versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.7 Rio de Janeiro jul. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018237.21602016
O Brasil tem passado por um processo de transição epidemiológica, com as Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) tornando-se a principal causa de morbimortalidade e acarretando importante impacto econômico, ainda que em coexistência com as doenças infecciosas em magnitude importante1.
A Hipertensão Arterial (HA) e o Diabetes Mellitus (DM), ambas DCNT, inserem-se nesse contexto. A prevalência autorrelatada dessas doenças foi de, respectivamente, 21,4% e 6,2% da população brasileira acima de 18 anos em 20132. As complicações decorrentes do descontrole dessas enfermidades geram impactos negativos tanto na qualidade de vida dos indivíduos acometidos, quanto no sistema de saúde. Tais complicações foram responsáveis, somente no ano de 2012, por 228.323 internações no Sistema Único de Saúde (SUS), ao custo de aproximadamente 114 milhões de reais3. Isso sem contar as internações em hospitais privados e outros inúmeros atendimentos realizados em serviços de emergência, atualmente não computados pelos sistemas de informação disponíveis.
Dentre os fatores que podem contribuir para o descontrole da HA e DM estão aqueles relacionados ao uso inadequado de medicamentos. Por causas como a necessidade de tratamento por longos períodos e esquemas terapêuticos que incluem polifarmácia e alta prevalência nas faixas mais avançadas de idade, há maior dificuldade entre os portadores destas enfermidades de aderirem à terapia medicamentosa4, além de estarem sujeitos a riscos de eventos adversos a medicamentos5.
A adesão ao tratamento da HA e DM inclui tanto a manutenção contínua pelos indivíduos do tratamento medicamentoso prescrito quanto a mudança do estilo de vida (MEV), a partir da obediência consciente às condutas orientadas quanto aos hábitos de dieta e atividade física. A baixa adesão ao tratamento é uma das principais causas de redução do benefício clínico e controle da HA e DM, levando à complicações de saúde e psicossociais e redução da qualidade de vida6,7. Tais complicações irão culminar com o agravamento do quadro, ocasionando busca de serviços de emergência e hospitalizações8,9.
Revisão sistemática10 encontrou que diferentes aspectos de quatro grandes domínios (características do sistema de saúde, acesso, características das práticas e organização do cuidado) mostraram-se associados a internações evitáveis em portadores de condições crônicas. Estudo que investigou fatores associados a internações entre pacientes diabéticos no SUS11 encontrou que em 28% dos casos os pacientes relataram impossibilidade de agendamento de consulta na unidade básica de saúde, cerca de um quarto não realizou nenhuma consulta nos últimos 12 meses nas unidades de APS e 18% relataram falha no uso de medicamentos. Luiza et al.12 sinalizam que o acesso aos medicamentos pode ter reflexos no seu emprego, o que se expressará, em última análise, tanto no uso de serviços de saúde (internações, atendimento ambulatorial ou de emergência), quanto em resultados em saúde propriamente ditos.
De modo a contribuir para a redução do índice de abandono dos tratamentos crônicos e diminuir a sobrecarga das unidades de saúde do município do Rio de Janeiro, o programa Remédio em Casa (RECASA) foi implantado em janeiro de 2002 no Rio de Janeiro e expandiu-se paulatinamente passando a funcionar em 100% das unidades participantes dos Programas de Hipertensão Arterial e de Diabetes Mellitus em outubro de 2004.
No RECASA, os pacientes passaram a receber os medicamentos anti-HA e anti-DM em um endereço cadastrado. O principal critério de inclusão no programa era a constatação pelo médico que o paciente estava em fase de controle da doença, com medicamentos definidos e doses estáveis, porém se desconhece se estes critérios estavam sendo rigorosamente seguidos. O RECASA foi interrompido em 2008 por problemas operacionais na entrega dos medicamentos, estando até hoje sem funcionamento.
