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Uma particularidade italiana? Psicanálise, modernização e sociologia do consumo na Itália dos anos 1960

Uma particularidade italiana? Psicanálise, modernização e sociologia do consumo na Itália dos anos 1960

Autores:

Mauro Pasqualini

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970versão On-line ISSN 1678-4758

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.24 supl.1 Rio de Janeiro 2017

http://dx.doi.org/10.1590/s0104-59702017000400008

“Já faz algum tempo que tenho começado a odiar o termo ‘complexo’. Os psicanalistas podem usá-lo em sua linguagem médica, mas as pessoas comuns, que o usam com propósitos e despropósitos, não” (Dal Pozzo, 1962, p.30). Com essas palavras, uma jornalista responsável pela seção de aconselhamento pessoal de Noi Donne (um semanário italiano de mulheres de esquerda) expressava seu mal-estar com o que parecia ser um hábito crescente entre suas leitoras: incorporar um léxico tirado da psicanálise para expressar seus problemas pessoais. De maneira semelhante, em março de 1966, uma mulher escreveu desesperada ao semanário Grazia (“a revista da mulher italiana”) para comentar sobre um fato muito incômodo: em uma reunião social, ocorreu-lhe que todo mundo parecia entender de psicanálise, tema sobre o qual teve que aparentar conhecimento para não passar vergonha. Contrastando com a atitude cautelosa de seu colega de esquerda, a pessoa encarregada da seção epistolar em Grazia foi em ajuda de sua leitora, iniciando uma explicação sobre a psicanálise na qual revela que talvez não fosse a pessoa adequada para tal tarefa… (Saper…, 13 mar. 1966).

Longe de serem relatos menores, situações desse tipo são significativas para entender a modalidade de expansão da psicanálise na Itália nos anos 1960. Efetivamente, se olharmos as cifras da Società Psicoanalitica Italiana (SPI), pode ser identificado nos anos 1960 o começo de um ciclo de crescimento de longo prazo. Em 1959-1960, os membros da SPI eram vinte, número que triplicou em 1966, chegando a 66 membros plenos (King, 1960, p.243; Montessori, 1967, p.178). Trata-se de um pequeno boom que continuou na década seguinte, já que o número de membros em 1976 subiu para quatrocentos (David, 1982, p.325-326). A esses dados, de fato, teríamos que agregar os psicanalistas não filiados à SPI, que alguns autores consideram um número significativo, e que teve um aumento similar (p.325-326). A quantidade de praticantes, no entanto, não é o único indicador para medir o interesse na psicanálise. Talvez tenha sido mais influente o papel da indústria editorial. Desde o início dos anos 1960, editoras como Feltrinelli, Boringhieri e Comunità começaram coleções de psicologia e psicanálise, introduzindo a um público mais amplo autores como Harry Stack Sullivan, Erich Fromm, Frida Fromm Reichmann, Michael Balint, entre outros (Mecacci, 1998). Como comprovação de que a psicanálise ingressava em uma nova etapa, poderia ser mencionado que em 1966 foi publicada a primeira história de psicanálise na Itália, que também gozou de boa recepção e várias reedições. Escrita por Michel David (1990) – um acadêmico francês experiente em literatura italiana –, a obra mostrava a impressão de que as longas resistências à psicanálise começavam finalmente a diminuir, e que a Itália ingressava, então, no clube de nações modernas que faziam da psicanálise uma parte fundamental de seu patrimônio cultural.

O súbito interesse pela psicanálise, no entanto, não deveria nos levar a exagerar a solidez da influência freudiana na Itália dos anos 1960. Importantes falências estruturais, de fato, conspiraram na contramão de uma implantação mais profunda. Talvez a limitação mais evidente seja a falta de um marco institucional e profissional adequado para consolidar a recepção, a prática e a divulgação da psicanálise. Sua introdução nos cursos universitários em psicologia na Itália data de 1971 (Mecacci, 1998; Vegetti Finzi, 1986), o que demonstra um claro atraso em relação a outros países, e poderia explicar a falta de um público experiente que dotasse de mais complexidade a recepção de Freud. A psiquiatria também não contribuiu para fortalecer a influência freudiana. Ainda que existissem aberturas para a psicanálise em certos pontos, a reforma da saúde mental na Itália dos anos 1960 foi liderada pelo movimento antipsiquiátrico vinculado a Franco Basaglia, cuja atitude para com a psicanálise foi, em geral, distante e indiferente (David, 1982, p.324; Babini, 2009). Como exemplo dos tantos obstáculos a desviar, podemos mencionar que a primeira tradução para o italiano das obras completas de Freud data de pouco tempo, 1967 (David, 1990; Mecacci, 1998). Antes dessa data, os interessados em ler o pai da psicanálise em italiano deviam juntar artigos dispersos em revistas especializadas ou livros específicos. Não nos deveria surpreender então que, para alguns observadores, o repentino entusiasmo psicanalítico escondia também muitos aspectos de improvisação e superficialidade. As palavras com que David fechava sua história da psicanálise em 1966 expressavam eloquentemente esses temores: “Os grupos de pressão cultural se atualizam de repente e gritam em coro ‘Viva Freud!’ … Quiçá hoje o anticonformismo passe por contentar-se em ‘ler Freud’ a sério” (David, 1990, p.591; destaques no original).

