versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.12 Rio de Janeiro dez. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152112.24212015
Os medicamentos representam a principal tecnologia no manejo dos agravos agudos e crônicos à saúde1. Apesar do risco de eventos adversos, contribuem significativamente para o aumento da expectativa e qualidade de vida da população2,3. O consumo de medicamentos está relacionado a aspectos socioeconômicos e demográficos, ao acesso a serviços de saúde, aos hábitos de vida e à própria presença de agravos de saúde, especialmente os crônico-degenerativos4,5.
Nesse contexto, destacam-se as condições de trabalho, as quais podem dificultar o acesso e a adesão ao tratamento medicamentoso6, assim como aumentar o risco de ocorrência de agravos à saúde e, consequentemente, elevar o consumo de medicamentos, principalmente, devido ao estresse gerado ou pelas condições insalubres do ambiente de trabalho7. Dessa forma, determinadas profissões podem apresentar diferenças no perfil de consumo de medicamentos.
Sendo assim, alguns segmentos da sociedade são poucos explorados quanto ao perfil e fatores associados ao consumo de medicamentos. Percebe-se que os estudos epidemiológicos buscam realizar tais investigações na população geral4,5, crianças8, adolescentes9, idosos10 ou gestantes11. No entanto, há escassez de estudos em grupos populacionais com exposições ocupacionais específicas, como os motoristas de caminhão.
Esses profissionais são, em sua maioria, do sexo masculino12,13, casados ou em união estável13-16, apresentam baixa escolaridade13,14,17-19 e elevada experiência profissional20. Além disso, estudos têm revelado a maior vulnerabilidade de motoristas de caminhão a diferentes agravos à saúde, tais como doenças sexualmente transmissíveis20,21, uso de substâncias psicoativas13,18,22, acidentes de trânsito17,23, dores crônicas devido às cargas de trabalho19,24,25, entre outros. Por outro lado, o perfil de doenças e o consumo de medicamentos têm sido pouco explorados nessa população de trabalhadores.
Os motoristas de caminhão apresentam necessidades de acesso aos profissionais e serviços de saúde que podem ser similares às da população geral ou peculiares de sua atividade laboral26, e também devem ser alcançados por estratégias para promoção do uso seguro e correto de medicamentos. Estratégias no sentido de fornecer assistência na área da saúde ao motorista de caminhão têm surgido em alguns pontos de parada nas estradas e promovidas por entidades como o Serviço Social do Transporte (SEST) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT)27,28.
Vale destacar que estudo realizado por Guedes et al.29 demonstrou que somente 29,4% dos motoristas de caminhão procuram a atenção primária para o tratamento de seus problemas de saúde, indicando a necessidade de maior compreensão deste fenômeno, em especial no que tange ao uso de medicamentos. No entanto, ainda existe uma importante lacuna de estudos que investiguem as características do consumo de medicamentos por motoristas. Dessa forma, o objetivo deste estudo foi evidenciar o uso contínuo de medicamentos, assim como identificar características profissionais associadas ao uso, por motoristas de caminhão frequentadores do Porto de Paranaguá, Paraná, Brasil.
Estudo de delineamento transversal realizado com motoristas de caminhão estacionados no Pátio de Triagem do Porto de Paranaguá, Paraná. O Pátio de Triagem é um local anexo do referido Porto, no qual os motoristas de caminhão aguardam a triagem dos grãos (soja, milho e farelo de soja) provenientes da safra agrícola do Brasil e descarga nos complexos de silo do Porto de Paranaguá.
Anteriormente à coleta de dados, foi realizado um estudo piloto no referido pátio, no qual se avaliou a logística de funcionamento do local de coleta, o fluxo de veículos, a sistemática de estacionamento dos caminhões no pátio, e aplicou-se um pré-teste do instrumento de coleta dos dados com dez motoristas. No pré-teste, buscou-se verificar a viabilidade de aplicação e adequação da linguagem do instrumento à população de estudo.