A Atenção Básica em Saúde (ABS) tem sido considerada a melhor estratégia para enfrentamento da maioria das DCNT13. Por meio de seus atributos, torna-se possível empregar tecnologias consideradas mais efetivas, capazes de interferir não apenas na cura e reabilitação, mas também nos fatores determinantes e condicionantes da saúde individual e coletiva, visando à integralidade do cuidado14.
Nesse sentido, a ABS vem ganhando um papel central no sistema de saúde de todo o mundo, tendo no Brasil papel de coordenadora da rede de atenção à saúde.
Diversos esforços têm sido empreendidos nas últimas décadas na busca de indicadores para a medida da efetividade da atenção básica. Nos anos 1990, desenvolveu-se o conceito de “Condições Sensíveis à Atenção Primária - CSAP” para denotar o conjunto de problemas de saúde para os quais a efetiva ação da ABS diminuiria o risco de internações sendo este, portanto, um indicador direto da efetividade desse nível de atenção à saúde. Alfradique et al.15 adaptaram o uso das CSAP para a realidade brasileira e identificaram que, no ano de 2006, o número de internações por condições sensíveis à ABS no SUS como decorrência da HA e DM foi de respectivamente 146.426 e 120.878, representando 1,5% e 1,2% do total das internações no país, excluindo parto. Estes dados podem ser decorrentes de problemas no acesso e na resolutividade da ABS do país.
Tendo em vista a importância que o acesso e o uso de medicamentos têm na evolução dos pacientes portadores de diabetes e hipertensão, postergando ou prevenindo desfechos duros ou lesões de órgãos alvo, faz-se importante investigar esta associação.
O objetivo deste artigo é descrever e analisar os fatores associados à busca de atendimento de emergência e internação por portadores de HA e DM, sobretudo aqueles ligados ao uso de medicamentos, tomando-se como recorte pacientes hipertensos e diabéticos atendidos em unidades básicas de saúde do município do Rio de Janeiro no ano de 2009.
Trata-se de estudo transversal de base de dados secundária, proveniente de inquérito populacional realizado no âmbito da pesquisa “O programa Remédio em Casa (RECASA) como modelo de provisão pública de medicamentos – Análise de implantação no município do Rio de Janeiro”, conduzida de janeiro a fevereiro de 2010 pelo Núcleo de Assistência Farmacêutica/ENSP/Fiocruz em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Município do Rio de Janeiro (SMSDC/RJ). Este estudo teve dois objetos de análise: 1) Nível da Unidade Básica de Saúde (UBS), em que foram feitas entrevistas com gestores e profissionais da saúde, observação direta e consulta a documentos; 2) Nível domiciliar, em que foram realizadas entrevistas diretamente com portadores de HA/DM cadastrados no programa RECASA, além de observação direta dos medicamentos utilizados e armazenados no domicílio para as enfermidades estudadas. Neste artigo, foram utilizados dados do componente domiciliar.
A definição da amostra do estudo fonte teve como base o cadastro do programa RECASA, no qual se registrou população alvo de 139.122 pacientes distribuídos em 87 UBS. Utilizou-se amostragem por proporções e, tendo em vista a multiplicidade de desfechos de interesse, trabalhou-se com prevalência conservadora de 50%, considerando intervalo de confiança de 95%, variância máxima de 0,25 e erro amostral de 4%, resultando em 598 usuários. Ao longo do processo de campo, foi necessária a realização de substituições. Para tanto, foi criado um banco reserva com base em amostra, seguindo os parâmetros mencionados acima. A amostra final resultou em 547 domicílios, sendo entrevistada uma pessoa por domicílio, o que representou uma perda de 8,5% em relação ao plano amostral. O questionário aplicado continha perguntas fechadas em sua grande maioria, distribuídas em 5 blocos (dados gerais, dados da condição de saúde, uso de serviços de saúde, experiência com o programa RECASA, tratamento do paciente), com alguns aspectos coletados por observação (verificação de medicamentos e receita médica no domicílio). O método do estudo fonte é apresentado com mais detalhes por Mendes et al.16.
