versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.28 no.4 São Paulo jul./ago. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20162015078
A aquisição de linguagem se dá a partir da interação da criança com o ambiente que a cerca. Através da convivência familiar e dos estímulos a ela destinados, a criança utiliza suas habilidades cognitivas e sociais para categorizar, esquematizar e combinar tudo o que aprende separadamente. A produção das primeiras palavras pela criança é observada por volta dos 12 meses de vida(1).
O aprendizado de uma palavra é um processo multifatorial e tem início quando ocorre associação entre um input fonético e uma ação ou objeto correspondente no ambiente. Essa primeira associação é chamada de fast mapping, que envolve uma representação incompleta da palavra. A exposição contínua a essa palavra é que cria uma associação robusta, que ocorre na fase slow mapping(2).
As palavras de classe aberta (adjetivos, advérbios, substantivos, verbos, interjeições) possuem referenciais mais concretos que as palavras de classe fechada (artigos, conjunções, numerais, preposições, pronomes) e, por isso, são as primeiras a serem adquiridas durante o desenvolvimento da linguagem. Isto ocorre especialmente com os substantivos, cuja aprendizagem é relativamente fácil para as crianças e abre caminho para a aprendizagem de palavras de relações menos transparentes, ou que tenham estruturas morfológicas mais complexas. Os verbos, por sua vez, são adquiridos posteriormente devido à dificuldade inicial da criança em detectar seus componentes conceituais e semânticos, ou compreender como eles se combinam(3).
Os verbos funcionam como elementos organizadores da estrutura sintática e do uso correto de outras classes de palavras(4). Existem vários tipos de pistas envolvendo a linguagem – como as pistas morfológicas e sintáticas – que podem ajudar na identificação de uma palavra como sendo um verbo. As pistas morfológicas auxiliam na definição da parte do discurso que é desconhecida à criança (por exemplo, a terminação verbal). As pistas sintáticas mostram que ao redor de um verbo se estrutura uma sentença, através de regras pré-determinadas(5).
No Português Brasileiro, as crianças em desenvolvimento típico iniciam sua aquisição de linguagem pelos substantivos, mas já a partir do segundo ano de vida apresentam uma quantidade ligeiramente maior de verbos do que de substantivos, o que pode ser observado até o final da fase pré-escolar. Na aquisição dos verbos, ocorre inicialmente o predomínio de verbos intransitivos, seguidos por verbos de ligação, transitivos diretos, transitivos circunstanciais e transitivos indiretos(6).
Algumas crianças, entretanto, podem enfrentar dificuldades no desenvolvimento da linguagem, que resultam em diferenças no modo como adquirem e utilizam diferentes classes de palavras. Esse é o caso de crianças com alterações específicas de linguagem (AEL), caracterizadas por dificuldades específicas em aspectos linguísticos, na ausência de fatores como déficits auditivos, alterações neurológicas e no desenvolvimento cognitivo, distúrbios emocionais, ou privação ambiental(7,8).
As AEL compreendem dois grandes quadros de linguagem: o retardo e o distúrbio específico de linguagem (DEL). O primeiro refere-se a um atraso generalizado na aquisição ou expressão da linguagem, mas que segue a mesma sequência do desenvolvimento típico ao longo do desenvolvimento. O DEL, por sua vez, refere-se ao desenvolvimento atípico das habilidades de linguagem decorrente de dificuldades específicas em duas ou mais áreas da linguagem(9).
Em decorrência da faixa etária estudada utilizaremos o termo geral AEL, uma vez que a diferenciação do quadro em retardo de linguagem ou DEL pela manutenção dos déficits linguísticos após a intervenção terapêutica só poderia ser utilizada após os cinco anos para todos os sujeitos.
As crianças com AEL apresentam capacidade limitada de processamento linguístico que interfere na aquisição e no processamento de linguagem em tempo real. Logo, operações linguísticas complexas podem sobrecarregar sua capacidade, resultando em competição por recursos entre os diferentes estágios de processamento da linguagem, de forma que seus estágios iniciais são beneficiados(10).
Dentre as inúmeras dificuldades linguísticas que podem se manifestar nesse grupo, o prejuízo no uso de verbos é comumente apontado como característico(11). O desenvolvimento da morfologia gramatical nessa população costuma estar aquém do observado em crianças com desenvolvimento típico. Esta dificuldade é evidenciada pela aquisição tardia de morfemas gramaticais e pela manutenção do uso de estruturas gramaticais primitivas(12), que podem ocorrer por possíveis déficits no processamento de palavras, devido ao comprometimento fonológico ou na memória de trabalho(13).
As crianças com AEL são mais dependentes da frequência da estimulação e de informações léxico-semânticas(14) e menos capazes de reter novos verbos do que crianças mais jovens em desenvolvimento típico de linguagem(15). Logo, elas precisam de maior variedade de verbos armazenados em seu léxico para conseguir abstrair as regras morfológicas de sua língua e assim desenvolver um conhecimento mais generalizado dos verbos(11), além de apresentarem menos propensão a variar nas escolhas de seus verbos, equiparando-se a crianças mais jovens pareadas por vocabulário(16).
