versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.3 São Paulo mar. 2018 Epub 19-Fev-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180026
O risco cardiovascular das diversas comunidades indígenas não está bem estabelecido e pode ser influenciado pelo processo de urbanização a que se submetem esses povos.
Investigar o perfil da mortalidade cardiovascular (CV) das populações indígenas durante o rápido processo de urbanização altamente influenciado por intervenções governamentais de infraestrutura no Nordeste do Brasil.
Avaliamos a mortalidade de populações indígenas (≥ 30 anos) do Vale do São Francisco (Bahia e Pernambuco) no período de 2007-2011. Considerou-se mortalidade CV se a causa de morte constasse no grupo de doenças CV do CID-10 ou se tivesse sido registrada como morte súbita. As populações indígenas foram divididas em dois grupos conforme o grau de urbanização baseado em critérios antropológicos: Grupo 1 - menos urbanizadas (Funi-ô, Pankararu, Kiriri e Pankararé); e Grupo 2 - mais urbanizadas (Tuxá, Truká e Tumbalalá). Taxas de mortalidade de cidades altamente urbanizadas (Petrolina e Juazeiro) nas proximidades das áreas indígenas foram também avaliadas. A análise explorou tendências na porcentagem de mortalidade CV para cada população estudada. Adotou-se o valor de p < 0,05 como significância estatística.
Houve 1.333 mortes indígenas nas tribos da Bahia e de Pernambuco (2007-2011): 281 no Grupo 1 (1,8% da população de 2012) e 73 no Grupo 2 (3,7% da população de 2012), mortalidade CV de 24% e 37%, respectivamente (p = 0,02). Entre 2007 e 2009, houve 133 mortes no Grupo 1 e 44 no Grupo 2, mortalidade CV de 23% e 34%, respectivamente. Entre 2009 e 2010, houve 148 mortes no Grupo 1 e 29 no Grupo 2, mortalidade CV de 25% e 41%, respectivamente.
A urbanização parece influenciar os aumentos de mortalidade CV dos povos indígenas vivendo de modo tradicional. Mudanças no estilo de vida e ambientais devidas à urbanização somadas à subótima atenção à saúde podem estar implicadas no aumento do risco CV nos povos indígenas.
Palavras-chave: População Indígena; Doenças Cardiovasculares / mortalidade; Urbanização / tendências; Mudança Social
The cardiovascular risk burden among diverse indigenous populations is not totally known and may be influenced by lifestyle changes related to the urbanization process.
To investigate the cardiovascular (CV) mortality profile of indigenous populations during a rapid urbanization process largely influenced by governmental infrastructure interventions in Northeast Brazil.
We assessed the mortality of indigenous populations (≥ 30 y/o) from 2007 to 2011 in Northeast Brazil (Bahia and Pernambuco states). Cardiovascular mortality was considered if the cause of death was in the ICD-10 CV disease group or if registered as sudden death. The indigenous populations were then divided into two groups according to the degree of urbanization based on anthropological criteria:9,10 Group 1 - less urbanized tribes (Funi-ô, Pankararu, Kiriri, and Pankararé); and Group 2 - more urbanized tribes (Tuxá, Truká, and Tumbalalá). Mortality rates of highly urbanized cities (Petrolina and Juazeiro) in the proximity of indigenous areas were also evaluated. The analysis explored trends in the percentage of CV mortality for each studied population. Statistical significance was established for p value < 0.05.
There were 1,333 indigenous deaths in tribes of Bahia and Pernambuco (2007-2011): 281 in Group 1 (1.8% of the 2012 group population) and 73 in Group 2 (3.7% of the 2012 group population), CV mortality of 24% and 37%, respectively (p = 0.02). In 2007-2009, there were 133 deaths in Group 1 and 44 in Group 2, CV mortality of 23% and 34%, respectively. In 2009-2010, there were 148 deaths in Group 1 and 29 in Group 2, CV mortality of 25% and 41%, respectively.
