versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.1 São Paulo jan/mar. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010ao1468
Desde que o primeiro artigo sobre embolização uterina foi publicado na literatura médica, em 1995(1), muito tem se apreendido sobre esse tratamento inovador. A farta quantidade de artigos científicos publicados ao longo dos últimos 13 anos fez com que o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas (ACOG) publicasse recentemente um boletim prático reconhecendo que a embolização uterina tem embasamento em Evidência Científica Nível A: boa e consistente(2). No Brasil, a técnica de embolização uterina ganhou adeptos rapidamente e vem sendo aplicada há quase dez anos, principalmente no sistema suplementar de saúde(3). Por se tratar de um procedimento que requer tecnologia apropriada, insumos específicos e recurso humano qualificado, a técnica de embolização uterina não é oferecida rotineiramente para pacientes que dependem do sistema público de saúde no Brasil. Certamente, a histerectomia é a forma de tratamento universalmente mais difundida para tratamento da miomatose sintomática no nível do Sistema Único de Saúde (SUS). Na tentativa de universalizar o acesso à tecnologia médica a pacientes de baixa renda, foi concebida a ideia de desenvolver uma unidade de radiologia intervencionista móvel que, de forma itinerante, pudesse oferecer o tratamento mediante embolização uterina a mulheres com miomatose sintomática em hospitais públicos da área metropolitana de São Paulo. Como não existem antecedentes sobre este conceito, decidiu-se investigar a sua viabilidade por meio de um estudo científico apropriado.
Apresentar os resultados preliminares de um estudo de viabilidade para desenvolvimento de uma unidade de radiologia intervencionista móvel.
Trata-se de um estudo prospectivo e descritivo de corte linear que foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Hospital Israelita Albert Einstein. Todos os pacientes que participaram assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
No período compreendido entre 17 de outubro de 2008 e 16 de janeiro de 2009, foram tratadas 40 pacientes portadoras de miomatose uterina com a técnica de embolização. Os procedimentos foram realizados em quatro hospitais públicos da área metropolitana de São Paulo: Hospital Leonor Mendes de Barros, Complexo Hospitalar Mandaqui, Hospital Regional de Cotia e Hospital Universitário de Jundiaí. Para isso, foi desenvolvida uma unidade de radiologia intervencionista móvel denominada ANGIOMÓVEL, que consistiu em um caminhão baú de pequeno porte para transportar um arco cirúrgico (Philips BV Púlsera), uma mesa radiológica, aventais de chumbo e gaiolas contendo todos os insumos necessários para a realização de exames angiográficos e procedimentos de embolização. A equipe do ANGIOMÓVEL foi constituída por dois médicos especialistas em radiologia intervencionista (NK e HE), uma enfermeira profissional (FG), um motorista e um assistente. Nesse período, o ANGIOMÓVEL realizou nove visitas. Cada hospital visitado forneceu uma sala vazia no centro cirúrgico ou obstétrico, onde os equipamentos foram posicionados e a sala de procedimentos montada temporariamente para realização das embolizações. As pacientes foram selecionadas pela equipe de ginecologia de cada hospital na base do protocolo aprovado pelo CEP. Os critérios de inclusão foram pacientes com miomatose sintomática, independentemente de tamanho, número ou localização de nódulos miomatosos, e com idade entre 25 e 50 anos. Todas as pacientes realizaram previamente exames clínicos e laboratoriais, incluindo um exame de ressonância magnética. Também responderam a um questionário validado para determinar o impacto da sintomatologia sobre a qualidade de vida(4). Todos os procedimentos foram realizados sobre anestesia peridural. Como agentes embólicos, foram utilizadas microesferas calibradas (BioSphere Med®). Os estudos angiográficos foram realizados com contraste não-iônico (Iopamiron 300®). As pacientes permaneceram internadas sob os cuidados da equipe de ginecologia. Após a alta, foram orientadas a comparecerem ao ambulatório da equipe de radiologia intervencionista. Foram investigadas variáveis como tempo de internação, demora para retomada pós-operatória das atividades, percepção de sintomatologia, grau de satisfação e se recomendariam o procedimento. Todas as pacientes foram orientadas a realizarem um exame de ressonância magnética 12 semanas após a embolização para verificar a grau de isquemia provocado nos miomas e a redução do volume uterino e dos miomas dominantes. Também responderam novamente ao questionário sobre qualidade de vida, e essas respostas foram comparadas àquelas respondidas antes do procedimento. Todos os dados colhidos foram consignados numa planilha do Microsoft Excel e analisados por meio de métodos estatísticos descritivos simples.