O instrumento de coleta constituiu de um formulário, com o qual se obtiveram informações referentes a características sociodemográficas e econômicas, hábitos de vida, agravos à saúde, condições de trabalho e utilização de medicamentos. A amostra de estudo foi definida com o uso do programa StatCalc, população infinita, estimativa de prevalência de 50% e erro de 4%, totalizando 600 indivíduos. Foram excluídos deste estudo os motoristas que relataram menos de um ano de profissão.
A coleta de dados ocorreu no mês de julho de 2012, sendo realizada por pesquisadores devidamente treinados. A amostragem foi por conveniência, pois a sistemática de distribuição dos motoristas no pátio era indefinida. Durante a coleta, dois pesquisadores percorriam todo o pátio do Porto, abordando os motoristas localizados nos seus veículos, outros dois permaneciam nos pontos de concentração dos motoristas para alimentação ou aquisição de produtos diversos, e outros três em um ponto fixo, atendendo motoristas que buscavam voluntariamente informações sobre a investigação.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Londrina. Os motoristas, antes do inquérito, foram informados sobre os objetivos da pesquisa, e leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A variável dependente analisada foi o consumo contínuo de medicamentos. Para avaliar esta variável, questionou-se, no momento da entrevista, se o motorista fazia uso de algum medicamento de forma contínua. Caso a resposta fosse sim, perguntava-se quais medicamentos estavam sendo utilizados, averiguando-se a prescrição médica ou a embalagem do medicamento, quando disponível. Os medicamentos utilizados foram listados por seus nomes genéricos e classificados posteriormente obedecendo à classificação da Anatomical Therapeutic Chemical Classification (ATC), da Organização Mundial de Saúde, de acordo com o primeiro subgrupo, o qual corresponde ao grupo terapêutico30.
As variáveis independentes (características profissionais) foram: tempo de trabalho como motorista (abaixo de dezesseis anos; dezesseis anos ou mais), turno de trabalho (fixo; alternado), propriedade do caminhão (do empregador; do motorista), vínculo empregatício (sim; não), renda como motorista (abaixo de R$ 2.500,00; R$ 2.500,00 ou mais), direção por mais de oito horas ininterruptas (sim; não), direção estando bastante cansado (sim; não) e característica salarial (apenas fixo; produtividade ou fixo+produtividade). As variáveis tempo de trabalho e renda como motorista foram categorizadas conforme o valor da mediana.
As variáveis de caracterização foram sociodemográficas e econômicas (faixa etária, escolaridade, situação conjugal e acesso a plano de saúde privado) e agravos de saúde autorrelatados. Todos os problemas de saúde foram identificados mediante o autorrelato do motorista de caminhão e convertidos em linguagem médica apropriada. As variáveis faixa etária (40 anos ou menos; mais de 40 anos), escolaridade (menos de oito anos de estudo; oito anos de estudo ou mais) e acesso a plano de saúde (sim; não) também foram utilizadas como variáveis de controle.
As informações foram duplamente digitadas em banco de dados do programa Epiinfo 3.5.4®, para Windows®, sendo comparadas no mesmo programa. A análise dos dados foi realizada com o uso do programa SPSS, versão 19.0. Windows®. Para as variáveis qualitativas calcularam-se as frequências simples e, para as quantitativas, as medidas de tendência central e de dispersão (média e desvio padrão). Para determinar a associação entre as relacionadas às características profissionais e o uso contínuo de medicamentos utilizou-se a Regressão de Poisson com variância robusta e intervalo de confiança de 95% (IC 95%), com estimativa da Razão de Prevalência (RP), realizando-se análise não ajustada e ajustada (por faixa etária, escolaridade e acesso a plano de saúde). Para determinação da significância estatística, considerou-se valor de p < 0,05.
