versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.90 no.2 Porto Alegre mar./abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2013.09.007
A hiperplasia adrenal congênita (HAC) consiste em um grupo de disfunções autossômicas recessivas congênitas caracterizadas pela deficiência de uma das enzimas envolvidas na síntese de cortisol no córtex adrenal. Mais de 90% dos casos de HAC devem-se à deficiência da enzima 21-hidroxilase (21-OHD), que é um dos erros inatos mais comuns do metabolismo e apresenta incidência variável de acordo com a etnia e a área geográfica.1 - 3
A incidência global da forma clássica da HAC é 1 em 15.000 nascidos vivos, conforme determinado por programas de triagem. Foram observadas frequências que variam de 1:10.000 a 1:14.000 na Europa. Na América do Norte, a incidência varia de 1:15.000 a 1:16.000. Os índices de HAC relatados foram iguais a 1:280 entre os Yupik do Alasca e 1:2.100 na ilha francesa La Réunion, no Oceano Índico; ambas as populações são geograficamente isoladas.4 A incidência de HAC relatada nos dois estados brasileiros que rotineiramente incluíam, na época do estudo, a HAC em seus programas públicos de triagem neonatal é 1:11.655 no Sul (Santa Catarina) e 1:10.325 no Centro-Oeste (Goiás).5 , 6
A triagem neonatal para HAC, agora realizada em muitos países, reduziu o número de mortes ao possibilitar o diagnóstico precoce.1 Em mulheres, a forma clássica da doença pode ser diagnosticada por meio da detecção de genitália ambígua (GA) ao nascimento. Em homens, contudo, a ausência de sinais físicos evidentes ao nascimento pode levar a mortes evitáveis, causadas por crises de perda de sal.
Os principais objetivos da triagem são: detectar a forma grave e perdedora de sal (PS) da doença; prevenir choque, dano cerebral ou morte ao implementar o tratamento pré-sintomático; e evitar ou reduzir o período de atribuição de sexo incorreto que pode ocorrer em mulheres.7 , 8 Entretanto, a ocorrência de resultados falso-positivos em crianças doentes, recém-nascidos pré-termo ou com baixo peso gera algumas dificuldades no diagnóstico, com consequentes implicações terapêuticas.9 A triagem neonatal para HAC também possibilita o conhecimento da incidência real da doença na população.
O objetivo deste artigo é disponibilizar os resultados de um projeto piloto de triagem neonatal para HAC desenvolvido no estado de Minas Gerais (MG), Brasil, destinado a contribuir para o estabelecimento de um programa de rotina.
O projeto piloto de triagem neonatal para HAC foi incluído no Programa de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PTN-MG), de setembro de 2007 a maio de 2008.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, (ETIC 392/07) e pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. O estudo incluiu apenas dados de crianças cujos responsáveis legais forneceram consentimento informado por escrito. O PTN-MG foi implantado pela Secretaria de Estado da Saúde em parceria com o Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD) da Universidade Federal de Minas Gerais em setembro de 1993. O PTN-MG abrange todos os municípios do estado e realizava, na época do piloto, triagem de rotina para quatro doenças: hipotireoidismo congênito, fenilcetonúria, fibrose cística e doença falciforme. O programa de triagem neonatal em Minas Gerais segue as recomendações do Ministério da Saúde brasileiro, que visam atingir 100% da população e definem o processo de triagem neonatal em cinco etapas: teste laboratorial, vigilância ativa de casos suspeitos, confirmação do diagnóstico, tratamento e acompanhamento por uma equipe multidisciplinar. Apesar de recomendada, a triagem neonatal universal ainda não foi totalmente implementada em vários estados brasileiros, devido, em parte, à desigualdade econômica e ao grande território do Brasil. Minas Gerais é um dos maiores estados brasileiros, com 853 municípios e aproximadamente 19.600.000 habitantes (censo 2010 do IBGE).
