versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.2 São Paulo abr./jun. 2015 Epub 09-Jun-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2997
A isquemia aguda de membro de origem embólica é uma situação clínica de caráter urgente, em que ocorre uma diminuição ou piora súbita na perfusão de um membro, e configura um risco à viabilidade da extremidade e à vida.
O tratamento consiste em revascularização imediata com um cateter de embolectomia. A remoção completa de todos os êmbolos oclusivos na árvore arterial leva aos melhores desfechos; por isso, alguns autores defendem a arteriografia após a embolectomia, para os membros inferiores.(1)
A angiografia é tradicionalmente realizada com contraste iodado, mas o dióxido de carbono (CO2) foi estudado como um agente de contraste intravascular alternativo(2) para pacientes com alergia a iodo ou alteração na função renal. Como o CO2não é nefrotóxico, julgou-se razoável utilizar esse contraste em uma paciente com função renal limítrofe (borderline) que seria submetida aos estímulos nocivos de reperfusão do membro, após a revascularização.(3)
Em nosso entender, este foi o primeiro caso que avalia o uso intraoperatório de CO2 como um substituto de contraste iodado em um paciente com doença renal crônica conhecida e isquemia aguda de membro.
Paciente do sexo feminino, 79 anos, chegou ao pronto-socorro com isquemia aguda no membro inferior esquerdo, com duração de 2 horas. Como antecedentes, apresentava hipertensão, fibrilação atrial e insuficiência renal crônica, não dependente de diálise.
A paciente tinha sido operada 2 anos antes, por oclusão aórtica aguda de origem embólica, quando foi realizada embolectomia femoral bilateral com cateter. Iniciou o uso de anticoagulante oral (varfarina) após esse episódio. À alta, os pulsos pediosos eram palpáveis, mas os tibiais posteriores eram ausentes, bilateralmente.
A paciente fazia uso irregular dos medicamentos, e o tempo de protrombina (INR, sigla do inglês International Normalized Ratio) era de 1,1. O pulso estava arrítmico; era hipertensa (160x110mmHg) e apresentava pulsos femoral, poplíteo e distal normais, na perna direita. À palpação do membro inferior esquerdo, havia apenas um pulso femoral fraco; os pulsos distais estavam ausentes. A paciente apresentava dor e défice motor. Ela foi considerada como portadora de isquemia de membro grau IIb (risco eminente) e foi encaminhada imediatamente para cirurgia.
O clearance de creatinina estava diminuído nos exames pré-operatórios (Cockroft-Gault de 12mL/min). Sob anestesia geral, foi realizado acesso femoral na cicatriz da incisão anterior do membro inferior esquerdo. As artérias femorais comum, superficial e profunda foram dissecadas e clampeadas. Foi feita arteriotomia e uso de cateter de embolectomia de 4Fr (Edwards Lifesciences Corp, Irvine, Califórnia, Estados Unidos). Os trombos foram removidos das artérias femorais superficial e profunda. O cateter avançou mais de 60cm na artéria femoral superficial, mas não pôde ser palpado. O fluxo retrógrado não foi significativo e decidiu-se realizar uma angiografia para avaliar melhor a árvore arterial infrapoplítea. Foi escolhido o CO2como substituto ao contraste iodado para a angiografia.
Utilizou-se um sistema home-made com fornecimento de CO2 em selo d´água, semelhante a outro descrito anteriormente,(4) mas com uma modificação para evitar a contaminação do ar ambiente.(5) Foi injetado através de cateter KMP 4Fr (Cook, Inc. Bloomington, Indianápolis, Estados Unidos) inserido na arteriotomia, quando as artérias foram pinçadas.
A figura 1 mostra uma artéria poplítea e uma fibular pérvias, e uma oclusão no terço médio da artéria tibial anterior. Levantamos a hipótese de o cateter de embolectomia ter alcançado a artéria fibular na primeira tentativa, e por isso não ter sido palpável ao exame físico.
Figura 1 Arteriografia com dióxido de carbono. Artérias poplítea e fibular pérvias, oclusão no terço médio da artéria tibial anterior
Realizou-se, então, nova embolectomia. O cateter avançou até o pé, na topografia da artéria pediosa (isto é, o cateter pôde ser palpado na projeção da artéria) e mais trombos foram removidos. A angiografia de controle (Figura 2) mostrou resolução completa da oclusão da artéria tibial anterior, com contraste fluindo até o pé (Figura 3). Foram usados 28mL de CO2, e não foi necessário aplicar o contraste iodado.
Figura 2 Arteriografia com dióxido de carbono. Resolução completa da oclusão da artéria tibial anterior
Figura 3 Arteriografia com dióxido de carbono. Chegada de contraste na artéria tibial anterior até o pé
Foi realizada a arteriorrafia. As artérias foram desclampeadas, e os pulsos poplíteo e distal estavam presentes no membro. Os sinais de isquemia (palidez e hipotermia) foram imediatamente resolvidos após a liberação do fluxo arterial. A paciente não desenvolveu sinais de síndrome compartimental.
A paciente permaneceu na unidade de terapia intensiva (UTI) até o 11º dia pós-operatório. Durante esse período, não recebeu nenhum agente nefrotóxico, como vancomicina ou drogas vasoativas. Manteve diurese com estímulo de furosemida. Após a alta da UTI, desenvolveu infecção urinária, piora da função renal e uremia. Iniciou diálise no 18º dia pós-operatório. A paciente teve pneumonia, que evoluiu para choque séptico no 36º dia de internação. Necessitou de drogas vasoativas por 2 dias na UTI e, infelizmente, nunca mais recuperou a função renal. Teve alta hospitalar e foi para instituição de cuidados terminais, com pulso distal sem défice no membro inferior, mas em diálise crônica.
O tratamento da oclusão arterial embólica com isquemia grave de membro está bem definido, sendo o uso de cateter de embolectomia a melhor alternativa.(6)
O CO2 tem sido empregado de forma eletiva tanto nos procedimentos diagnósticos(7) como nos terapêuticos(8) na árvore fêmoro-poplítea, sendo descrito como seguro(9) e não nefrotóxico.(10)
A angiografia intraoperatória foi benéfica, já que permitiu o diagnóstico de oclusão da árvore arterial após a primeira embolectomia. Mais coágulos foram removidos, e o resultado documentado foi a permeabilidade completa da artéria tibial anterior até o pé.
Nosso objetivo, ao utilizar CO2, foi o de diminuir a necessidade de diálise no pós-operatório. Neste caso, provavelmente, os estímulos prejudiciais (estresse cirúrgico, infecção do trato urinário e choque séptico por pneumonia) contribuíram para a insuficiência renal e para consequente necessidade de diálise. A contramedida (como o uso de contraste não nefrotóxico) poderia ter prevenido a insuficiência renal, se fosse esta uma situação única. Se tivéssemos usado o contraste iodado, pensaríamos se algo diferente poderia ter sido feito para evitar diálise.
Consideramos o CO2 como uma alternativa ao contraste iodado quando é necessária a angiografia para isquemia aguda de membro. Em nosso entender, esse agente nunca foi descrito nessa situação clínica, proporcionando boa qualidade de imagem, não sendo nefrotóxico, nem aumentado o risco do membro ou do paciente, em casos de oclusões arteriais agudas. Essa abordagem pode se mostrar útil em pacientes com função renal limítrofe (borderline), reduzindo, assim, o risco de precisar de diálise a curto ou longo prazo.