O procedimento de embolização foi realizado com sucesso em todas as 40 pacientes (100%) e não foi verificada qualquer complicação técnica. O tempo médio de procedimento foi de 43 minutos (17 a 140 minutos) e o tempo médio de fluoroscopia (radiação) de 24 minutos (8 a 53 minutos).
Ao todo foram utilizados em média 150 ml de contraste radiológico (50 a 350 ml) e 2,3 vidros de microesferas para embolização (1 a 7 vidros).
Todas as pacientes, com exceção de duas (95%), ficaram internadas durante um único dia; uma paciente ficou hospitalizada por dois dias e outra, três dias. A média de internação hospitalar foi de 1,07 dias.
Verificou-se, ainda, que a média de dias perdidos até retomada integral das atividades foi de 10 dias (2 a 30 dias). No acompanhamento clínico pós-operatório, 36 pacientes (90%) referiram melhora da sintomatologia e 4 permaneceram com sintomatologia igual à apresentada antes do tratamento. Em relação ao grau de satisfação, 28 pacientes afirmaram estar muito satisfeitas (70%), 10 pacientes disseram estar satisfeitas (25%) e duas se manifestaram insatisfeitas (5%). Na comparação dos escores obtidos pelos questionários sobre qualidade de vida, verificou-se uma mudança significativa. O escore médio relacionado com a gravidade dos sintomas passou de 58,6 pontos no pré-operatório para 15,46 pontos após o tratamento (quanto maior o escore, maior a gravidade dos sintomas) e o escore relacionado com a qualidade de vida como um todo passou de 39,3 pontos no pré-operatório para 87,06 pontos após o tratamento (quanto maior o escore, maior a qualidade de vida).
Na análise das ressonâncias magnéticas pré o pós-operatórias, verificou-se que houve isquemia completa dos miomas (objetivo da embolização) em 37 casos (92,5%). Verificou-se, ainda, que o volume médio dos úteros passou de 396 cc antes do tratamento para 245 cc após o tratamento, representando uma redução de 38%; o volume médio dos miomas dominantes passou de 112 cc antes do tratamento para 54 cc após o tratamento, uma redução de 52%.
A ressonância magnética demonstrou a eliminação total de miomas submucosos em cinco pacientes.
Como complicações clínicas pós-operatórias (30 dias), verificaram-se três re-internações para tratamento de dor, uma reinternação para retirada assistida de mioma necrosado intrauterino (parto), e um hematoma no sítio de punção arterial sem necessidade de terapia adicional.
A embolização uterina já é uma técnica aprovada universalmente como alternativa de tratamento da miomatose uterina. Inúmeros artigos científicos sobre este tema foram já publicados salientando as vantagens e benefícios do procedimento, inclusive vários estudos randomizados comparam a embolização a outras formas de tratamento(5–9).
Por isso, o objetivo deste estudo não foi abordar a embolização uterina como forma de tratamento, e sim o conceito de Unidade de Radiologia Intervencionista Móvel.
Sabe-se que entre os muitos hospitais da rede pública de saúde localizados na área metropolitana de São Paulo poucos são os que possuem serviços constituídos de radiologia intervencionista e, entre estes, menos ainda os que oferecem a embolização uterina de forma rotineira.
Na tentativa de melhorar esse panorama, foi concebido o conceito de “compartilhamento de tecnologia médica” mediante a criação de uma unidade itinerante para cobertura do atendimento em varias instituições e diferentes locais. O conceito de unidade móvel em saúde não é novo havendo sido já reportadas numerosas experiências em várias áreas da medicina(10–12). Mas na área de Radiologia Intervencionista, esse conceito, além de arrojado, é absolutamente inédito. Isso seria potencialmente possível graças ao desenvolvimento de equipamentos radiológicos portáteis (arcos cirúrgicos) de última geração que possuem qualidade de imagem e recursos de informática compatíveis e suficientes para a realização de procedimentos de radiologia intervencionista de forma eficiente e segura. A ideia era então explorar a principal característica desses equipamentos: a sua mobilidade.
