básico, incluindo dispositivos de bolso. É procedimento rápido, de baixo custo, não invasivo e sem radiação, que permite utilização em pacientes estáveis e instáveis, e também a realização em paralelo ao exame físico, na ressuscitação e estabilização hemodinâmica.
No entanto, para evitar interpretações errôneas das linhas B, a chave é a contextualizar com o quadro clínico, já que esse sinal não implica necessariamente uma etiologia cardiogênica.26,27 Quando a presença ou persistência de linhas B não exibe correlação com o quadro clínico de IC, devemos aventar outras possibilidades diagnósticas, tais como: fibrose pulmonar em usuários de amiodarona, edema pulmonar não cardiogênico ou doença pulmonar intersticial.28
Adicionalmente, a ultrassonografia pulmonar pode contribuir para a elaboração de novos escores prognósticos em pacientes com insuficiência cardíaca, uma vez que a congestão pulmonar figura entre os principais preditores de eventos fatais nesse grupo de indivíduos.29
É promissor, portanto, o emprego da ultrassonografia pulmonar como método complementar na cardiologia. Neste artigo, foram apresentados os principais argumentos para sua utilização na prática clínica cotidiana. Assim como a introdução do estetoscópio iniciou uma nova era no diagnóstico clínico, acreditamos que a incorporação do ultrassom point-of-care possui suficiente potencial para expandir as fronteiras do exame físico tradicional e, mediante uma nova práxis, ampliar os sentidos do médico.