Um protocolo rigoroso é seguido para garantir resultados confiáveis. O sangue total é coletado por meio de uma punção no calcanhar em cartões de papel-filtro (S&S 903(r)) três a sete dias após o nascimento. As amostras de sangue em papel-filtro são obtidas em unidades básicas de saúde (ou em hospitais para recém-nascidos pré-termo ou doentes) e então enviadas por correio ao NUPAD, onde são processadas. Um resultado positivo desencadeia um processo imediato. A equipe do NUPAD entra em contato por telefone com a unidade básica de saúde (ou hospital), a fim de conseguir uma nova amostra coletada da criança ou encaminhá-la para consulta médica, segundo o protocolo específico para cada doença e o grau de alteração do resultado.
As amostras de sangue são processadas e analisadas no laboratório do NUPAD e os resultados são enviados de volta às unidades básicas de saúde (ou hospitais) o mais rápido possível. Ocorrem aproximadamente 20.000 nascimentos mensais em Minas Gerais, e quase o mesmo número de recém-nascidos são triados pelo programa público mencionado. A cobertura atual da população pelo programa é de 98%.
A triagem neonatal para HAC foi implementada como parte de uma pesquisa para preparar o estado para uma expansão em seu programa, que espera incluir essa doença no quadro de rotina. Ela foi realizada por medição dos níveis de 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) na mesma amostra de sangue em papel-filtro utilizada para a triagem de rotina realizada pelo PTN-MG. Os níveis de 17-OHP foram medidos utilizando o ensaio Umelisa 17-OH Progesterona Neonatal (Havana, Cuba), com valor de referência (VR) de 80 nmol/L (fator de conversão: nmol/L de sangue = 0,73 ng/mL de soro) para neonatos com peso normal (> 2.500 g) e nascidos a termo (> 37 semanas de gestação). Um fluxograma com base nos protocolos estabelecidos na literatura foi proposto, e os pontos de corte 80 e 160 nmol/L foram adotados para definição das condutas (fig. 1).
Figura 1 Fluxograma da triagem neonatal do PTN-MG para hiperplasia adrenal congênita (HAC). (a) Virilização em meninas ou comprovação de perda de sal em ambos os sexos. (b) Hiponatremia e hipercalemia.
Após análise preliminar dos dados, um ponto de corte específico da 17-OHP foi determinado para neonatos pré-termo (< 37 semanas de gestação) e crianças com peso ao nascimento abaixo de 2.500 g com base no percentil 99 dos resultados analisados. Todas as amostras com valores de 17-OHP abaixo de 160 nmol/L foram consideradas normais para essas crianças.
Todas as crianças que atenderam aos critérios e precisaram de acompanhamento foram encaminhadas a endocrinologistas pediátricos no ambulatório do Hospital das Clínicas da UFMG, onde foram avaliadas clinicamente. Testes séricos confirmatórios para 17-OHP, androstenediona, testosterona e Sódio (Na+) e Potássio (K+) foram conduzidos em todas as crianças em sua primeira visita ao endocrinologista. A 17-OHP sérica foi medida através de radioimunoensaio (VR < 204 ng/dL). A androstenediona (VR < 1,6 ng/mL) e a testosterona (VR = homens nascidos a termo: 0,75-4,0 ng/mL; mulheres nascidas a termo: 0,20-0,64 ng/mL; pré-termos do sexo masculino: 0,37-1,98 ng/mL e pré-termos do sexo feminino: 0,05-0,22 ng/mL) foram medidas utilizando quimiluminescência.
O diagnóstico de HAC foi atribuído a crianças que apresentaram comprovação clínica de perda de sal (perda de peso ou ganho insuficiente de peso e/ou sinais de desidratação) e mulheres com sinais de virilização (graus I-V na classificação de Prader), além de aumento dos hormônios séricos (17-OHP, androstenediona e testosterona), baixo nível de Na+ (< 135 mmol/L) e alto nível de K+ (> 5,5 mmol/L). Elas foram tratadas com esteroides, diariamente: 10-15 mg/m2 de acetato de hidrocortisona e 0,1-0,2 mg de fludrocortisona.