No presente estudo, as variáveis de desfecho foram: 1) procura por atendimento de emergência como decorrência de complicações relacionadas à HA/DM nos 12 meses anteriores à entrevista, referido pelos pacientes; 2) Internação referida nos 12 meses anteriores à entrevista pelo mesmo motivo.
As variáveis de exposição, aferidas de forma autorrelatada na entrevista, contemplaram os seguintes aspectos: sociodemográficos (idade; sexo; estado conjugal; morar sozinho; etnia; ocupação e classe econômica17), condições de saúde [enfermidade; tempo de diagnóstico de HA/DM – nos casos em que os entrevistados possuíam as duas doenças, foi adotado o diagnóstico mais antigo; autoavaliação do estado de saúde (muito bom ou bom, regular ou ruim/muito ruim); grau de dificuldade para realizar tarefas do trabalho ou de casa (nenhum, leve, regular, alto, extremo)]; aspectos relacionados ao uso de serviços de saúde (regularidade no comparecimento às consultas agendadas; agendamento da consulta seguinte; grau de satisfação com o atendimento da farmácia; indicação de exercícios físicos e indicação de dieta pelo médico da UBS) e aspectos relacionados ao uso de medicamentos (aferida a referência a problemas quanto à adesão ao tratamento medicamentoso expressos pelas perguntas – “costuma deixar de tomar seus medicamentos”, “costuma sobrar medicamentos”, sendo considerados não aderentes os que responderam sempre ou quase sempre); não praticar automedicação – “todos os medicamentos utilizados para HA/DM são prescritos por prescritores”, “costuma pedir informações de medicamentos apenas a profissionais de saúde”); problemas no cuidado com os medicamentos no domicílio (proporção de domicílios com “medicamentos vencidos/embalagens danificadas”, aferido via observação direta no domicílio); “tempo sem alteração da prescrição médica; tempo de tratamento medicamentoso”.
Quanto ao tratamento estatístico dos dados, foi feita análise univariada descritiva e bivariada entre as variáveis de exposição e cada um dos desfechos utilizando-se teste qui-quadrado (c2) ao nível de significância de 90%, tendo sido utilizado o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS®) V 20.0.
As variáveis que evidenciaram associações estatisticamente significativas ao nível de 90% na análise bivariada deram origem a modelos de regressão logística para cada um dos desfechos separadamente. O método utilizado foi o stepwise backward ao nível de significância de 10%, com probabilidade de entrada de 0,20 e de saída de 0,10. Serão apresentadas suas respectivas proporções de classificação total do modelo logístico - (PCT - Overall), razões de chance ajustadas (ORAJ) e respectivos intervalos de confiança de 95%.
O projeto fonte foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (CEP/ENSP). Os autores não identificam existência de conflito de interesses.
Houve prevalência de pessoas idosas, com média de idade de 62,7 anos (variando de 24 a 95 anos), predominância do sexo feminino (68%) e pouco mais da metade dos entrevistados eram casados, seguidos dos viúvos. Aproximadamente 90% dos indivíduos não viviam sozinhos, ou seja, possuíam algum tipo de suporte familiar e 64,9% se autodenominaram como pertencentes a alguma etnia não branca. Um terço da amostra estudada não trabalhava, entre estes a maioria era de aposentados ou dedicados ao cuidado da casa. Aproximadamente 90% dos indivíduos pertenciam às classes econômicas C, D ou E (Tabela 1).
Cerca de 96% apresentaram hipertensão, 20,8% diabetes e 17,2% portadores de ambas enfermidades. Do conjunto de entrevistados, 87,4% sabiam o diagnóstico e 86,4% utilizavam medicamentos para essas doenças há mais de 5 anos. Aproximadamente 73% não tinham o conteúdo de sua prescrição para HA e DM alterado há mais de 1 ano (Tabela 1).