Se elaborarmos um mapa geral da presença da psicanálise na Itália, é provável que encontremos uma situação muito particular e específica, e que talvez diferencie o caso italiano dos demais países. Por um lado, existiu na Itália dos anos 1960 um entusiasmo com respeito à psicanálise que permeou fundamentalmente a esfera de cultura de massas. Revistas e semanários ilustrados incrementaram seus espaços e colunas dedicados a conselhos sobre a vida íntima ou privada, em que a linguagem “psi” e uma invocação à psicanálise estavam onipresentes. Da mesma maneira, muitos psicanalistas foram convocados para dar sua opinião sobre diferentes temas e problemas da vida contemporânea, relacionados à juventude, à sexualidade, ou às mudanças na vida íntima (David, 1990).1 Por outro lado, o interesse proveniente da cultura de massas contrastou com o escasso desenvolvimento psicanalítico das “disciplinas psi”, em parte devido a carências institucionais concretas (falta de carreiras de psicologia) ou a decisões teórico-ideológicas (como no caso da indiferença do movimento antipsiquiátrico). Essa forma de desenvolvimento da psicanálise levava a uma situação na qual o prestígio, a demanda e a curiosidade pela psicanálise na esfera da cultura de massas se chocavam com um mundo acadêmico e profissional que se mantinha relutante à psicanálise (senão à psicologia de modo geral).

A expansão da psicanálise por meio de espaços que não são estritamente clínicos ou estritamente ligados à saúde mental era comum a muitos outros países. Na França, por exemplo, a historiadora Élisabeth Roudinesco (1986, p.19-20) estudou como a psicanálise difundiu-se tanto no mundo da medicina como no mundo literário desde as guerras. Nos EUA, por outro lado, a psicanálise teve um grande impacto sobre a indústria cinematográfica, além de tornarse uma teoria e um vocabulário comum, disseminada pelos meios de comunicação durante os anos 1960 (Zaretsky, 2004, p.307-331; Wald, 2013; Hale, 1995, p.276-300). A psicanálise, na verdade, também teve uma presença importantíssima no mundo de relações públicas, marketing e publicidade, desde 1920, e decididamente ao longo dos anos 1950 (Samuel, 2010, 2013). Finalmente em outros países, como a Argentina, a psicanálise também teve um movimento notável na cultura popular, e muitos dos seus defensores usaram as páginas das revistas ilustradas para promover suas virtudes (Plotkin, 1999, 2003, p.175-192; Vezzetti, 1999). Mas, apesar de a psicanálise ser um movimento popular ou leigo em todos esses países, ela também era um movimento institucionalizado, tanto nas suas poderosas associações específicas como nas áreas de psiquiatria (EUA e França) e psicologia (França e Argentina) nas universidades. O último é o que diferencia o caso italiano de muitos outros. Na Itália, a expansão popular da psicanálise ocorreu quando a inserção entre as “disciplinas psi” dentro das instituições acadêmicas ainda estava fraca.

Nas seguintes páginas focalizarei uma experiência que, além de ser interessante nela mesma, ilustra a particularidade da situação da psicanálise na Itália dos anos 1960. Durante a primeira metade dos anos 1960, o sociólogo, especializado em marketing, e jornalista Francesco Alberoni (1929-) publicou uma série de artigos que logo se transformaram em livro, nos quais procurou integrar a psicanálise à teoria social.2 A originalidade do caso de Alberoni é que grande parte do seu esforço estava depositado em entender aspectos fundamentais da cultura de massas e, sobretudo, do consumo, para o qual considerava a psicanálise uma ferramenta privilegiada. Seus escritos, no início dos anos 1960, são relevantes por duas razões. Em primeiro lugar, porque mostram como na Itália dos anos 1960 existiu uma esfera de circulação e recepção da psicanálise unida à sociologia do consumo e, mais exatamente, ao marketing. Alberoni, de fato, procurou integrar a psicanálise, a sociologia e os estudos de mercado dentro de uma reflexão que procurava ser acadêmica e de alto voo teórico, sem perder a sua capacidade de ser aplicada pelo mundo empresarial e de outros operadores sociais.

Em segundo lugar, a figura de Alberoni foi também crucial para abrir espaços institucionais para a psicanálise. Alberoni navegava em dois mundos raramente vinculados na Itália: o mundo corporativo e o mundo acadêmico. Sua participação no primeiro dava-se por meio de sua empresa Misura, dedicada a pesquisas e medições de mercado e opinião (Arvidsson, 2000, p.254-255). Sua passagem pelo mundo acadêmico se evidenciou por intermédio dos vários cargos universitários que ocupou, além de publicar nas principais revistas de sociologia da época. Em ambas as esferas, Alberoni usou sua influência para reforçar o lugar da psicologia e da psicanálise (junto com o da sociologia, que era igualmente minoritário nas universidades italianas da época).3 De fato, foi durante seu cargo de reitor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Trento que se criou a primeira cátedra especialmente dedicada à psicanálise na Itália, no curso de sociologia (David, 1990, p.595).4 A experiência de Alberoni nos mostra, mediante um caso concreto, a forma como a psicanálise se expandiu por meio de espaços intelectuais e institucionais que não estavam vinculados às “disciplinas psi” em sentido estrito e que se caracterizavam por sua conexão com o mundo do consumo, do marketing e da publicidade.