O diagnóstico foi considerado inconclusivo quando os hormônios séricos confirmatórios apresentavam alterações, mas o ionograma era normal e não havia sinais clínicos de doença. As crianças diagnosticadas com HAC ou com diagnóstico inconclusivo foram acompanhadas clinicamente e por meio da dosagem sérica da 17-OHP e androstenediona, regularmente. Os casos inconclusivos foram monitorados até que os níveis de 17-OHP das crianças se normalizassem. Nesse momento, esses casos foram classificados como falso-positivos e as crianças receberam alta do programa.
Os dados foram obtidos dos registros da triagem e analisados utilizando o software Microsoft(r) SQL ServerTM 2000 (Washington, EUA). Para calcular a incidência da HAC, o número de casos confirmados em três anos de acompanhamento foi dividido pelo número de crianças triadas. O valor preditivo positivo (VPP), a sensibilidade e a especificidade foram calculados.
De setembro de 2007 a maio de 2008, a triagem para HAC foi realizada em 159.415 crianças em Minas Gerais, número que corresponde a praticamente todas as crianças nascidas no estado nesse período. As crianças tinham idade mediana de seis dias à triagem (média = 8 ± 14 dias).
Nesse período, 16 crianças foram diagnosticadas e iniciaram o tratamento para HAC, e a incidência da forma clássica da doença foi 1:9.963, com base nos diagnósticos iniciais. Contudo, após três anos de seguimento clínico- -laboratorial, confirmou-se que apenas oito dessas crianças (três homens com a forma PS) apresentavam HAC, sendo mantidas sob tratamento contínuo. As outras oito crianças receberam tratamento com glicocorticoide durante o primeiro ano de vida (posteriormente descontinuado), e o diagnóstico de HAC foi descartado a partir de avaliações clínicas e de níveis de 17-OHP sérica normais após a retirada da medicação. Essas crianças apresentaram altos níveis de 17-OHP e pelo menos um sinal clínico que sugeriu HAC (ganho de peso insuficiente, hiponatremia leve ou ambos) na primeira consulta. Durante o acompanhamento, normalização completa da 17-OHP foi atingida sem ajustes periódicos na dosagem da hidrocortisona. As crianças continuaram assintomáticas após a retirada da medicação e foram consideradas falso-positivas.
Portanto, com base nos resultados finais deste projeto piloto, a incidência da forma clássica da HAC em Minas Gerais, Brasil, foi determinada como 1:19.927, com uma proporção masculino-feminino de 1:1,6. A tabela 1 resume as características das oito crianças afetadas.
Tabela 1 Achados clínicos e laboratoriais de crianças com hiperplasia adrenal congênita diagnosticadas pelo programa de triagem neonatal
Caso | Sexo | IG | PN | Forma | Idade | Idade | Suspeita | 17-OHP | 17-OHP | Andros- | Testos- | Na+ | K+ | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
(sema- | (g) | clínica/ | à | ao | clínica? | papel- | sérica | tene- | terona | |||||
nas) | Prader* | triagem | tratamento | filtro | (ng/dL) | diona | (ng/mL) | |||||||
(dias) | (dias) | (nmol/L) | (ng/mL) | |||||||||||
1 | F | 41 | 3620 | PS/III | 6 | 14 | Sim | 250 | 2270 | 31 | - | 125 | 6,3 | |
2 | F | 39 | 3390 | PS/III | 7 | 23 | Sim | 660 | 3.630 | 0,3 | 6,0 | 120 | 7,1 | |
3 | F | 37 | 2515 | PS/IV | 5 | 13 | Sim | 660 | 3.680 | 0,3 | 0,3 | 131 | 5,9 | |
4 | F | 38 | 2900 | VS/II | 5 | 45 | Sim | 214,46 | 2.790 | 51 | 1,5 | 135 | 5,5 | |
5 | F | 36 | 2500 | VS/I | 6 | 581 | Não | 196,17 | 4.180 | 38 | - | 133 | 5,9 | |
6 | M | 39 | 3900 | PS | 9 | 45 | Não | 250 | 2.690 | 5,7 | 1,0 | 135 | 7,6 | |
7 | M | 40 | 4000 | PS | 9 | 81 | Não | 213,43 | 2.880 | 32 | 1,2 | 129 | 7,9 | |
8 | M | 40 | 3380 | PS | 8 | 32 | Não | 660 | 2.160 | 310 | 5,5 | 121 | - |
F, feminino
M, masculino
IG (semanas), idade gestacional em semanas
PN, peso ao nascer.