Sessenta e sete por cento autoavaliaram seu estado de saúde como regular, ruim e muito ruim; porém, quando essa mesma pergunta foi feita considerando a comparação com pessoas da mesma idade, esse percentual caiu para 58,2%. Aproximadamente 14% informaram sentir alto grau de dificuldade ao realizar tarefas do trabalho ou de casa. Dezenove por cento relataram ter faltado à alguma consulta marcada na UBS nos últimos 6 meses e 38,2% não haviam marcado a data da consulta seguinte. Cerca de setenta e nove porcento se declaram satisfeitos ou muito satisfeitos com o atendimento realizado na farmácia da UBS. Quanto às soluções oferecidas para o tratamento, 65% e 56%, respectivamente, relataram que seus médicos, além de receitarem medicamentos, costumavam fazer indicação de dieta e de exercício físico (Tabela 1).
Cerca de 22% dos pacientes informaram que costumavam deixar de tomar seus medicamentos e 23,2% relataram que sobravam medicamentos; além disso, 38% dos pacientes relataram pedir informações sobre medicamentos para outras pessoas que não profissionais de saúde. Quase todos disseram que a totalidade dos medicamentos utilizados para HA/DM foram prescritos por prescritores autorizados. A observação direta destes medicamentos mostrou que cerca de metade dos pacientes possuíam medicamentos vencidos ou com embalagem danificada no domicílio (Tabela 1).
Cento e treze indivíduos (20,7%) relataram haver buscado serviços de emergência e 33 (6,0%) terem sido internados por complicações da hipertensão e do diabetes do ano anterior.
Mostraram-se significativamente associados ao uso de serviço de emergência por portadores de HA e DM, tanto na análise bivariada quanto na regressão logística: estado de saúde regular, ruim ou muito ruim; dificuldade na realização de atividades de rotina; receita alterada no último ano; e ter faltado nos seis meses precedentes à consulta agendada (Tabela 2 e Tabela 3). Avaliação do estado de saúde regular, ruim ou muito ruim em relação a pessoas da mesma idade mostrou-se associada à busca de emergência apenas na análise bivariada.
Mostraram-se significativamente associados à internação na regressão logística: sexo feminino, etnia não branca, diabetes, avaliação regular, ruim ou muito ruim do estado de saúde, ter marcado a data da consulta seguinte, ter deixado de tomar os medicamentos, ter sobrado medicamentos e não ter pedido informações sobre medicamentos apenas a profissionais de saúde.
Na análise multivariada, por meio da regressão logística, para o desfecho “internação” o fator associado com maior magnitude foi “autoavaliação do estado de saúde em relação a outras pessoas de sua idade como regular, ruim ou muito ruim”, apresentando OR ajustado de 5,3; enquanto que para o desfecho “buscar atendimento de emergência” o fator foi “Grau de dificuldade em realizar tarefas do trabalho/casa alto ou extremo”, com OR ajustado de 2,4.
O perfil sociodemográfico encontrado neste estudo se aproxima do identificado por outras pesquisas realizadas com portadores de doenças crônicas no Brasil, no que concerne a distribuição etária, com maior concentração de idosos18,19, mulheres19-21, maioria casada19 ou morando acompanhado, pertencentes às classes econômicas C,D e E, e não inserida no mercado formal ou informal de trabalho21. Igualmente, a maioria da população com HA e DM no Brasil faz uso contínuo de medicação22.
A internação por complicações da HA/DM foi maior entre as mulheres. Estas são mais atentas aos sintomas, procuram obter um maior conhecimento das doenças, expressam melhor o que sentem e buscam com mais frequência os serviços ambulatoriais de saúde23. Igualmente, a literatura relata maiores taxas de internação por causas evitáveis em mulheres em relação aos homens24. Provavelmente, ao buscarem mais os serviços de saúde, as mulheres sejam mais precocemente diagnosticadas e referidas para a hospitalização, ainda que disso possa decorrer efeito iatrogênico por estarem também mais sujeitas a internações evitáveis.