Modernização e consumo

Não deveria nos surpreender que os interesses de Alberoni se concentraram em entender o consumo. Se algo estava claro na Itália de meados dos anos 1960 era que a aquisição de bens estava se tornando uma atividade em expansão, abrangente e complexa. Isso está certamente vinculado ao fato de, como em muitos outros países da Europa ocidental, a Itália ter vivido um notável crescimento econômico durante o período pós-guerra, associado às políticas de estabilidade, bem-estar e afluência (Judt, 2005, p.324-353; Mazower, 1998, p.292-312; Hobsbawm, 1995, p.260-289, 322-345). Sobretudo nos anos que os historiadores chamam de o “milagre econômico”, ocorrido entre 1958 e 1963, a Itália foi palco de um acelerado crescimento econômico e de mudança social, evidenciados no aumento abrupto do produto interno bruto por habitante (que praticamente duplicou entre 1955 e finais dos anos 1960), migrações das zonas rurais do sul do país para as cidades industriais do norte, ou a queda da taxa de desocupação (que, segundo certas pesquisas, chegaram a 3% em 1962) (Ginsborg, 2003, p.210-253; Crainz, 2005, p.87-162; Lanaro, 1992, p.239-325). O acesso de uma quantidade crescente da população a novos bens de consumo duráveis foi, sem dúvida, uma consequência central desse fenômeno. Enquanto em torno de 20% das famílias italianas possuíam uma televisão em 1960, em 1965 a percentagem sobe, chegando a 49%. De maneira similar, os lares com máquinas de lavar passaram de 5%, em 1960, para 23%, em 1965, enquanto os números correspondentes às geladeiras passaram de 17% a 55% nos mesmos anos. A paisagem urbana também foi transformada pelo consumo: o parque automotor saltou de 20 carros para cada 1.000 pessoas em 1955, para 80/1.000 dez anos depois, enquanto as principais cidades viram surgir, com uma mistura de fascinação e temor, os novos templos do consumo de massas: os supermercados (Ginsborg, 2003, p.432, 433, 445; Scarpellini, 2003; Liguori, 2003).

As transformações em torno do consumo estavam associadas a outro tipo de mudanças igualmente profundas. O enfraquecimento da autoridade da Igreja católica e o menor cumprimento dos rituais religiosos (tais como assistir à missa) são evidência de uma crescente secularização ou, ao menos, de uma queda da religiosidade institucionalizada (Ginsborg, 2003, p.245; Lanaro, 1992, p.276-281). Também surgiram notórias mudanças em torno da família, refletidas na queda da taxa de natalidade, nas tendências à flexibilização das relações de parentesco (observável nos debates em torno da legalização do divórcio) ou às percepções em torno da autoridade no lar (Seymour, 2006; Saraceno, 2004). A sexualidade e a intimidade foram também áreas nas quais as coisas começaram a mudar, sobretudo com o surgimento de debates públicos em torno do sexo pré-matrimonial ou a necessidade de educação sexual, embora seja comum descrever tais mudanças como sendo apenas “as primeiras rachaduras na moralidade oficial” (Ginsborg, 2003, p.244). Mais provocativas e estrondosas, em compensação, foram as novas culturas juvenis e a crescente diferenciação geracional. O papel do consumo foi fundamental para isso, dado que as distinções eram visíveis em torno da vestimenta, estilos musicais ou filmes destinados ao público jovem, dotado agora de um poder de compra que lhe permitia surgir como um mercado diferenciado (Ginsborg, 2003, p.243-244; Crainz, 2005, p.75-83; Giachetti, 2002; Piccone Stella, 1993).

O auge do consumo também trouxe novidades em torno de certas profissões. A publicidade, em particular, experimentou uma renovação profunda, especialmente desde os anos 1950, quando novas agências estrangeiras se estabeleceram na Itália e procuraram inovar critérios e pautas publicitárias. Da mesma maneira que ocorria em outros países, a pesquisa de mercado foi uma área em expansão, relacionada às pressões para compreender as atitudes e os gostos dos(as) novos(as) consumidores(as) (Arvidsson, 2000, 2003, p.67-70, 90-95). As indústrias culturais também experimentaram uma transformação notável em seu duplo caráter de indústrias de entretenimento e espaços de exibição e publicidade para um crescente número de bens, estilos de vida e novas formas de lazer e diversão. Junto com a televisão, os semanários ilustrados, especialmente os femininos, expandiram-se e aumentaram suas tiragens, convertendo-se em verdadeiros pedagogos do gosto e difusores de pautas de consumo. Revistas tais como Amica, Grazia, Gioia ou Anabella, entre muitas outras, tornaram-se artefatos cruciais para interrogar as mulheres enquanto donas de casa modernas e, sobretudo, sujeitos cruciais na tomada de decisões dos principais consumos do lar (Arvidsson, 2000, 2003; Lilli, 1976, p.253-311; Gundle, 1986; Liguori, 2003; Scarpellini, 2003). A visibilidade social da dona de casa e o espaço doméstico tornaram-se de fato cruciais. Entender o desejo feminino (e orientá-lo) não era algo menor em uma época na qual as empresas mais concentradas se baseavam na produção de um arsenal de produtos destinados à limpeza, à beleza, ao conforto da casa e às mulheres modernas (De Grazia, 2005, p.416-457).