* graus de virilização genital
PS, perdedora de sal
VS, virilizante simples.
Todas as crianças com HAC foram consideradas casos de alto risco após a triagem e foram imediatamente encaminhadas para avaliação médica. A mediana da 17-OHP na primeira amostra de sangue em papel-filtro dessas crianças foi de 250 nmol/L (196-660 nmol/L).
Das oito crianças diagnosticadas com HAC, seis (75%) apresentaram a forma perdedora de sal, e duas, a forma virilizante simples. Todas as cinco recém-nascidas do sexo feminino apresentaram sinais clínicos de GA ao nascimento (graus I-IV na classificação de Prader), que sugeriram o diagnóstico antes da divulgação dos resultados da triagem. Uma menina (genitália grau I de Prader) e todos os três meninos foram diagnosticados basicamente por meio da triagem neonatal. Em nenhuma das meninas afetadas houve atribuição de sexo incorreto. Consanguinidade foi identificada entre os pais dos Casos 3 e 7; contudo, nenhuma das crianças apresentou histórico familiar positivo de HAC.
A idade média na triagem das crianças diagnosticadas com HAC foi de 7 ± 2 dias. A mediana de idade ao diagnóstico (e início do tratamento) foi de 39 dias (13-581 dias). Houve atraso no diagnóstico da forma virilizante simples da HAC de uma criança do sexo feminino, que nasceu prematura (Caso 5), com genitália grau I na classificação de Prader. Ela foi examinada aos 49 dias de idade; contudo, nenhum tratamento foi iniciado antes dos 19 meses de idade, quando o diagnóstico foi confirmado.
A mediana de 17-OHP sérica (VR < 204 ng/dL) estava elevada: 2.835 ng/dL (2.160-4.180 ng/dL). Os níveis de 17-OHP das crianças com a forma perdedora de sal não diferiram dos níveis das crianças com a forma virilizante simples (p = 0,43). A mediana da androstenediona sérica (VR < 1,6 ng/mL) estava muito elevada: 32 ng/mL (0,3-310 ng/mL). A mediana da testosterona sérica estava elevada e não diferiu entre crianças do sexo masculino e feminino (p = 0,83). Os níveis de Na+ e K+ nas crianças com a forma perdedora de sal estavam em uma faixa anormal: 127 ± 6 mmol/L (VR = 135-145 mmol/L) e 7,0 ± 0,8 mmol/L (VR= 3,5-5,5 mmol/L), respectivamente, ao diagnóstico.
A taxa de falso-positivos e o VPP foram calculados nos primeiros seis meses do projeto. Durante esse período, a triagem para HAC foi realizada em 106.476 crianças, e 328 casos foram classificados como falso-positivos após a triagem e seguimento clínico-laboratorial. Nenhum caso falso-negativo foi identificado durante os três anos de acompanhamento, porém, uma busca ativa não foi realizada. Portanto, a taxa de falsos positivos foi 0,31%, e o VPP foi 2,1%. A sensibilidade e a especificidade foram 100% e 99,7%, respectivamente. Das 315 crianças classificadas como falso-positivas e monitoradas pelo PTN-MG, 63% nasceram prematuras ou apresentaram baixo peso no nascimento, ou ambos os fatores. Os casos falso-positivos foram acompanhados por um período médio de 17 meses após o nascimento (2,6-34 meses), até que seus níveis de 17-OHP se normalizassem.