Todavia, a língua interfere na natureza das dificuldades que o falante com AEL irá enfrentar ao utilizar os verbos. No Inglês, observa-se que essa dificuldade se apresenta com relação à sua diversidade e ao uso correto da morfologia, que se mantém inclusive durante a fase da escolarização(17), e pode ser considerada como uma de suas marcas clínicas(3).
No espanhol, há relatos de diferença no padrão de movimentos oculares para verbos com quantidade diferente de argumentos, com maior dificuldade no reconhecimento daqueles com três argumentos(18). O uso frequente de formas verbais no infinitivo é relatado para falantes do catalão e do espanhol(19), e também do inglês(20). Tal fato é justificado por este modo não necessitar de variação na concordância gramatical, o que reduz a demanda de processamento linguístico(19).
No Português Brasileiro, há apenas achados que apontam uma dificuldade ligada à identificação de quantos e quais complementos são requeridos por um verbo para que seu sentido esteja completo e para que ele seja compreendido(4).
Considerando a escassez de informações a respeito da aquisição e do uso de verbos em crianças com AEL falantes do Português Brasileiro, este estudo se propôs a comparar o uso funcional de verbos e substantivos por crianças com alterações específicas de linguagem (AEL) falantes do Português Brasileiro e investigar se o uso destes tipos de palavras difere das crianças em desenvolvimento típico de linguagem (DTL). Além disso, comparar a utilização de cada tipo de verbo entre os grupos.
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da Instituição sob número 1159/09. Todos os sujeitos tiveram seus Termos de Consentimento Livre e Esclarecido assinados por seus pais ou responsáveis.
O grupo com AEL foi composto por 20 pré-escolares em atendimento fonoaudiológico semanal no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em Desenvolvimento da Linguagem e suas Alterações do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. A idade dos sujeitos variou entre 3 anos e meses e 6 anos e 10 meses (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos sujeitos de acordo com a faixa etária e o gênero
Grupo | Faixa etária | Gênero | Total | |
---|---|---|---|---|
Feminino | Masculino | |||
AEL (n=20) | 3 anos | 0 | 2 | 2 |
4 anos | 1 | 5 | 6 | |
5 anos | 3 | 5 | 8 | |
6 anos | 1 | 3 | 4 | |
DTL (n=60) | 2 anos | 10 | 10 | 20 |
3 anos | 10 | 10 | 20 | |
4 anos | 10 | 10 | 20 |
Legenda: AEL = alteração específica de linguagem; DTL = desenvolvimento típico de linguagem
Os critérios de exclusão utilizados foram aqueles estabelecidos em literatura internacional(7) e o critério para inclusão dos sujeitos neste grupo compreendeu desempenho em linguagem expressiva abaixo do esperado em pelo menos dois testes padronizados: vocabulário(21), fonologia(22) ou extensão média do enunciado (EME)(4); além de apresentar idade linguística (receptiva e/ou expressiva) abaixo da idade cronológica com base no Test of Early Language Development (TELD-3)(23) adaptado para o Português Brasileiro(24).
Cabe destacar que, em decorrência da faixa etária, não foi possível realizar o teste de inteligência não verbal (QI não verbal), sendo assim não foram incluídas crianças com histórico de desenvolvimento neuropsicomotor alterado (atraso superior a seis meses em relação ao esperado no desenvolvimento típico para firmar a cabeça, sentar, andar e controlar esfíncteres). Entretanto, é possível mencionar que, como essas crianças estavam em acompanhamento fonoaudiológico ao completarem idade suficiente, todas realizaram avaliação para verificar seu rendimento intelectual e em todos os casos foi confirmado que não havia qualquer comprometimento.
O grupo com DTL foi composto por 60 pré-escolares com idade entre 2 e 4 anos (Tabela 1). A coleta de dados ocorreu em instituição de ensino infantil pública na cidade de São Paulo. O pareamento dos sujeitos ocorreu pela idade linguística expressiva, por exemplo, uma criança com AEL com idade linguística expressiva equivalente a 4 anos foi pareada a uma criança do grupo controle de 4 anos. No total 2 sujeitos tiveram idade linguística expressiva equivalente a 2 anos, 7 sujeitos tiveram idade linguística expressiva equivalente a 3 anos e 11 sujeitos tiveram idade linguística expressiva equivalente a 4 anos.
Para a coleta dos dados, uma sala foi previamente preparada com uma filmadora em um tripé, com alguns brinquedos dispostos sobre um tapete. Durante a coleta, a criança foi encorajada a interagir com a fonoaudióloga por um período de 30 minutos. A fonoaudióloga avaliadora realizou perguntas abertas com o objetivo de propiciar a melhor situação de iniciativa comunicativa da criança.
Considerando as faixas etárias que foram estudadas e a necessidade de obtenção de fala espontânea, as amostras de fala foram coletadas em ambos os grupos a partir de situação de interação lúdica com os seguintes brinquedos: fazendinha com animais, meios de transporte, alimentos, utensílios de cozinha e dois bonecos. Além dos brinquedos, foi utilizada filmadora digital para registro da interação.