Não é de surpreender que, durante os anos 1960, se alastraram pela sociedade italiana pânicos e preocupações de todo tipo em torno do consumismo e seus efeitos. Como em muitos outros países, na Itália, comentaristas e intelectuais de diferentes estratos fizeram ouvir seu alarmismo em torno da sociedade de consumo e a longa e contraditória lista de males que lhe atribuíam, tais como o hedonismo, a imoralidade, o individualismo, a relativização de valores éticos, a americanização, a homogeneização e padronização de gostos, a crescente delinquência juvenil, o conformismo, a erosão da consciência de classe, o apaziguamento do movimento operário ou a escravização da alta cultura por parte da comercialização (Arvidsson, 2003, p.77-88; Ginsborg, 2003, p.248-250). Por outro lado, grande parte da insatisfação em torno das mudanças passava pela incompletude da modernização, seja pela persistência de valores tradicionais ou pelas limitações nas mudanças de gênero. Finalmente, a crescente pressão ao consumo foi acompanhada pelo aumento da instabilidade social. De fato, aqueles que profetizavam mais conformismo e integração social como efeito do consumismo deveriam enfrentar uma realidade surpreendente, dado que a combatividade da classe operária elevou-se durante esses anos. Em um contexto de aumento da ocupação, não é estranho que os setores com maior poder de negociação pressionem para facilitar seu acesso a novos benefícios, tais como férias, a linha branca de bens duráveis ou o automóvel. No final da década, os estudantes universitários agregaram sua voz à mistura de inconformismo e mobilização, dramatizando de maneira eloquente o conjunto de demandas que o “milagre econômico” havia deixado insatisfeitas (Ginsborg, 2003, p.250-253, 298-347).

Tanto para aqueles que nutriam expectativas otimistas como para os alarmistas da modernização italiana, estava claro que entender o consumo era uma tarefa crucial. O uso de conceitos psicanalíticos por parte de Alberoni, de fato, respondia a uma preocupação clara: de que forma o consumo afeta a integração social nas sociedades industriais desenvolvidas? Conquanto levantar essa pergunta evidenciava uma preocupação com respeito ao auge do consumo na Itália do “milagre econômico”, a reflexão de Alberoni caracterizou-se pelo otimismo. Para ele, o desenvolvimento do consumo de massas ia permitir a consolidação de uma sociedade capitalista avançada capaz de integrar demandas e conflitos dentro de um marco institucional democrático. Dessa forma, sua reflexão vinculava-se com argumentações similares às de outros comentaristas ou especialistas em marketing dentro dos EUA, que do mesmo modo haviam tratado de argumentar que o desenvolvimento da sociedade de consumo favorecia a consolidação de formas participativas de cidadania (Horowitz, 1998).

O que diferenciava Alberoni dos casos americanos era que ele procurava adaptar tais reflexões às particularidades da sociedade italiana do pós-guerra. Segundo ele, aquilo a que se estava assistindo na Itália dos anos 1960 era a consolidação de um mercado homogêneo e em massa de produtos que possibilitava novas formas de experiência e sensibilidade, ao passo que garantia o desenvolvimento econômico baseado em uma política de altos salários e de pleno emprego. Ainda que isso fosse um processo geral, comum em muitos países, Alberoni era claro quanto ao caráter recente e frágil do processo italiano. Traçando uma comparação com os EUA, Alberoni demonstrava como o desenvolvimento da sociedade de consumo foi facilitado nesse país, porque a exibição da riqueza foi sempre uma forma de demonstrar mérito pessoal, preeminência social e interesse filantrópico pelo bem da comunidade. Dessa forma, as classes dominantes norte-americanas orientaram os gostos e estilos dos demais estratos sociais, que reproduziram seus critérios de consumo como uma maneira de demonstrar ascensão social. Na Itália e na Europa em geral, a situação foi muito diversa. As elites aristocráticas que impunham formas de prestígio social não eram sempre as mais poderosas economicamente; a elite econômica foi sempre relutante a exibir riquezas, e os estratos do proletariado mantiveram identidade e gostos próprios que consideraram antagônicos aos das classes dominantes. Em outras palavras: enquanto nos EUA a exibição de riquezas integrou e permitiu a difusão de gostos comuns na forma de uma virtual “classe média universal”, na Itália e na Europa isso gerou conflitos e ressentimento social, ao mesmo tempo que os gostos se mantiveram dispersos em espaços sociais e regionais heterogêneos (Alberoni, 1964a, p.98-117, 297-298).

Neste palco, o principal estímulo ao consumo em massa na Itália veio da influência norte-americana depois da Segunda Guerra Mundial, especialmente com o culto às “celebridades” e ao star system. A difusão de certas pautas da vida por meio dos filmes, das revistas ilustradas e do exemplo do modelo de “ricos e famosos” geraram o que Alberoni chamou de “elite sem poder”. Trata-se do mundo de cantores, esportistas, atores ou pessoas famosas que captura a fantasia popular, mostrando formas de vida hedonistas, livres das limitações do homem comum, protagonistas de lucros espantosos e, portanto, portadoras de um carisma maior que o da esfera política (Alberoni, 1964a, p.58-79). De fato, a capacidade da “elite sem poder” para atrair adesões e simpatia consistia precisamente no fato de não ocuparem posições de decisão ou cargos de responsabilidade. Foi então a partir dessa elite que, segundo Alberoni, surgiu uma poderosa legitimação ao consumo, que de outra forma jamais teria superado sua fragmentação e instabilidade. Encontrando um exemplo contundente para seu argumento, Alberoni (1964a, p.39) perguntava retoricamente: “Que sentido tem, por exemplo, para uma garota, as camisolas que viu em um filme?” E para deixar claro seu argumento, sugeria uma comparação entre o enxoval e a camisola:

O enxoval na sociedade estacionária é fixo e imutável, codificado por normas sagradas e respeitadas … É a expressão, com sua cor branca e a austeridade de sua roupa íntima, dos deveres austeros e dos valores comunitários vinculados ao casal, à procriação, à doença, à morte. O amor conjugal é dessexualizado, privado de qualquer modulação afetiva lúdica … A camisola moderna significa rebelar-se contra a austeridade do enxoval, … afirmar implicitamente ou simbolicamente a liberdade de eleger o homem que se deseja, ser desejável também após o casamento, a possibilidade de uma vida afetiva fantástica, lúdica e sexual antes inimaginável.