Urbanization appears to influence increases in CV mortality of indigenous peoples living in traditional tribes. Lifestyle and environmental changes due to urbanization added to suboptimal health care may increase CV risk in this population.
Keywords: Indigenous Population; Cardiovascular Diseases / mortality; Urbanization / trends; Social Change
O processo de urbanização é uma preocupação em países em desenvolvimento, pois influencia a prevalência de fatores de risco cardiovascular (CV) e doença coronariana.1 Na verdade, um processo precoce de mudanças no estilo de vida parece levar ao aumento do risco CV quando os migrantes rurais se estabelecem em áreas metropolitanas.2 Além disso, populações indígenas tradicionais apresentam maior risco para complicações CV.3
Diversas doenças infecciosas causaram graves problemas de saúde quando os europeus inicialmente entraram em contato com populações indígenas americanas nativas. Ao longo dos anos, observou-se um desvio das taxas de mortalidade indígena na direção das doenças crônicas afetadas por mudanças no estilo de vida, que varia muito nas diferentes populações nativas.4-6 Recentemente, alguns indígenas isolados no Brasil ainda apresentavam pressão arterial baixa, o que parece estar relacionado ao seu estilo de vida tradicional.7,8
Projetos infraestruturais maiores podem rapidamente influenciar populações nas áreas vizinhas, com frequência afetando comunidades indígenas. Mais recentemente, o Vale do São Francisco no Nordeste do Brasil vem experienciando grandes mudanças de infraestrutura, em particular no que concerne à construção de grandes represas e canais, que parecem afetar o tradicional estilo de vida indígena na área.9,10 Não está claro, entretanto, como o processo de urbanização vem interferindo na mortalidade CV nas comunidades indígenas nativas ao longo dos anos.
O Projeto de Aterosclerose Nas Populações Indígenas (PAI) foi criado para investigar o impacto da urbanização sobre as doenças CV nas comunidades indígenas no Vale do São Francisco. Neste estudo, analisamos o perfil da mortalidade CV das populações indígenas durante o rápido processo de urbanização altamente influenciado por intervenções governamentais de infraestrutura no Vale do São Francisco. Para tal, avaliamos dados longitudinais sobre taxas de mortalidade de populações indígenas e não indígenas com diferentes graus de urbanização.
Coletamos dados de mortalidade indígena no Vale do São Francisco, dos estados da Bahia e de Pernambuco, entre 2007 e 2011, excluindo as mortes abaixo de 30 anos de idade. Obtivemos ainda, a partir de dados fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população total do Vale do São Francisco.
As populações indígenas foram divididas em dois grupos conforme o grau de urbanização baseado em avaliações antropológicas prévias:9,10 Grupo 1 - tribos menos urbanizadas (Funi-ô, Pankararu, Kiriri e Pankararé); e Grupo 2 - tribos mais urbanizadas (Tuxá, Truká e Tumbalalá).
Obtivemos ainda a mortalidade da população total de duas cidades importantes e altamente urbanizadas do Vale do São Francisco: Juazeiro e Petrolina. O comitê de ética da Universidade do Vale do São Francisco aprovou este estudo.
O Subsistema Brasileiro de Atenção à Saúde Indígena atualmente é responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena, uma seção do Ministério da Saúde, que, desde 2007, implementou um programa de vigilância de mortalidade.11,12 Avaliou-se a mortalidade indígena a partir dos registros oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Para a mortalidade nas cidades maiores do Vale do São Francisco, usou-se o registro do Ministério da Saúde Brasileiro (DATASUS/TABNET: http://datasus.saude.gov.br/). Classificou-se mortalidade de acordo com os grupos da CID-10. Considerou-se mortalidade CV quando a causa constava no grupo de doenças CV do CID-10 ou se tivesse sido registrada como morte súbita.