Durante o período de coleta foram abordados 773 motoristas, ocorrendo 5 (cinco) exclusões devido ao tempo de profissão como motorista de caminhão ser inferior a um ano. Dos 768 restantes, 98 (12,8%) recusaram-se a participar. Dos 670 motoristas que iniciaram a entrevista, cinco foram chamados para descarregar seus veículos e não forneceram todas as informações necessárias. Dessa forma, compuseram este estudo 665 motoristas de caminhão. Todos eram do sexo masculino e a idade média de 41,9 anos (Desvio padrão [DP] = 11,1 anos), com 50,2% apresentando mais de 40 anos. A maioria (58,5%) apresentou, no máximo, oito anos de estudo, relatou viver conjugalmente com companheira (84,8%) e não ter acesso a plano privado de saúde (70,4%).
O tempo médio de experiência como motorista de caminhão foi de 18,2 anos (DP = 11,4), variando de um a 57 anos, com 51,1% referindo ter mais de 16 anos de experiência. A maioria dos motoristas relatou turno alternado de trabalho (74,4%), não ser proprietário do caminhão (68,7%), possuir vínculo empregatício (62,4%) e receber salário baseado na produtividade (89,3%).
A maior parte dos motoristas (n = 421; 63,3%) relatou algum problema de saúde, num total de 683, destacando-se dores crônicas em geral (braços, pernas ou costas) (35,6%), hipertensão arterial sistêmica (HAS) (16,2%), dislipidemias (12,6%), hemorroidas (8,7%) e diabetes mellitus (DM) (7,5%). Em média, os entrevistados apresentaram 1,03 agravos de saúde (DP = 1,05), com mínimo de zero e máximo de cinco.
Dos 670 motoristas entrevistados, 140 (21,1%) referiram utilizar continuamente algum medicamento no momento da investigação. Destes, 72,9% e 18,6% utilizavam um e dois medicamentos, respectivamente. No total, 194 medicamentos foram relatados, com uma média de 1,38 (DP = 0,70) por motorista e, no máximo, quatro medicamentos por motorista. Os medicamentos mais citados pelos entrevistados foram captopril (10,7%), metformina (10,3%), omeprazol (6,2%), sinvastatina (6,2%), enalapril (5,6%) e hidroclorotiazida (5,2%) (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos medicamentos utilizados por motoristas de caminhão segundo grupo terapêutico, Porto de Paranaguá, Paranaguá, Paraná, Brasil (n = 194).
Grupo Terapêutico* | n | % | |
---|---|---|---|
Medicamentos que agem no sistema renina angiotensina (C09) | 44 | 22,6 | |
Captopril | 21 | 10,7 | |
Enalapril | 11 | 5,6 | |
Losartam | 6 | 3,1 | |
Valsartam | 5 | 2,7 | |
Candesartam | 1 | 0,5 | |
Medicamentos utilizados na diabetes (A10) | 33 | 17,0 | |
Metformina | 20 | 10,3 | |
Glibenclamida | 8 | 4,2 | |
Glicazida | 3 | 1,5 | |
Glimepirida | 1 | 0,5 | |
Insulina | 1 | 0,5 | |
Medicamentos para desordens relacionadas à acidez (A02) | 14 | 7,2 | |
Omeprazol | 12 | 6,2 | |
Lansoprazol | 1 | 0,5 | |
Pantoprazol | 1 | 0,5 | |
Medicamentos modificadores de | 14 | 7,2 | |
lipídeos (C10) | |||
Sinvastatina | 12 | 6,2 | |
Atorvastatina | 1 | 0,5 | |
Fenofibrato | 1 | 0,5 | |
Medicamentos betabloqueadores (C07) | 13 | 6,7 | |
Atenolol | 7 | 3,7 | |
Metoprolol | 3 | 1,5 | |
Propranolol | 3 | 1,5 | |
Diuréticos (C03) | 10 | 5,2 | |
Hidroclorotiazida | 10 | 5,2 | |
Medicamentos anti-inflamatórios e antirreumáticos (M01) | 7 | 3,7 | |
Diclofenaco e associações | 5 | 2,7 | |
Diclofenaco | 1 | 0,5 | |
Nimesulida | 1 | 0,5 | |
Medicamentos antitrombóticos (B01) | 7 | 3,7 | |
Ácido Acetilsalicílico | 5 | 2,7 | |
Varfarina | 2 | 1,0 | |
Outros grupos terapêuticos** | 34 | 17,5 |
*Não foram apresentados 18 (9,2%) medicamentos não identificados;