Foi escolhida a embolização uterina como modelo por se tratar de uma técnica bastante simples e sem muitas variáveis técnicas, o que seria fácil equacionar num modelo de atendimento itinerante. Mas por se tratar de uma experiência absolutamente inédita, precisava ser testada mediante um estudo de viabilidade.
Os endpoints primários e secundários foram determinados para estabelecer a segurança e eficácia do tratamento utilizando essa metodologia. Como o objetivo do tratamento de embolização uterina é causar isquemia completa dos miomas e assim reduzir ou acabar com a sintomatologia desconfortável, estabeleceram-se como critérios principais de eficácia a evolução clínica e a mudança anatômica avaliada por ressonância magnética. Como a sintomatologia relacionada com a miomatose é geralmente bastante subjetiva (volume de sangramento, intensidade da dor, desconforto provocado pela ocupação de espaço, etc.) e considerando-se que se trata de uma doença absolutamente benigna, foi utilizado o conceito de impacto na qualidade de vida para avaliar a evolução clínica. Nesse sentido, os resultados obtidos vão ao encontro daqueles já reportados fartamente na literatura científica(13).
Obviamente, os resultados clínicos estão diretamente relacionados com o resultado técnico, o que na circunstância deste estudo é objeto da nossa análise. Os guidelines elaborados e publicados pela Sociedade Americana de Radiologia Intervencionista (Society of Interventional Radiology) recomendam para a embolização uterina um limiar de sucesso técnico de 96%, isso obviamente quando os procedimentos são realizados em salas convencionais que possuem equipamentos fixos de angiografia por subtração digital(14). Na nossa experiência, conseguimos completar a embolização uterina em todos os casos, mesmo trabalhando com um equipamento portátil. Uma das considerações importantes da embolização uterina é a radiação a que a pelve feminina é exposta e a possibilidade de causar algum impacto negativo sobre a função ovariana. Essa possibilidade está diretamente relacionada com o tempo de procedimento e principalmente com o tempo de exposição radiológica provocada pela utilização da fluoroscopia. Estudos previamente publicados indicam que um tempo médio de radiação seguro para a embolização uterina deveria ser de 25 minutos, o que em termos de dose de radiação equivale a um exame radiológico contrastado de intestino(15–16). Verificamos, assim, que a nossa técnica respeitou esses princípios mesmo com condições diferentes.
A segurança do tratamento avalia-se pela frequência de desfechos negativos, e já foi reportado que as complicações pós-operatórias da embolização uterina são pouco frequentes e pouco graves(17). A nossa experiência não foi diferente disso e, portanto, pode-se afirmar que o tratamento foi absolutamente seguro.
Por último, vale a pena salientar um novo conceito que esta experiência trouxe à nossa prática como profissionais da área assistencial. Acostumados a proporcionar assistência em saúde, desenvolver pesquisas clínicas ou experimentais e trabalhar com programas educacionais de capacitação e treinamento, adquirimos agora um novo conceito para a nossa prática: o conceito de Responsabilidade Social cujo significado é direcionar o nosso conhecimento e uma pequena parte do nosso tempo em benefício daqueles que rotineiramente não têm acesso à nossa atividade. Essa é seguramente uma forma de reforçar a nossa identidade e desenvolver a nossa atividade.
Os resultados preliminares do estudo indicam que a utilização de uma unidade de radiologia intervencionista móvel é viável, eficiente e segura para promover um programa de embolização uterina em hospitais da rede pública que não possuem esta tecnologia. É uma alternativa válida para que mulheres de baixa renda tenham também acesso à tecnologia de ponta para tratamento de miomas. Em definitiva, essa atividade de responsabilidade social objetiva levar um pouco mais de cidadania a essa parcela menos favorecida da população.