A autoavaliação negativa do estado de saúde e a dificuldade ao realizar tarefas no trabalho ou em casa associaram-se, de forma estatisticamente significativa, tanto com a internação quanto com a busca por serviço de emergência. Estudos apontam que a maneira como o individuo percebe a doença ou adoece representa adequadamente seu estado de saúde e influencia na busca por serviços assistenciais25-27. Estes dados reforçam a importância da anamnese médica e da escuta ao paciente.
No caso do nosso estudo, os dados foram obtidos em uma pesquisa transversal. Assim, a experiência de internação e de uso de serviço de emergência havia ocorrido nos últimos 12 meses, enquanto que a percepção do estado de saúde referia-se ao momento da entrevista. Nossos achados sugerem que os pacientes em estágio mais avançado da doença e, portanto, com pior percepção do estado de saúde, não tiveram, em sua maioria, tal situação minorada com a experiência da internação ou do atendimento de emergência.
Os indivíduos cuja receita estava sem alteração há menos de 1 ano na época da realização da pesquisa também apresentaram maior procura por serviços de emergência, com diferença estatisticamente significativa em relação àqueles com prescrição estável há mais de um ano. A instabilidade da abordagem terapêutica sugere descontrole dos sintomas relacionados à HA/DM, o que pode ter influenciado a busca por serviços de emergência. Assim, a variabilidade entre as prescrições de hipertensos e diabéticos pode ser um evento traçador facilmente rastreável de gravidade da doença.
Foi maior a proporção de internação entre os indivíduos portadores de DM e essa diferença foi estatisticamente significativa (p = 0,024). Em que pese que em nosso estudo não exploramos nas entrevistas as razões das internações, pois segundo Suzuki et al.28 o maior índice de hospitalização de pacientes diabéticos decorre do controle glicêmico ineficaz, associado ao despreparo do paciente e da família em relação à doença. Tal descontrole concorre para o desenvolvimento de complicações incapacitantes como úlcera nos membros inferiores, pé diabético, amputações, retinopatia diabética, cegueira e insuficiência renal crônica levando a internações prolongadas e recorrentes, acarretando alta ocupação de leitos29.
Em nosso estudo, a média de idade foi 62,7 anos, caracterizando uma população idosa, mais suscetível às lesões por quedas, fato que pode ter contribuído para a maior proporção de internação dos portadores de DM. Yau et al.30 identificaram que os idosos com diabetes têm maior risco de internação por lesões relacionadas à queda do que os sem.
Comparativamente à hipertensão, o tratamento do Diabetes pode ser mais complexo devido a aspectos como a grande variedade de complicações decorrentes da doença, o uso de insulina com a decorrente necessidade de manejo do glicosímetro e seus insumos e o desequilíbrio emocional31.
Ter faltado a alguma consulta agendada na UBS nos 6 meses anteriores à entrevista associou-se de forma estatisticamente significativa tanto com a internação quanto com a procura por serviço de emergência. Revisão sistemática32 apontou que a maior continuidade do cuidado, bem como o número de consultas na atenção primária está associado ao menor risco de internação pelas CSAP, reforçando a efetividade potencial deste nível de cuidado, achado corroborado por estudo nacional33. No entanto, Oliveira34 encontrou que 57% de indivíduos com HA e DM que receberam atendimento de emergência em município brasileiro declararam acompanhamento em unidade básica de saúde, assim como receber visita do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e Estratégia de Saúde da Família. Assim, é importante frisar que a efetividade potencial dos cuidados recebidos na atenção primária em saúde certamente está ligada a diferentes fatores para sua garantia. Entre estes, se destaca que a organização e a acessibilidade aos serviços influenciam a continuidade do cuidado que é recebido. Por conseguinte, podem ser relacionadas à proporção de internações devido a causas sensíveis à atenção primária. Em revisão, van Loenen et al.35 encontraram que ter acessibilidade ao cuidado no sistema da atenção primária de forma regular e contínua parece ser mais importante para reduzir internações evitáveis do que como estes serviços de atenção primária são organizados. Este estudo também aponta que a disponibilidade de suprimentos médicos de cuidados primários e as relações de longo prazo entre os médicos e os pacientes reduzem as internações por condições crônicas sensíveis à atenção primária.