**Todos os grupos terapêuticos com frequência inferior a 2,0%.
No que se refere ao tratamento medicamentoso dos cinco principais agravos referidos pelos motoristas de caminhão, a HAS e DM apresentaram os maiores percentuais de tratamento (47,2% e 48,0%, respectivamente). Por outro lado, as dores crônicas musculoesqueléticas referidas pelos motoristas apresentaram percentual de tratamento de 2,5% e as hemorroidas de 3,4% (Tabela 2).
Tabela 2 Tratamento medicamentoso dos cinco principais agravos de saúde referidos pelos motoristas de caminhão, Porto de Paranaguá, Paranaguá, Paraná, Brasil, 2012 (n = 421).
Agravos de Saúde Referidos | n | Tratamento medicamentoso n (%) |
---|---|---|
Dor crônica musculoesquelética | 237 | 6 (2,5) |
Hipertensão arterial sistêmica | 108 | 51 (47,2) |
Dislipidemias | 84 | 10 (11,9) |
Hemorroidas | 58 | 2 (3,4) |
Diabetes mellitus | 50 | 24 (48,0) |
As características profissionais que se apresentaram associadas ao uso contínuo de medicamentos no modelo não ajustado foram o tempo de experiência como motorista igual ou superior a 16 anos; a propriedade do caminhão do próprio motorista; e não ter vínculo empregatício (sem registro em carteira de trabalho). Após os ajustes realizados (por faixa etária, escolaridade e acesso a plano de saúde), estas variáveis mantiveram-se associadas ao uso contínuo de medicamentos: tempo de experiência como motoristas igual ou superior a 16 anos (RP 1,67; IC 95% 1,11-2,51); propriedade do caminhão do próprio motorista (RP 1,38; IC 95% 1,03-1,86) e não ter vínculo empregatício (RP 1,49; IC 95% 1,11-2,00) (Tabela 3). A maior faixa etária (mais de 40 anos) também se mostrou associada ao uso contínuo de medicamentos em todas as análises ajustadas realizadas.
Tabela 3 Associação entre características profissionais e uso contínuo de medicamentos por motoristas de caminhão (não ajustada e ajustada), Porto de Paranaguá, Paranaguá, Paraná, Brasil, 2012 (n = 665).
Variáveis | Total | Uso Contínuo de Medicamentos | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | RP (IC 95%) Nâo ajustada |
RP (IC 95%) Ajustadaa |
||
Tempo de trabalho (em anos) | |||||||
Abaixo de dezesseis | 325 | 48,9 | 39 | 12,0 | 1,00 | 1,00 | |
Dezesseis ou mais | 340 | 51,1 | 101 | 29,7 | 2,48 (1,77-3,47)*** | 1,67 (1,11-2,51)* | |
Turno de trabalho | |||||||
Fixo | 170 | 25,6 | 32 | 18,8 | 1,00 | 1,00 | |
Alternado | 495 | 74,4 | 108 | 21,8 | 1,16 (0,81-1,66) | 1,03 (0,73-1,45) | |
Propriedade do caminhão | |||||||
Empregador | 457 | 68,7 | 85 | 18,6 | 1,00 | 1,00 | |
Motorista | 208 | 31,3 | 55 | 26,4 | 1,42 (1,07-1,91)* | 1,38 (1,03-1,86)* | |
Vínculo empregatício | |||||||
Sim | 415 | 62,4 | 74 | 17,8 | 1,00 | 1,00 | |
Não | 250 | 37,6 | 66 | 26,4 | 1,48 (1,11-1,98)** | 1,49 (1,11-2,00)** | |
Renda como motorista (em Reais) | |||||||
Abaixo de 2.500,00 | 390 | 58,6 | 74 | 19,0 | 0,79 (0,59-1,06) | 0,81 (0,61-1,07) | |
2.500,00 ou mais | 275 | 41,4 | 66 | 24,0 | 1,00 | 1,00 | |
Direção por mais de oito horas ininterruptas | |||||||
Sim | 101 | 15,2 | 18 | 17,8 | 0,82 (0,53-1,29) | 0,85 (0,55-1,31) | |
