versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.83 no.1 São Paulo jan./fev. 2017
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2016.01.007
O sangramento na cavidade nasal causado por lesão à mucosa ou por distúrbio vascular como resultado de transtornos da coagulação é denominado epistaxe.1 A epistaxe é uma das emergências otorrinolaringológicas (ORL) mais comuns que necessitam de internação hospitalar, mas raramente representa risco para a vida. A epistaxe é mais comum em homens do que em mulheres e sua frequência aumenta com a idade.1,2 A incidência de epistaxe não é totalmente conhecida, mas ocorre em 7-60% da população. A epistaxe pode ser pós-traumática, iatrogênica (cirurgia nasal ou procedimentos endoscópicos) e espontânea, como resultado de possíveis fatores causais, como, por exemplo, fatores nasais locais (inflamação e infecção), medicamentos e fatores sistêmicos, como transtornos da coagulação, alcoolismo, telangiectasia hemorrágica hereditária e hipertensão.1,2
O nariz tem uma rica vasculatura, com contribuições substanciais da artéria carótida interna (ACI) e da artéria carótida externa (ACE). O sistema da ACE fornece sangue para o nariz através das artérias facial e maxilar interna. A ACI contribui para a vascularização nasal com a artéria oftálmica.3 O plexo de Kiesselbach, ou área de Little, é uma rede anastomótica de vasos localizada no septo cartilaginoso anterior. Muitas das artérias que irrigam o septo apresentam conexões e anastomoses nesse local. Mais de 90% dos sangramentos ocorrem na região anterior e têm sua origem na área de Little, onde ocorre a formação do plexo de Kiesselbach.3 A epistaxe posterior, que habitualmente é mais profusa e de origem arterial, ocorre mais posteriormente na cavidade nasal. Essa condição representa maior risco de comprometimento das vias aéreas, aspiração de sangue e maior dificuldade no controle do sangramento.
Hipertensão é causa importante de epistaxe espontânea. É comum que pacientes com epistaxe se apresentem com pressão arterial elevada. A epistaxe é mais comum em pacientes hipertensos, talvez devido à fragilidade vascular decorrente da prolongada doença,4 mas pacientes com epistaxe e com pressão arterial normal não foram ainda devidamente investigados para hipertensão mascarada.
O fenômeno da hipertensão mascarada (HM) é definido como uma condição clínica em que o nível de pressão arterial (PA) no consultório é < 140/90 mmHg, mas as leituras ambulatoriais ou domiciliares para a PA se situam na faixa hipertensiva.4 A alta prevalência de HM sugere a necessidade da determinação da PA fora do consultório em pessoas com PA aparentemente normal ou bem controlada pelas mensurações no consultório.5
A prevalência de HM na população geral pode chegar a até 10%. Dados obtidos de diversos estudos transversais demonstraram grandes diferenças, com percentuais de prevalência desde somente 8% até um máximo de 49%.6,7 Hipertensão obtida pela monitoração ambulatorial da pressão arterial (MAPA) é definida quando a PA sistólica média obtida durante o dia é igual ou superior a 135 mm Hg ou quando a PA diastólica média, também obtida durante o dia, é igual ou superior a 85 mm Hg, de acordo com o sétimo relatório do Comitê Nacional Conjunto de Hipertensão nos EUA de 2003, da Sociedade Europeia de Hipertensão.8
O presente estudo teve por objetivo a avaliação da prevalência de HM com o uso da MAPA entre pacientes com epistaxe.
Este estudo prospectivo consistiu na revisão dos prontuários clínicos de pacientes com epistaxe leve-moderada-grave tratada por procedimento clínico ou cirúrgico entre dezembro de 2012 e janeiro de 2015. Todos os participantes deram seu consentimento informado. O protocolo do estudo foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital Kecioren (aprovação nº 185-09.01.2013)
Participaram do estudo 120 pacientes. Os pacientes foram separados em dois grupos: o grupo com epistaxe e o grupo controle, que não se apresentou com epistaxe. Cada grupo tinha 60 pacientes, 40 homens e 20 mulheres. A idade variou de 21 a 68 (média, 42,9) anos no grupo com epistaxe e de 18 a 71 (média, 42,2) anos no grupo controle. O critério de inclusão foi a presença de epistaxe espontânea (sem trauma nem cirurgia nasal) com PA normal no consultório e sem hipertensão conhecida. Os critérios de exclusão foram: paciente com doença hepática crônica, doença renal crônica e coagulopatia; em uso de anticoagulantes; com trauma nasal; com cirurgia nasal; e que já tinha apresentado hipertensão prévia.