Houve maior chance de internação entre os que referiram ter agendado a próxima consulta médica na UBS. É bastante plausível que a experiência pregressa da internação, provavelmente ocasionada por uma má evolução da doença, aumente a consciência sobre a mesma e sobre a importância do cuidado regular.
A consulta sobre o uso de medicamentos a pessoas não qualificadas e a menor adesão ao tratamento medicamentoso associaram-se à maior internação por decorrência de complicações da HA e DM.
Problemas na adesão à terapia medicamentosa são apontados por diversos estudos como uma das principais causas para o descontrole e agravamento das DCNT36. Uma proporção importante de usuários ambulatoriais sofre eventos adversos a medicamentos, sendo que vários deles são tratáveis ou passíveis de prevenção. Assim, a adequada atenção aos problemas com o uso de medicamentos pode prevenir tanto o uso de serviços de emergência quanto as internações36,37. De fato, revisão sistemática mostrou que a mediana da prevalência de internações hospitalares relacionadas a esses eventos é de 4,3%, das quais 59% são evitáveis38.
No que concerne às limitações, cabe mencionar que tratou-se de estudo transversal, que tem como uma de suas fragilidades a impossibilidade de estabelecer relações de causalidade. Houve perguntas relacionadas a experiências pregressas e outras a situações presentes no momento da entrevista. A referência a experiências pregressas traz o problema do viés de memória. No entanto, consideramos que internação e uso de emergência no período de 12 meses são experiências marcantes o suficiente para serem lembradas. Nosso estudo apenas aborda pacientes inscritos num programa específico da atenção básica do município do Rio de Janeiro à época, não tendo havido grupo de comparação. A intenção inicial da pesquisa foi avaliar o RECASA. No entanto, o longo período de interrupção do programa, que acabou por ser permanente, impossibilitou verificar seus efeitos específicos.
Tanto questões acerca da relação do paciente com os profissionais de saúde, quanto relativas ao uso racional de medicamentos, se mostraram associadas à necessidade de busca de emergência/ internação por indivíduos com HA e DM, dentre os inscritos em programa da atenção básica do Rio de Janeiro.
Portanto, reforça-se a necessidade de ações, tanto por parte dos profissionais do serviço de saúde quanto das instituições governamentais para que privilegiem atividades de prevenção em saúde e que atendam às diversas necessidades de cuidado dos pacientes crônicos e de suas famílias, com reforço aos atributos da atenção primária em saúde. As alterações das prescrições são eventos facilmente rastreáveis, de forma que se mostram com bom potencial de serem utilizados como indicadores sentinela da evolução dos pacientes, podendo subsidiar intervenções multiprofissionais. Igualmente, os dados deste trabalho apontam a necessidade de se investir mais na promoção do uso racional de medicamentos e no fortalecimento da atenção primária em saúde.
Tabela 1 Dados sociodemográficos, condições de saúde e uso de serviços de saúde de usuários do programa Remédio em Casa. Município do Rio de Janeiro, 2010.