Uma taxa de incidência de 1:19.927 foi calculada para a forma clássica da HAC em Minas Gerais, seguindo o projeto piloto de triagem. Essa incidência foi inferior às dos outros estados brasileiros onde a triagem para HAC foi realizada: 1:7.500 e 1:13.809 no Sul e 1:10.325 no Centro-Oeste.5 Goiás (na região Centro-Oeste do Brasil) foi o primeiro estado brasileiro (na região Centro-Oeste do Brasil) a incluir a HAC em seu programa público de triagem neonatal, implementado em 1997 e agora amplamente estabelecido. Uma taxa de incidência de 1:10.325 foi relatada para a forma clássica da HAC no estado, após acompanhamento médio das crianças por dezesseis meses.5
Outro estado brasileiro que incluiu rotineiramente a HAC em seu programa público de triagem desde 2000 é Santa Catarina (na região Sul do Brasil), com uma taxa de incidência relatada de 1:11.655 entre 378.337 recém-nascidos triados.6
A incidência da HAC em outro estado do Sul (1:7.500) foi relatada como uma das mais altas no mundo.10 Contudo, esse número foi contestado por um estudo recente, no qual os autores enfatizaram que essa incidência foi obtida a partir de triagem realizada por meio de testes voluntários e pagos pelos pacientes, com resultados clínicos não confirmados.5
Essa grande variação na prevalência relatada pode ocor-rer devido ao grande território e à grande diversidade do Brasil, e também devido a diferenças metodológicas entre os estudos.
A triagem em Minas Gerais foi realizada no período de oito meses, mas os acompanhamentos clínico e laboratorial das crianças que tiveram testes de triagem positivos duraram até 34 meses, até que o diagnóstico fosse confirmado ou comprovado como sendo um falso-positivo.
Uma explicação para a menor incidência de HAC em Minas Gerais encontrada no presente estudo, em comparação àquelas de outros estados brasileiros, pode ser o longo período de acompanhamento, o que permitiu a exclusão de falso-positivos. Uma incidência alta de 1:9.963 foi apurada inicialmente de forma incorreta - após o acompanhamento clínico e laboratorial, aproximadamente metade dos diagnósticos iniciais de HAC foram considerados falso-positivos. As crianças com esse diagnóstico apresentaram níveis séricos confirmatórios de 17-OHP elevados e pelo menos um sinal clínico que sugeria a HAC no início do acompanhamento. A HAC foi descartada e as crianças continuaram assintomáticas após a retirada da medicação. Portanto, somente os casos confirmados de HAC foram considerados no cálculo da incidência da doença. Isso indica que o acompanhamento clínico-laboratorial é uma etapa essencial para o diagnóstico confiável da HAC.
Dificuldades no diagnóstico de HAC são comuns9 e podem ter levado à alta incidência aparente inicial da doença neste estudo piloto. As decisões a respeito do tratamento sempre devem ser adiadas com relação a crianças assintomáticas e com níveis de 17-OHP apenas ligeiramente elevados.11 Exames com maiores detalhes para confirmação do diagnóstico, como a análise genética molecular do gene CYP21, foram sugeridos como forma de análise complementar nesses casos.9 , 12
Este estudo foi o primeiro a examinar a incidência de HAC em Minas Gerais, na região Sudeste do Brasil, com um território de 586.528 km2. A incidência da doença relatada neste estudo se aproxima das relatadas no Japão (1:18.000), na Nova Zelândia (1:21.270) e no nordeste da Itália (1:21,380).7 , 13 , 14
A duração deste estudo pode ser considerada um limitante para as conclusões. Contudo, a incidência calculada neste projeto piloto de triagem é altamente confiável, devido à ampla cobertura da população do estado pelo PTN-MG (quase 100%) e o grande número de crianças triadas, apesar do curto período de tempo dedicado ao projeto. A avaliação deste projeto piloto de triagem neonatal para HAC indica o potencial de redução das taxas de morbi-mortalidade relacionadas à HAC entre as crianças afetadas.