Depois de determinada a PA dos pacientes e após a interrupção do sangramento por tratamento clínico ou cirúrgico, foram estudados os parâmetros de hemograma completo, relação normalizada internacional (RNI) e TTPA, foi feita uma ecocardiografia na clínica cardiológica e um dispositivo para MAPA de 24 horas (Holter) foi instalado em cada paciente.
PA normal no consultório foi definida como < 140/90 mm Hg. HM foi definida como um nível de PA do paciente obtido no consultório de < 140/90 mm Hg e parâmetros de MAPA na faixa hipertensiva (PA média de 24 horas ≥ 130/80 mm Hg e/ou média da PA obtida durante o dia ≥ 135/85 mm Hg e/ou média durante a noite ≥ 120/70 mm Hg).
Dados paramétricos e não paramétricos contínuos são apresentados na forma de média ± desvio padrão (DP) ou como mediana (variação), respectivamente. As variáveis não contínuas são apresentadas como percentuais. As variáveis categóricas foram comparadas com o teste do qui-quadrado de Pearson. As variáveis contínuas foram comparadas com o teste t de Student e U de Mann-Whitney. O programa Statistical Package for Social Science (SPSS Inc., versão 15.0 para Windows) foi usado para as análises estatísticas.
Foram recrutados 60 pacientes com epistaxe e 60 indivíduos controle f. A média de idade foi similar entre o grupo com epistaxe e os controles: 21-68 (média, 42,9) anos para o grupo com epistaxe e 18-71 (média, 42,2) anos para o grupo controle. Não foi observada diferença significante nas características demográficas e nos parâmetros laboratoriais e da ecocardiografia transtorácica entre os grupos.
Vinte pacientes (33,3%) no grupo com epistaxe e sete (11,7%) no grupo controle (p = 0,004) tinham HM. As figuras 1 e 2 ilustram os níveis para as PAs sistólica e diastólica no grupo com epistaxe e no grupo controle. Os parâmetros para as PAs no consultório e por MAPA estão apresentados na tabela 1.
Figura 1 As pressões arteriais diastólicas de dia e à noite foram significantemente mais altas para o grupo com epistaxe.
Figura 2 Diferença mais alta nas pressões arteriais sistólicas à noite entre os grupos controle e com epistaxe.
Tabela 1 Pressão arterial no consultório, pressão arterial ambulatória de 24 horas e sua comparação para os grupos controle e com epistaxe
Controle (n = 60) | Epistaxe (n = 60) | ||
---|---|---|---|
Média, faixa | Média, faixa | p | |
Pressão arterial no consultório (mm Hg) | |||
Sistólica | 120,3 (128-110) | 120,1(128-110) | 0,817 |
Diastólica | 74,2 (85-58) | 74,0 (85-55) | 0,840 |
PA média na MAPA (mm Hg) de 24 haste IM | |||
Sistólica | 121,1 (134-114) | 125,6 (149-99,5) | 0,012 |
Diastólica | 67,2 (87-51) | 75,7 (116-55) | 0,00 |
De dia | |||
Sistólica | 126,1 (145-107) | 127,2 (149-91) | 0,517 |
Diastólica | 71,4 (90-55) | 75,1 (95-54) | 0,009 |
À noite | |||
Sistólica | 109,2 (120-99) | 117,2 (139-88) | 0,00 |
Diastólica | 63,8 (75-48) | 68,2 (88-48) | 0,003 |
A PA diastólica obtida durante o dia, as PAs sistólica e diastólica de 24 horas, e as PAs sistólica e diastólica obtidas à noite estavam significantemente mais altas em pacientes com epistaxe vs. grupo controle. Mas não foi observada diferença significante na PA sistólica obtida durante o dia entre o grupo controle e os pacientes com epistaxe (p = 0,517).