Indicador/variável | N | Resultado |
---|---|---|
Perfil sociodemográfico | ||
Idade (média) | 547 | 62,7 anos |
Sexo feminino | 372 | 68,0% |
Etnia | ||
Brancos | 190 | 35,1% |
Morenos ou pardos | 224 | 41,3% |
Negros | 96 | 17,7% |
Outros | 32 | 5,9% |
Estado Conjugal | ||
Casado | 287 | 52,5% |
Solteiro | 89 | 16,3% |
Viúvo | 126 | 23,0% |
Outros | 45 | 8,2% |
Mora sozinho | 55 | 10,1% |
Ocupação | ||
Trabalha (mercado formal ou informal) | 164 | 30,0% |
Aposentado | 235 | 43,0% |
Cuidado da casa ou família | 134 | 24,5% |
Outros | 14 | 2,5% |
Classe Econômica | ||
A | 1 | 0,2% |
B | 55 | 10,0% |
C | 362 | 66,2% |
D/E | 119 | 21,8% |
Condições de saúde | ||
Hipertensão | 526 | 96,2% |
Diabetes | 114 | 20,8% |
Sabe que tem a doença há mais de 5 anos | 477 | 87,4% |
Auto-avaliação do estado de saúde | ||
Muito bom ou bom | 179 | 33,0% |
Regular | 329 | 60,6% |
Ruim ou ruim | 35 | 6,4% |
Auto-avaliação do estado de saúde em relação a outras pessoas de sua idade | ||
Muito bom ou bom | 219 | 41,9% |
Regular | 267 | 51,1% |
Ruim ou ruim | 37 | 7,1% |
Grau de dificuldade em realizar tarefas do trabalho/casa | ||
Nenhum, leve ou regular | 471 | 86,3% |
Alto/extremo | 75 | 13,7% |
Aspectos relacionados ao uso de serviços de saúde | ||
Faltou consulta marcada na UBS nos últimos 6 meses | 105 | 19,2% |
Marcou a data da próxima consulta na UBS | 324 | 61,8% |
Satisfeito ou muito satisfeito com o atendimento da farmácia | 429 | 78,6% |
Indicação de exercícios pelo médico | 353 | 64,5% |
Indicação de dieta pelo médico | 305 | 55,8% |
Aspectos relacionados ao uso de medicamentos | ||
Costuma deixar de tomar seus medicamentos | 123 | 22,5% |
Costuma sobrar medicamentos de DM e HA | 127 | 23,2% |
Medicamentos vencidos/embalagem danificada no domicílio | 263 | 48,1% |
Todos os medicamentos utilizados para a HA/DM prescritos por prescritores | 527 | 96,3% |
Costuma pedir informações sobre medicamentos apenas a profissionais de saúde | 339 | 62,0% |
Mais de 1 ano sem alteração na prescrição de medicamentos para hipertensão arterial e/ou diabetes | 362 | 73,4% |
Em uso de medicamentos para hipertensão arterial ou diabetes há mais de 5 anos | 471 | 86,4% |
Tabela 2 Associação entre busca por emergência/internação e diferentes variáveis de exposição na análise bivariada entre usuários do programa Remédio em Casa. Município do Rio de Janeiro, 2010.
Indicador/variável | Categoria | Total | Buscou emergência? | Foi internado? | ||
---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||
% | P valor (#) | % | P valor (#) | |||
Dados sociodemográficos | ||||||
Sexo | Masculino ** | 175 | 19,4% | 0,626 | 2,9% | 0,032* |
Feminino | 372 | 21,2% | 7,5% | |||
Etnia | Não brancos ** | 352 | 21,9% | 0,343 | 8,0% | 0,013* |
Brancos | 190 | 18,4% | 2,6% | |||
Condições de saúde | ||||||
Diabetes | Não ** | 433 | 20,1% | 0,524 | 4,8% | 0,024* |
Sim | 114 | 22,8% | 10,5% | |||
Auto-avaliação do estado de saúde | Bom/muito bom ** | 179 | 11,7% | ˂ 0,001* | 2,8% | 0,025* |
Regular, ruim e muito ruim | 364 | 25,3% | 7,7% | |||