A suspeita clínica de HAC ao nascimento foi baixa: metade dos casos, no presente estudo, foi diagnosticada somente pela triagem. Uma menina com a forma virilizante simples da doença e genitália com grau I na classificação de Prader, bem como três meninos com a forma perdedora de sal da doença, não poderiam ter sido diagnosticados precocemente sem o uso da triagem, e os meninos poderiam ter morrido de desidratação e choque. Sabe-se que mais mulheres que homens são diagnosticadas na ausência de triagem (4:1), o que indica que existem óbitos não reco-nhecidos devido à HAC entre meninos.15 , 16
O início do tratamento da HAC foi tardio neste estudo piloto, devido, principalmente, às dificuldades iniciais para implementação de um protocolo para a HAC no PTN-MG, sem experiência prévia no tratamento dessa doença no programa estadual de triagem neonatal. Segundo o Grupo de Trabalho sobre Triagem Neonatal da Sociedade Europeia de Endocrinologia Pediátrica [Working Group on Neonatal Screening of the European Society for Pediatric Endocrinology], os resultados da triagem neonatal para HAC devem, idealmente, estar disponíveis em até dez dias após o nascimento.17 Esse prazo é razoável, porque os atrasos no início do tratamento geram preocupações sobre os possíveis benefícios da implementação dos programas de triagem para HAC no futuro. Diagnósticos atrasados podem invalidar o objetivo principal da triagem para HAC, ou seja, evitar as crises de perda de sal, reduzindo assim a morbi- -mortalidade da doença. Dados da Holanda, publicados em 2001, mostraram que a coleta de amostras nesse país é normalmente realizada em até dois dias de vida, e todas as crianças com HAC diagnosticadas por meio de triagem conseguiram iniciar o tratamento antes do 10º dia de vida, impedindo, assim, a perda grave de sal.18 Contudo, durante o projeto piloto em Minas Gerais foi possível identificar crianças com a doença que poderiam não ter sido diagnosticadas antes da triagem, apesar da realização do teste não ter sido tão precoce, isto é, mesmo com a idade média de sete dias.
Taxas de falso-positivos reduzidas e VPPs melhorados de exames podem ser obtidos otimizando os pontos de corte da 17-OHP de acordo com um número maior de categorias de peso ao nascer ou idade gestacional, e implementando um teste de segunda linha. Essas estratégias são utilizadas em muitos países19 - 23 para compensar o fato de que os níveis de 17-OHP sérica podem levar meses para retornar ao normal em casos falso-positivos. Esse tempo pode representar um estresse psicológico significativo para a família.
Devido ao manejo precário da HAC em países em desenvolvimento, acreditamos que a implementação de um programa de triagem neonatal para HAC é uma importante política de saúde pública, com benefícios confirmados, conforme relatado neste estudo. Programas de triagem neonatal representam um dos grandes avanços no cuidado precoce de doenças tratáveis na infância.24 Com base no desenvolvimento deste projeto piloto, concluímos que a implementação de um programa de rotina de triagem neonatal para HAC pode ser benéfica. Além disso, concluímos que o acompanhamento em longo prazo e o monitoramento de todas as crianças com resultados positivos na triagem são cruciais para garantir um diagnóstico correto e calcular um índice de incidência da doença confiável. Além disso, para evitar a ocorrência de tratamento excessivo, melhores métodos de diagnóstico e procedimentos de acompanhamento devem ser introduzidos antes que a triagem neonatal para HAC seja implementada. São necessárias análises multicêntricas e em longo prazo para a avaliação apropriada desses dados. Os resultados relatados neste estudo poderão ajudar a superar dificuldades na implementação de programas futuros.