Realizou-se análise exploratória para mostrar as tendências da mortalidade CV nas diversas populações indígenas ao longo do tempo. Tais tendências da mortalidade CV em adultos (≥ 30 anos de idade) foram apresentadas como porcentagem do total de mortes na mesma faixa etária para todas as comunidades indígenas no Vale do São Francisco e conforme o grupo de urbanização (tribos menos urbanizadas no Grupo 1, tribos mais urbanizadas no Grupo 2 e cidades altamente urbanizadas). O teste de igualdade de proporções avaliou diferenças nas taxas de mortalidade CV entre as populações indígenas. Adotou-se o valor de p < 0,05 como significância estatística. STATA 10 foi usado para os cálculos estatísticos.
Nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas da Bahia e de Pernambuco, 75.635 indivíduos estavam registrados como indígenas. Desses, 25.560 estavam morando nas tribos do Vale do São Francisco avaliadas neste estudo, a maioria nas menos urbanizadas do Grupo 1 (Tabela 1).
Tabela 1 Descrição das populações indígenas da Bacia do Rio São Francisco de acordo com os grupos do estudo
Grupos | Etnia | População¥ | Povoados | Total de mortes* |
---|---|---|---|---|
Grupo 1 | Funi-ô | 4.564 | 7 | 58 |
Pankararu | 7.650 | 27 | 161 | |
Kiriri | 2.185 | 15 | 36 | |
Pankararé | 1.535 | 11 | 26 | |
TOTAL | 15.934 | 281 | ||
Grupo 2 | Tuxá | 1.665 | 11 | 26 |
Truká | 6.741 | 36 | 39 | |
Tumbalalá | 1.220 | 8 | 8 | |
TOTAL | 9.626 | 73 |
¥Como registrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2012;
*Mortes de indígenas ≥ 30 anos, entre 2007 e 2011.
Houve tendência para mortalidade em idade mais precoce no período 2010-2011 quando comparado ao período 2007-2009 (Figura 1).
Figura 1 Distribuição da mortalidade nas comunidades indígenas do Vale do São Francisco de acordo com a faixa etária.
Registrou-se um total de 1.333 mortes entre os adultos indígenas do Vale do São Francisco, a saber: 281 mortes (1,8% da população em 2012) no Grupo 1; e 73 mortes (3,7% da população em 2012) no Grupo 2. Entre 2007 e 2009, houve 133 mortes no Grupo 1 e 44 mortes no Grupo 2. Entre 2009 e 2010, houve 148 mortes no Grupo 1 e 29 mortes no Grupo 2. A Tabela 1 mostra o número absoluto de mortes de indígenas no Vale do São Francisco de acordo com os grupos do estudo.
A mortalidade CV apresentou aumentos consistentes ao longo do tempo nas populações indígenas avaliadas. Por outro lado, a mortalidade CV mostrou reduções consistentes nas maiores cidades do Vale do São Francisco (Figura 2).
Figura 2 Mortalidade cardiovascular nas populações indígena e urbana no Vale do São Francisco com idade ≥ 30 anos. Total de indígenas refere-se ao total de mortes nas populações indígenas no Vale do São Francisco.
Quando se considerou o grau de urbanização para todo o período de observação, as taxas de mortalidade CV foram 24% e 37% no Grupo 1 e Grupo 2, respectivamente (p = 0,02). Observou-se ainda uma tendência a aumento mais acentuado da mortalidade CV no Grupo 2 ao longo do tempo, enquanto o Grupo 1 apresentou taxas quase estáveis de morte CV (Figura 3).
Pela primeira vez na literatura, mostramos que a mortalidade indígena no Vale do São Francisco tendeu a ocorrer em uma idade mais precoce no período estudado, com aumento crescente de mortes CV. A elevação nas taxas de mortalidade CV no povo indígena que vive em uma área de rápido desenvolvimento infraestrutural pode indicar que tal população acha-se ameaçada devido a mudanças relacionadas ao processo de urbanização. Conhecer o risco e a mortalidade CV pode auxiliar no planejamento de políticas de saúde para populações indígenas tradicionais ameaçadas.