Não | 564 | 84,8 | 122 | 21,6 | 1,00 | 1,00 | |
Direção estando bastante cansado | |||||||
Sim | 168 | 25,3 | 30 | 17,9 | 0,81 (0,56-1,16) | 0,93 (0,65-1,32) | |
Não | 497 | 74,7 | 110 | 22,1 | 1,00 | 1,00 | |
Característica salarial | |||||||
Apenas fixo | 71 | 10,7 | 13 | 18,3 | 1,00 | 1,00 | |
Produtividade ou fixo + produtividade | 594 | 89,3 | 127 | 21,4 | 1,17 (0,70-1,95) | 1,02 (0,62-1,68) |
RP: Razão de Prevalência; IC: Intervalo de Confiança.
aAjustado por faixa etária, escolaridade e acesso a plano de saúde.
*p < 0,05;
**p < 0,01;
***p < 0,001.
As dores crônicas musculoesqueléticas, em geral, mostraram-se como um importante agravo referido pelos motoristas avaliados, o que se assemelha com estudos prévios que avaliaram essa categoria profissional19,24,25,31. A função do motorista não se restringe à direção do caminhão, havendo a necessidade de efetuar ou auxiliar no carregamento ou descarga dos produtos transportados32, além da direção por muitas horas ininterruptas, o que pode elevar o risco de lesões e agravos à saúde33,34.
A presença de fatores de risco cardiovascular (HAS, DM e dislipidemias) também foi mencionado por outros motoristas avaliados no Brasil19,35-39, ainda que inferiores aos relatados em estudos de prevalência de base populacional40-43, em especial a HAS44,45. Acredita-se que esta situação ocorra devido ao fato de as informações autorreferidas sofrerem influência do subdiagnóstico, não entendimento da própria condição, ou a opção do motorista por não relatar o problema que o acomete. Em adição, pode-se destacar o efeito do trabalhador sadio, ou seja, trabalhadores com condições de saúde menos complexas tendem a continuar trabalhando enquanto os com piores condições tendem a não exercer mais a profissão46,47, subestimando a prevalência de alguns agravos.
Em relação ao consumo de medicamentos, percebeu-se semelhança nos referidos pelos motoristas àqueles utilizados pela população em geral4,5,48,49. Em estudo realizado em Campinas-SP, entre os medicamentos de uso contínuo mais consumidos, destacaram-se a hidroclorotiazida, captopril e enalapril4. Em pesquisas realizadas em Ponta Grossa-PR5 e Campinas-SP4, os medicamentos de uso contínuo que atuam nos aparelhos cardiovascular e digestivo e no metabolismo foram os mais relatados pelos entrevistados.
O reduzido percentual de tratamento medicamentoso dos principais agravos relatados é um importante aspecto identificado neste estudo. Estudos com indivíduos que reconheciam sua condição de portadores de HAS50,51 e DM52,53 apresentaram resultados de índices de tratamento superiores aos da presente investigação. Os baixos índices de tratamento encontrados entre os motoristas de caminhão podem estar relacionados à dificuldade de acesso e adesão ao tratamento medicamentoso, especialmente devido a estes profissionais não apresentarem uma rotina (condições de trabalho) que facilite e estimule o uso correto e/ou contínuo dos medicamentos, bem como seus hábitos de vida, os quais muitas vezes vão de encontro ao manejo adequado do paciente portador de doenças crônicas, como a HAS e a DM.