A contraposição entre enxoval e “camisola moderna”, disseminada pelo cinema, também fazia referência a outro dos eixos do argumento de Alberoni, vinculado a um processo fundamental da Itália após a Segunda Guerra Mundial: as migrações da população das zonas rurais e do sul do país para as cidades industriais do norte. Longe de representar esse fenômeno como efeito da miséria dos migrantes e sua necessidade de encontrar novas ocupações, Alberoni considerava os migrantes protagonistas da transição das sociedades tradicionais para as modernas, deixando claro o papel predominante que o consumo ocupava nesse processo. O migrante interno do século XX, sustentava Alberoni, escapava de sua comunidade local porque a percebia como limitante, estática e autoritária. Nas cidades industriais, pelo contrário, procurava mais oportunidades, espaços de socialização e, sobretudo, o contato com um mundo de bens e consumos que adquiriam o significado daquilo que Alberoni definia como uma verdadeira revolta. Grande parte das preocupações de Alberoni girava em torno de questões abertas por esse processo: até que ponto os recém-chegados poderiam ser integrados às sociedades urbanas industriais? De que maneira o consumo poderia efetivamente satisfazer as expectativas dos migrantes? E, talvez mais fundamentalmente, até que ponto a população estava disposta a incorporar novos e diferentes bens de consumo em suas vidas? Ainda que pareça distante, grande parte do recurso à psicanálise por parte de Alberoni se relacionava com esses eixos.

A psicanálise e o mundo dos objetos

O esquema mais geral das reflexões de Alberoni seguia linhas tradicionalmente sociológicas que realçavam a relevância e a particularidade da modernização e o consumo na Itália. Ao montar tal abordagem, Alberoni (1964a, p.69-70) não tinha receio de utilizar esporadicamente algumas noções psicanalíticas, como em sua comparação do mundo da “elite sem poder” com os sonhos – por sua capacidade de acessar desejos inconscientes – ou sua ideia de que na sociedade de massas as noções de status se internalizam no superego (p.42-43). Além desses comentários, o uso realmente instrumental e aplicado da psicanálise surge para explicar um dos fenômenos observados pelos especialistas em marketing e em publicidade: a resistência de muitos consumidores, em especial as donas de casa, a incorporar novos produtos em sua vida cotidiana. Semelhante preocupação foi constante no mundo do marketing durante os anos 1950 e 1960, e articulava-se também com preocupações mais gerais relacionadas com a “saturação das necessidades” ou com a incapacidade do mercado para absorver a crescente produção industrial (Horowitz, 1998). Na Itália, de fato, eram muitos os pesquisadores de mercado que se esforçavam em compreender por que as relutantes donas de casa italianas preferiam usar seu tempo cozinhando comida caseira, em vez de utilizar alimentos enlatados, evitavam os supermercados para ir a diversos pequenos comércios onde haviam ido sempre ou consideravam que a máquina de lavar não era uma necessidade fundamental (Arvidsson, 2000, 2003, p.68, 91-106; De Grazia, 2005, p.408-414).

Ao tratar o problema de por que certas pessoas resistiam a incorporar novos produtos em suas vidas, Alberoni estava invadindo um terreno já explorado. No entanto, duas coisas chamam atenção na maneira como ele encara esse tema. Em primeiro lugar, a densidade da reflexão psicanalítica. Alberoni fez um uso bastante criativo de noções básicas da psicanalista vienense emigrada à Inglaterra Melanie Klein, a partir das quais tentou explicar a complexidade da relação das pessoas com os objetos dos seus desejos, e assim dar conta da complicação que é aceitar um produto novo. Em segundo lugar, seus escritos revelam também uma tensão entre a complexidade de sua explicação e seu otimismo sobre a sociedade de massas na Itália. O curioso da análise de Alberoni é que ele descreve a incorporação de novos produtos como um processo traumático, preenchido de uma enrolada trama afetiva composta de depressão, paranoia, agressão reprimida e frustração. O paradoxo nesse caso é que a visão totalmente comemorativa da sociedade de massas mantida por Alberoni não o impediu de elaborar uma imagem chocante e visceral das dinâmicas profundas do comportamento do consumidor.

Alberoni considerava que, para entender a relação dos indivíduos com os objetos de consumo, era necessário entender a teoria das origens da vida afetiva desenvolvida por Melanie Klein (1964), à qual teve acesso por influência do psicanalista italiano Franco Fornari. Nesse esquema, o primeiro objeto de amor de uma criança se estabelece no estágio pré-edípico com a mãe, a qual satisfaz as necessidades básicas de alimentação e proteção. No entanto, esse objeto de amor é também a fonte de frustração, porque as necessidades nem sempre encontram imediata satisfação. A ambivalência com respeito ao primeiro objeto de amor (a mãe), que é ao mesmo tempo fonte de satisfação e frustração, resolve-se de várias maneiras. Por um lado, mediante mecanismos esquizoparanoicos que cindem o objeto de amor em uma imagem boa, destino de sentimentos de amor, e outra agressiva, composta por fantasias persecutórias pelas quais a criança projeta sua agressão na forma de um corpo hostil que ameaça destruí-la. Por outro lado, existem também mecanismos depressivos e reparadores, mediante os quais a criança reconhece seus próprios sentimentos agressivos, reúne as duas imagens cindidas da mãe como uma só e assume uma série de atitudes destinadas ao cuidado do vínculo com a mãe e a conter seus próprios impulsos agressivos (Alberoni, 1964a, p.139-144).