Analisamos as taxas de mortalidade disponíveis, que, em geral, são uma fonte confiável de informação, para explorar a carga CV indígena no Vale do São Francisco no Nordeste do Brasil. Tal área tem experimentado um acelerado desenvolvimento infraestrutural, como a construção de grandes canais e represas. Recentemente, usinas hidroelétricas foram erguidas ao longo do rio São Francisco, que agora tem a maior concentração dessas usinas no Brasil.9 Nossos achados indicam que as populações indígenas tradicionais afetadas pelo rápido processo de urbanização apresentam maior risco de mortalidade CV.
A relação entre urbanização e risco CV pode ir além da etnia. Nesse aspecto, afro-americanos apresentaram maiores taxas de mortalidade por doença coronariana do que os brancos, mas parece haver disparidades adicionais conforme o grau de urbanização da população. As taxas de mortalidade por doença coronariana ao longo dos anos mostraram maior declínio nas grandes metrópoles do que nas áreas rurais.13 Achados semelhantes foram relatados em vários países.14-16 Há escassez de relatos sobre a saúde indígena no Brasil, mas pesquisas sugerem que o perfil de risco CV do povo indígena seja menos favorável do que o da população geral.17,18 É importante notar que diferenças no estilo de vida concernentes a risco CV são observadas em comunidades tradicionais intimamente relacionadas.19 Na verdade, mudanças rápidas no estilo de vida afetam populações indígenas de maneira diferente das populações de áreas urbanas.20
Parece que não só os fatores de risco estão aumentando entre os indígenas; as complicações relacionadas à qualidade da atenção à saúde são alarmantes. Há evidência de que a urbanização afeta diretamente a qualidade da atenção à saúde de certa área.21 Além disso, desvantagens socioeconômicas parecem não explicar completamente a crescente tendência de risco CV nas populações indígenas. Regiões povoadas principalmente por indígenas mostraram aumento do risco CV para além dos efeitos das desvantagens socioeconômicas.3,22 Isso pode estar relacionado às dificuldades das populações indígenas de interagirem com outras etnias no que se refere à medicina tradicional.23
A dinâmica clássica esperada da epidemiologia para povos indígenas no Brasil baseou-se em duas etapas iniciais mais intimamente relacionadas às doenças infecciosas, e em uma terceira de transição epidemiológica e perdas culturais. Esse terceiro período seria caracterizado por aumento das condições crônicas, como doença CV, e emergência de um perfil epidemiológico similar àquele das comunidades não indígenas.24 Nossos achados sugerem que a quarta etapa epidemiológica possa estar a caminho, na qual a ocorrência de doenças CV nos povos indígenas não seja similar àquela na população geral, mas maior. Tais achados podem ser explicados pelas rápidas mudanças no estilo de vida e ambientais, além de uma pior qualidade da atenção à saúde.
Nosso estudo tem várias limitações e deve ser interpretado no contexto de uma investigação exploratória. Além disso, esteve limitado à avaliação dos aumentos dos fatores de risco CV, pois analisamos dados secundários de mortalidade. Portanto, preocupação quanto a potencial viés de classificação certamente se aplica. Embora grandes mudanças infraestruturais tenham historicamente afetado o estilo de vida indígena, a magnitude do impacto deletério da urbanização no perfil dos fatores de risco CV desses grupos não foi totalmente esclarecida. Aumentos de pressão arterial, obesidade e anormalidades glicêmicas são exemplos de fatores de risco CV conhecidos que podem levar a alterações cardíacas subclínicas antes que um evento CV se estabeleça.25-27 Estudos adicionais no contexto do projeto PAI estão planejados para abordar anormalidades subclínicas precoces nessas populações.
Concluindo, mostramos tendência crescente da mortalidade CV ao longo do tempo nas populações indígenas do Vale do São Francisco, que parecem ser negativamente afetadas por um mais alto grau de urbanização. Mudanças no estilo de vida e ambientais devidas à urbanização somadas à subótima atenção à saúde podem estar implicadas no aumento do risco CV nos povos indígenas.