Percebeu-se que a maior experiência (16 anos ou mais) como motorista de caminhão mostrou forte associação com o uso contínuo de medicamentos. É de se esperar que os motoristas com maior experiência, salvo exceções, são aqueles que também apresentam maior idade (destaca-se que a maior faixa etária também se mostrou associada ao uso de medicamentos neste estudo). Assim, como estudos na população geral demonstram que há um aumento proporcional do consumo de medicamentos com a idade4,54, há também um crescimento deste com maior experiência profissional. Ainda assim, pode-se considerar que as condições de trabalho vivenciadas pelos motoristas ao longo da profissão podem ter contribuído para o aumento da prevalência de alguns agravos24,25,35, favorecendo um maior uso contínuo de medicamentos.
Esperava-se que a ausência de vínculo empregatício, normalmente relacionado à propriedade do caminhão ser do próprio motorista, fizesse com que o motorista permanecesse por muito tempo esperando cargas para carregamento e transporte, o que aumentaria sua jornada de trabalho e dificultasse a procura por tratamento médico. Entretanto, como este estudo encontrou associação entre a maior prevalência de uso contínuo de medicamentos e motoristas de caminhão que não apresentavam vínculo empregatício, acredita-se que exista a possibilidade de os motoristas com vínculo formal terem maior dificuldade de controlar o seu horário de trabalho, postergando o acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, o diagnóstico e o tratamento das doenças presentes.
Alguns cuidados metodológicos foram tomados para garantir a validade interna dos resultados obtidos, como realização de estudo piloto e elaboração de um manual de instruções aos coletadores. No entanto, dada a dinâmica de funcionamento do local estudado, a seleção dos participantes foi por conveniência, fato este que impossibilita a generalização dos resultados ao total de motoristas que frequentaram o Pátio de Triagem do Porto de Paranaguá no período de estudo. Além disso, deve-se enfatizar que pode haver vieses de memória, mensuração ou informação nas variáveis obtidas por medidas indiretas, com a utilização de um formulário, principalmente naquelas referentes às enfermidades e medicamentos.
Diante das doenças relatadas e medicamentos de uso contínuo identificados, observa-se que o perfil epidemiológico e farmacoterapêutico dos motoristas avaliados assemelham-se à população em geral, especialmente quanto aos agravos cardiovasculares e ao uso de medicamentos para o seu tratamento, com exceção da HAS, a qual apresentou índices de prevalência inferiores aos estudos de base populacional. Também merece destaque o subtratamento dos agravos identificados e, principalmente, a identificação da relação entre algumas características profissionais (tempo de experiência, vínculo empregatício e propriedade do caminhão) e a utilização de medicamentos.
Os motoristas de caminhão possuem características singulares, especificamente por ficarem muitos dias, semanas ou até meses longe de sua residência e de seus familiares, o que implica necessidade de adoção de estratégias de promoção à saúde diferentes da população em geral. Dessa forma, incentivar os pontos de parada, as transportadoras e os locais de carga e descarga a disporem de estruturas mais adequadas a atenderem esta população específica pode favorecer a redução e o impacto dos principais agravos identificados na saúde desse grupo populacional. No momento, percebem-se apenas iniciativas pontuais em alguns postos de abastecimento das estradas brasileiras, nos quais são realizados atendimentos médicos e odontológicos, rastreamento de problemas de saúde e orientação sobre a saúde do homem, mas que ainda são incipientes considerando as necessidades deste grupo populacional. Assim, é importante garantir aos motoristas acesso aos profissionais que possam realizar o diagnóstico correto dos seus problemas de saúde e realizar terapia farmacológica e não farmacológica condizentes com suas necessidades singulares.
Por fim, deve-se enfatizar a importância de ações preventivas e de saúde pública no âmbito das condições de trabalho e de ações relacionadas à vigilância da saúde do trabalhador e da trabalhadora55, reduzindo os riscos aos quais se submetem os motoristas de caminhão, tanto para a saúde individual como coletiva, como o envolvimento em acidentes de trânsito.