Alberoni aplicou o esquema kleiniano (do modo como ele o compreendeu) da vida afetiva da criança à investigação de mercado e ao seu interesse por entender o consumo. Sua explicação básica era que os diversos modos de consumir um objeto incluem impulsos sádicos e agressivos. Isso se deve tanto ao fato de que os consumidores mantêm uma relação ambivalente com seus objetos quanto ao fato de que o consumo é uma forma de prazer que envolve a destruição do objeto. É por isso que, para Alberoni, o consumo de um objeto está sempre ligado a uma série de atividades rotineiras e reparadoras que têm por função a defesa do indivíduo de sua própria agressão por meio de tarefas de cuidado e contenção que permitem isolar ou minimizar o elemento sádico contido na satisfação de desejos. Dessa maneira, quando os consumidores se recusam a aceitar um produto mais eficiente que supostamente permitiria poupar tempo e dinheiro, o que fazem na realidade é proteger as tarefas reparadoras associadas ao objeto deslocado. É por isso que o objeto novo é sempre, em um primeiro momento, investido de propriedades nocivas e perigosas. Tais características agressivas são em realidade projeções esquizoparanoicas dos próprios consumidores, que exteriorizam sua hostilidade no produto novo. A aceitação de um novo produto ocorre apenas quando há uma reestruturação das atividades reparadoras que permitem inserir o novo produto dentro de um novo esquema acolhedor (Alberoni, 1964a, p.164-185).

Homem prático e orientado para os saberes aplicados, Alberoni aplicou essas teses em casos concretos. Assim, por exemplo, procurou responder à questão de por que muitas mulheres, dispondo dos meios e das facilidades para ter máquinas de lavar, as recusavam ou preferiam modelos obsoletos. Segundo ele, caso escutasse o que as donas de casa diziam, resultava que as mesmas consideravam as máquinas de lavar de última geração destruidoras dos tecidos delicados e da roupa em geral. Na explicação de Alberoni, isso ocorria porque, na realidade, o que a máquina nova vinha a substituir era a própria agressividade das donas de casa, que era descarregada no esfregão e na tábua de passar, atividades que lhes permitiam conciliar o cuidado do lar com a liberação de sua própria agressividade. Algo similar ocorria com os alimentos industrializados poupadores de tempo, que eram vistos por muitas mulheres como prejudiciais para a saúde da família. A razão: esses produtos, ao sugerir a possibilidade de dedicar menos tempo à família, confrontavam as donas de casa com seus próprios desejos de abandonar a família e com um trabalho doméstico considerado frustrante. Espantadas por essa intuição de seus próprios desejos reprimidos, as mulheres projetavam, então, intenções daninhas no produto novo. Isso explicava também por que, quando um produto novo era finalmente aceito, nunca substituía totalmente as tarefas anteriores, mas assumia um compromisso com elas: “Assim, a dona de casa fará a massa em casa de vez em quando … e, se comprar uma máquina de lavar, irá escolher uma semiautomática, ou realizará certos trabalhos (reparadores) a mão” (Alberoni, 1964a, p.171).

Enquanto o consumo de certos produtos responde a mecanismos intrínsecos à vida doméstica, em outros se observam mecanismos mais básicos de integração social. Tal era para Alberoni (1964a, p.176-178) a maneira de entender o comportamento em relação aos produtos de higiene, como os desodorantes ou a pasta de dente. Alberoni considerava que o cheiro ou o mau hálito próprio são formas de agressividade que reafirmam o sentido de virilidade nos homens. Eliminar o próprio cheiro mediante desodorantes era, então, a imagem mais representativa do mecanismo depressivo pelo qual o indivíduo depõe sua agressividade e a sacrifica em prol da convivência. É por isso que, para muitos homens, eliminar o próprio cheiro é visto como feminização, amputação e autolesão de sua masculinidade. Isso também explicava, para Alberoni, por que as mulheres lideram o mercado de higiene pessoal. Segundo ele, as mulheres são mais propensas a abandonar a própria agressividade mediante mecanismos depressivos que facilitam a convivência. Seu papel de educadoras e de agentes de higiene pessoal diante dos filhos e maridos era simplesmente uma das tantas formas de demonstrar que as mulheres são agentes socializadoras mais poderosas que os homens – o que, por sua vez, explicava por que a sociedade de consumo, em sua função integradora, era basicamente feminina (Alberoni, 1964a, p.177-178).