Até onde sabemos, este estudo é o primeiro a investigar a prevalência de HM em pacientes com epistaxe. O estudo demonstrou maior prevalência de HM em pacientes com epistaxe.
Epistaxe e hipertensão são condições frequentes na população adulta. A relação entre o nível de pressão arterial e a incidência de epistaxe em pacientes com hipertensão é um tópico que surge frequentemente na prática clínica.
Apesar de se saber que uma hipertensão evidente é a principal causa de epistaxe espontânea, até a presente data nenhum estudo avaliou a relação entre HM e epistaxe. Em comparação com outros instrumentos de medida, a MAPA de 24 horas é mais válida, por prever um prognóstico, uma vez que avalia com maior precisão o risco de doença cardiovascular, em comparação com as determinações da PA feitas durante as consultas na clínica ou no consultório e MAPA também demonstra íntima relação com lesões ao órgão-alvo.9
Apenas um número limitado de estudos que envolvem MAPA avaliou pacientes com epistaxe. A razão provável é que, se determinado paciente se apresenta com uma PA normal no consultório, dificilmente qualquer otorrinolaringologista irá solicitar a MAPA.10 Estudos recentes sobre o tratamento de pacientes com epistaxe e hipertensão não mencionam a prevalência de HM em pacientes com epistaxe, apenas recomendam o uso da MAPA ou de dispositivos de monitoração para uso domiciliar, para um diagnóstico mais preciso de HM.11
Para as finalidades de nosso estudo, intencionalmente escolhemos pacientes com epistaxe e sem histórico de hipertensão. Este estudo encontrou elevada prevalência de HM em pacientes com epistaxe. HM estava presente em 20 (33,3%) pacientes no grupo com epistaxe e em sete (11,7%) no grupo controle. Page et al. demonstraram que uma epistaxe espontânea grave também poderia ser o sinal de apresentação de uma hipertensão ostensiva subjacente em cerca de 43% dos pacientes sem histórico de hipertensão.12 Esse achado poderia ser atribuído à seleção dos pacientes, pois Page et al. recrutaram pacientes exclusivamente com epistaxe grave. Comparando nossos resultados com aqueles na literatura disponível, podemos aventar a hipótese de que HM é mais prevalente em pacientes com epistaxe do que naqueles sem essa condição. Com base nesses resultados, consideramos que há necessidade de mais estudos em grande escala que incluam indivíduos provenientes de todo o espectro de pacientes com epistaxe e hipertensão arterial.
Em nosso estudo, empregamos critérios comuns, porém mais rígidos, para HM. Os critérios se justificam para uso em pacientes com epistaxe, diante da elevada prevalência de HM. Além disso, a PA sistólica obtida à noite foi significantemente mais elevada em pacientes com epistaxe vs. pacientes sem essa condição. Esse achado pode constituir evidência para a maior importância da hipertensão noturna na fisiopatologia da evolução da HM do que a simples presença da PA diurna. Mais estudos são necessários para que se possa ter uma compreensão mais aprofundada da fisiopatologia da evolução da HM.
O mecanismo pelo qual a HM poderia levar à ocorrência de epistaxe ainda permanece desconhecido. Um dos mecanismos pode estar relacionado à disfunção endotelial. Um estudo revelou que a presença de HM é um dos determinantes independentes de doença cardiovascular.6 Há um número pequeno de estudos publicados sobre o modo pelo qual a epistaxe influencia a HM ou a hipertensão noturna. Há necessidade de um controle apropriado da pressão arterial para a prevenção da epistaxe persistente com origem na área de Kiesselbach, no cenário clínico dos serviços de emergência.13 Em nossa prática clínica, a maioria dos pacientes com epistaxe foi internada no hospital à noite e a HM foi efetiva por demonstrar lesão a órgãos cardiovasculares. Portanto, esses pacientes devem ser submetidos a um estudo de MAPA.
Este estudo demonstrou que a prevalência de HM é mais elevada em pacientes com epistaxe. Sugerimos que todos os pacientes com epistaxe devam ser submetidos à MAPA para detecção de HM, que pode ser causa possível do sangramento.