Auto-avaliação do estado de saúde em relação a outras pessoas de mesma idade | Bom/muito bom** | 219 | 16,0% | 0,013* | 2,7% | 0,004* |
Regular, ruim e muito ruim | 304 | 25,0% | 8,9% | |||
Grau de dificuldade em realizar tarefas do trabalho/casa | Nenhum, leve ou regular ** | 471 | 18,0% | ˂ 0,001* | 5,3% | 0,070* |
Alto e extremo | 75 | 37,3% | 10,7% | |||
Tempo em que receita para HA/DM está sem alteração | > 1 ano ** | 362 | 18,8% | 0,037* | 5,8% | 0,899 |
≤ 1 ano | 131 | 27,5% | 6,1% | |||
Aspectos relacionados ao uso de serviços de saúde | ||||||
Faltou a consulta marcada na UBS nos últimos 6 meses | Não ** | 442 | 18,3% | 0,006* | 5,0% | 0,033* |
Sim | 105 | 30,5% | 10,5% | |||
Marcou a data da próxima consulta na UBS | Sim** | 324 | 21,6% | 0,474 | 7,4% | 0,066* |
Não | 200 | 19,0% | 3,5% | |||
Aspectos relacionados ao uso de Medicamentos | ||||||
Costuma deixar de tomar seus medicamentos | Não ** | 424 | 19,3% | 0,157 | 4,7% | 0,016* |
Sim | 123 | 25,2% | 10,6% | |||
Costuma sobrar medicamentos de DM e HA | Não** | 419 | 20,5% | 0,858 | 4,5% | 0,007* |
Sim | 127 | 21,3% | 11,0% | |||
Costuma pedir informações sobre medicamentos apenas a profissionais de saúde | Sim ** | 339 | 21,8% | 0,388 | 4,7% | 0,100* |
Não | 208 | 18,8% | 8,2% |
(*) valores estatisticamente significativos – p < 0,1. (**) categoria de referência. (#) O teste realizado foi o c2.
Tabela 3 Regressão logística entre variáveis desfecho (busca por emergência/ internação) e de exposição para usuários do programa Remédio em Casa. Município do Rio de Janeiro, 2010.
Indicador/variável | OR ajustado (IC95%) | P_valor |
---|---|---|
Busca por atendimento em emergências por complicações relacionadas à HA/DM nos 12 meses anteriores à entrevista (PCT**:73,7 %) | ||
Auto-avaliação do estado de saúde regular, ruim ou muito ruim | 2,27 (1,28-4,00) | 0,005* |
Grau de dificuldade em realizar tarefas do trabalho/casa alto ou extremo | 2,41 (1,37-4,26) | 0,002* |
Receita para HA/DM está sem alteração há menos que 1 ano | 1,52 (0,93-2,98) | 0,092 |
Faltou consulta marcada na UBS nos últimos 6 meses | 1,80(1,05-3,09) | 0,033* |
Internação por complicações relacionadas à HA/DM nos 12 meses anteriores à entrevista (PCT**: 94,5%) | ||
Sexo feminino | 2,82 (1,01-7,88) | 0,048* |
Etnia não branca | 4,35 (1,39-14,9) | 0,012* |
Diabetes presente | 2,25 (0,96-5,28) | 0,061 |
Auto-avaliação do estado de saúde em relação a outras pessoas de sua idade regular, ruim ou muito ruim | 5,26 (1,79-14,29) | 0,002* |
Faltou a consulta marcada na UBS nos últimos 6 meses | 2,42 (0,99-5,95) | 0,052 |
Marcou a data da próxima consulta na UBS | 2,63 (1,02-6,67) | 0,045* |
Costuma deixar de tomar seus medicamentos | 2,38 (1,01-5,56) | 0,048* |
Costuma sobrar medicamentos de DM e HA | 2,27 (0,95-5,56) | 0,067 |
Não costuma pedir informações sobre medicamentos apenas a profissionais de saúde | 2,08 (0,94-4,76) | 0,072 |
(*) valores estatisticamente significativos: p < 0,05. (**) PCT: proporção de classificação total do modelo logístico – Overall. (#) O p-valor diz respeito ao ORajustado=ORaj.