A psicanálise como forma de engenharia social

Ao repassar apenas algumas das explicações psicanalíticas de Alberoni sobre o comportamento dos consumidores, é importante sublinhar que não se tratava de ideias excêntricas e exageradas escritas para entreter um público curioso. O capítulo sobre as resistências ao consumo, de fato, tinha sido publicado na forma de artigo na revista de marketing Ricerche Motivazionali, destinada a empresários e profissionais de pesquisa de mercado e de publicidade (Alberoni, 1964b). A problemática em torno das resistências aos novos consumos pelas donas de casa, de fato, era um tema de longa discussão entre os profissionais de publicidade. Durante os anos 1950, o consenso predominante parecia coincidir com as explicações de Alberoni: adotar um perfil muito moderno e agressivo para os novos produtos tendia a reforçar as resistências por parte das donas de casa inseguras e defensivas quanto aos seus trabalhos tradicionais (Arvidsson, 2000). A maneira kleiniana pela qual Alberoni focava a problemática da “resistência”, por outro lado, era reveladora dos seus próprios temores e preocupações com respeito à capacidade integradora da sociedade de consumo. O fato de que cada produto novo lançado ao mercado virasse um potencial desestabilizador psicológico não era precisamente uma análise tranquilizadora nesse sentido. Mais ainda quando consideramos que o marco concreto em que Alberoni realizava suas análises era o de uma sociedade em transição, na qual milhares de pessoas migravam das formas de vida “tradicionais” para o sedutor e vertiginoso mundo da sociedade industrial moderna. Nesse sentido, não faltaram análises que refletissem um interesse por apelar a noções psicanalíticas que explicassem as tendências ao conflito e à anomalia dentro da sociedade industrial.

Se há algo que fica claro nas reflexões de Alberoni é que seu uso da psicanálise estava orientado a detectar – e, portanto, tratar de neutralizar – o potencial violento e conflituoso intrínseco à convivência humana. A chave nesse enfoque era a ênfase em a interdependência social gerar constantemente frustrações que são processadas mediante o que Klein denominava “mecanismos esquizoparanoicos”. Isso quer dizer que, diante da falta de lucros claros, ou em casos de uma existência social carente de satisfações e autoestima pessoal, diversos grupos sociais incorrem em fantasias persecutórias, ansiedades em torno da autodestruição e violência dirigida a membros específicos da sociedade ou externos à comunidade. Alberoni (1964a, p.203) considerava que, das sociedades pastoris mais simples até os grupos comerciais desenvolvidos, todos têm elaborado o que ele chamava de “economia da violência”, consistente em conter ou redirecionar a agressão intrínseca à coexistência social. Assim, então, o calendário de festas e rituais das comunidades pastoris eram formas de isolar o alívio de certas paixões em determinadas datas, da mesma maneira que o ódio contra grupos minoritários ou contra setores privilegiados era também forma de dirigir as inclinações agressivas de modo a não dividir a comunidade (Alberoni, 1964a, p.209-223).

Para Alberoni, a mudança social era sempre problemática e traumática, já que desestabilizava os mecanismos de contenção, isolamento e reparação das tendências destrutivas. No caso da chegada da sociedade industrial, isso se tornava particularmente explosivo. A transição das formas de vida tradicionais para as realidades do proletariado industrial submetia um número crescente da população a frustrações dolorosas, vinculadas às péssimas condições de trabalho, falta de controle no processo de produção e baixos salários – fenômenos que impactavam de maneira particularmente intensa dada a perda de antigas práticas de contenção e reparo. Nessa situação, a libertação das inclinações destrutivas dos operários, historicamente, canalizou-se e organizou-se por meio do marxismo, que, segundo Alberoni (1964a, p.247), consiste na “solução paranoica” ao problema dos operários industriais. O marxismo (entendido como ideologia aglutinante) permitiu aos operários desmembrar os meios de produção de maneira semelhante à da criança que divide a mãe, segundo Melanie Klein: por um lado, a fábrica boa (instrumentos de produção portadores de civilização e de uma futura sociedade igualitária), e, de outro, a fábrica má (instrumento de exploração do capitalismo). E mais ainda: entendido nesses termos, o marxismo implicava também uma postura fortemente edípica, na qual os operários (filhos) lutam contra o capitalista (pai) por possuir a fábrica (mãe) (Alberoni, 1964a, p.248).

É claro que, ao propor que “a contribuição esquizoparanoica é o motor de fundo do pensamento marxiano e marxista”, Alberoni (1964a, p.247) não estava procurando amigos entre os comunistas. No entanto, seu tratamento reconhecia que a solução paranoica elaborada pelo marxismo tinha permitido aos operários liberar a violência fora da comunidade dos trabalhadores, gerando vínculos solidários e desenvolvendo atitudes reparadoras com respeito aos meios de produção (que já não eram destruídos como nas primeiras manifestações do movimento operário). Da mesma maneira, sua análise do marxismo como movimento paranoico era parte do seu raciocínio mais geral, consistente em afirmar que “a modalidade persecutória acentua-se em situações de forte dependência, como regressão com respeito a ânsias de aniquilamento levantadas pela contribuição depressiva” (Alberoni, 1964a, p.256-257). Sua posição político-ideológica nesse sentido era clara: mais que reprimir os sintomas, a sociedade industrial devia evitar o tipo de frustração e dependência que leva à regressão paranoica. Ainda de modo mais concreto, Alberoni apontava os sindicatos, os partidos políticos e o Estado como instâncias que permitiam uma sociabilidade menos dependente e, portanto, mais adequada para promover “um processo de modificação da realidade sem cair em sua destruição” (p.256).

Embora Consumi e società (Alberoni, 1964a) não aporte mais detalhes concretos sobre como conseguir seu objetivo, em linhas gerais sua proposta estava clara. As páginas do livro sugerem uma opção em favor de soluções não repressivas ao problema do conflito trabalhista, procurando diminuir os riscos de “regressão paranoica” mediante mecanismos participativos, além de uma sofisticada integração das ciências sociais e da psicanálise como disciplinas aplicadas à engenharia social e às relações de trabalho. Como na maioria de suas análises, sua abordagem evidenciava um perfil de reformador otimista, confiante na capacidade das instituições democráticas do capitalismo industrial avançado para conter os conflitos e as paixões surgidas das frustrações. Nesse esquema de coisas, a psicanálise atingia um novo status, já que se voltava a uma disciplina com uma função privilegiada: a de ajudar a administrar o mal-estar na era do bem-estar.

Considerações finais: que tipo de particularidade?

Existem muitos outros aspectos da experiência de Alberoni que poderiam ser sublinhados ou desenvolvidos. Seus textos são de fato trabalhos muito criativos e interdisciplinares, que articulam interesses e elementos de todo tipo: uma visão manifestamente otimista sobre a modernização, temas do mundo do marketing e a investigação de mercado, e uma apropriação da psicanálise e das reflexões de Melanie Klein destinadas a convertê-los em sofisticados instrumentos de controle ou engenharia social. Além das múltiplas aproximações possíveis para essa experiência, queria fechar esta apresentação com algumas considerações gerais a respeito do que nos sugere esse caso sobre a “história psi” na Itália e também de modo mais geral.

O primeiro ponto nesse sentido consiste em esclarecer até que nível o “caso Alberoni” é uma “particularidade” italiana, tal como se procurou enfatizar ao longo destas páginas. À primeira vista, pareceria que se trata de um sentido suave de particularidade. O uso da psicanálise como técnica de engenharia social, de fato, pode ser encontrado em outros países (Zaretsky, 2004, p.276-331). Além disso, o tipo de articulação entre psicanálise e marketing implantado por Alberoni não era precisamente uma invenção latina. Seu auge teve lugar nos EUA no final dos anos 1950, em meio a apaixonadas adesões, entusiasmos fugazes e furiosas polêmicas. Foi aí de fato que surgiu a noção do “persuasor oculto” (hidden persuader) para referir-se à maneira como o mundo do marketing e da publicidade adotava noções da psicologia profunda para “manipular” ou “compreender” os consumidores (Dichter, 1960; Packard, 1957; Samuel, 2010). É claro que Alberoni estava simplesmente aplicando ao contexto italiano um tipo de reflexão elaborada em outros lugares.

Quanto a isso, inclusive, há uma série de aspectos que realçam a “particularidade” do caso. Em primeiro lugar, é claro que, em sua aplicação de fórmulas testadas nos EUA, Alberoni realizou uma adaptação criativa. O fato de que seu marco de referência psicanalítico seja Melanie Klein, nesse sentido, é o mais significativo. Por um lado, porque mostra a sintonia entre Alberoni e os psicanalistas italianos da SPI, na qual a influência de Klein se tornou proeminente, quiçá hegemônica, desde os anos 1950. É claro, então, que, se o impulso ao desenvolvimento de uma sociologia do consumo com bases psicanalíticas era importado, pelo menos sua composição continha especificidades italianas. Por outro lado, e acredito que isso seja talvez o mais interessante, o uso de um marco “kleiniano” para entender o consumo e outras realidades do mundo trabalhista e social revela muitas das incertezas, preocupações e ansiedades em torno do desenvolvimento do processo de modernização na Itália. Embora se pudessem procurar mais precisões sobre esse ponto, minha impressão é que o uso de noções kleinianas, com ênfase nos mecanismos esquizoparanoicos e depressivos, ou sua constante referência à intrínseca agressividade e às ânsias (auto)destrutivas, prestava-se a ser aplicado à realidade italiana, na qual o auge da sociedade de consumo apresentava aspectos bem mais traumáticos e conflitantes que nos EUA, seja pela sua recente expansão, o forte suporte de atitudes mais tradicionais ou os fortes conflitos trabalhistas.

Finalmente, o sentido mais forte de “particularidade” liga-se ao que pode ser mais produtivo do ponto de vista da história das “culturas psi”. Como se observou no início deste artigo, na Itália, o boom da psicanálise estourou em conexão com os interesses, curiosidades e preocupações alimentadas pela cultura de massas. A recepção da psicanálise no mundo das empresas parece surpreendente porque contrasta com a indiferença, ou a falta de relevância social, das disciplinas como a psiquiatria ou a psicologia. Dessa maneira, acho que se pode concluir que o que realmente alimentou, ou retirou de sua marginalidade, a psicanálise na Itália foram as recepções ou respostas de operadores culturais como Alberoni, que, trabalhando como sociólogos do consumo, diretores de editorias ou jornalistas de revistas populares, puseram a psicanálise na agenda pública. Ao operar dessa forma, provavelmente seguiram um modelo tomado da cultura norte-americana, que adaptavam com diferentes níveis de criatividade. Mas se isso foi uma “particularidade” italiana, só podemos sabê-lo comparando com outros casos. Aqui podemos encontrar as perguntas mais profícuas para uma discussão: encontramos casos como o de Alberoni em outros países? Que relevância tiveram para a ampliação da influência social da psicanálise? Que relações estabeleceram com os psicanalistas clínicos locais? Que resistências ou críticas receberam? A partir de como respondemos a essas perguntas, podemos ampliar a agenda de temas para uma história das disciplinas e saberes “psi” na época da cultura de massas e auge do consumo.

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