Vale ressaltar que, no caso das crianças com AEL, a interação ocorreu com a fonoaudióloga que acompanhava a criança, pois assim foi garantida uma situação de interação familiar. Já no grupo controle, a mesma pesquisadora interagiu com todas as crianças em ambiente educacional, porém, antes da coleta de dados, tal pesquisadora já havia interagido com todos os sujeitos e, portanto, já lhes era familiar(6). Todos os fonoaudiólogos receberam o mesmo treinamento e foram supervisionados por uma das autoras para a coleta das amostras de fala.
Dos dados coletados, foram transcritos 100 segmentos do período de maior interação comunicativa estabelecida pelos sujeitos, dentre os 30 minutos registrados, conforme proposto por Brown(25). Depois da transcrição, todos os substantivos e verbos presentes na amostra de fala selecionada foram tabulados. Todos os verbos presentes foram classificados, de acordo com a classificação de Lima(26), em intransitivos, transitivos diretos, transitivos indiretos, transitivos relativos, transitivos circunstanciais e bitransitivos.
É importante ressaltar que a classificação dos verbos se deu de acordo com o uso determinado por cada falante. Assim, mesmo que um verbo tivesse classificação de transitivo direto, se ele fosse utilizado sem nenhum complemento verbal, seria classificado como intransitivo. Do mesmo modo, um verbo transitivo indireto utilizado com um complemento verbal sem preposição seria classificado como transitivo direto.
Os dados devidamente tabulados foram encaminhados para tratamento estatístico no software SPSS 18 (tipo de distribuição, análise descritiva e inferencial). A distribuição dos dados respeitou a normalidade apenas no grupo com AEL, portanto, para as comparações intragrupo entre o número de substantivos e verbos, foi utilizado o teste t pareado e, para as análises entre os grupos, foi utilizado o teste de Mann-Whitney. O nível de significância adotado foi de 5% e os resultados significantes foram assinalados com asterisco.
Os pré-escolares com AEL utilizaram mais verbos do que substantivos em suas produções (Gráfico 1). A comparação entre o desempenho dos sujeitos com AEL e com DTL revelou que o uso de substantivos não se distingue nestes grupos independentemente da idade linguística expressiva. Já para o uso de verbos, não houve distinção nos subgrupos de 2 e 4 anos, mas os sujeitos de 3 anos com AEL produziram mais verbos do que seus pares (Tabela 2).
Legenda: * diferença estatística p<0,05 – Teste t pareado
Gráfico 1 Comparação do uso de substantivos e verbos no grupo com AEL
Tabela 2 Comparação do uso de cada tipo de palavra entre os grupos pareados por idade linguística expressiva
Idade | Grupo | Mediana | Intervalo interquartil | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Substantivo | 2 anos | AEL | 76 | 72 | . | 0,109 |
DTL | 53 | 34 | 64 | |||
3 anos | AEL | 64 | 38 | 83 | 0,203 | |
DTL | 52 | 46 | 62 | |||
4 anos | AEL | 63 | 49 | 80 | 0,409 | |
DTL | 62 | 47 | 73 | |||
Verbo | 2 anos | AEL | 95 | 49 | . | 1,000 |
DTL | 68 | 60 | 77 | |||
3 anos | AEL | 103 | 94 | 130 | 0,003* | |
DTL | 80 | 67 | 88 | |||
4 anos | AEL | 116 | 86 | 137 | 0,111 | |
DTL | 100 | 90 | 106 |
*diferença estatística p<0,05 – teste de Mann-Whitney
Legenda: AEL = alteração específica de linguagem; DTL = desenvolvimento típico de linguagem
Os tipos de verbos mais utilizados pelos pré-escolares com AEL foram: intransitivo, de ligação e transitivo direto (Gráfico 2).
A comparação entre os sujeitos com AEL e com DTL para o uso dos tipos de verbos não indicou diferença nos intransitivos, transitivos indiretos, transitivos relativos e transobjetivos produzidos para nenhuma idade. Mas os sujeitos com AEL utilizaram mais o verbo transitivo direto que seus pares aos 2 e 3 anos; o bitransitivo aos 3 e 4 anos; e o verbo de ligação aos 4 anos. Por fim, os sujeitos com DTL utilizaram mais o verbo transitivo circunstancial que seus pares em todas as idades (Tabela 3).
Tabela 3 Comparação do uso de cada tipo de verbo entre os grupos pareados por idade linguística expressiva
Tipo de verbo | Idade | Grupo | Mediana | Intervalo interquartil | Estatística | |
---|---|---|---|---|---|---|
Intransitivo | 2 anos | AEL | 37 | 13 | . | U=20,0 z=0,0 p=1,000 |
DTL | 25 | 22 | 33 | |||
3 anos | AEL | 27 | 24 | 39 | U=49,0 z=-1,163 p=0,245 | |
DTL | 27 | 21 | 36 | |||
4 anos | AEL | 41 | 26 | 49 | U=86,0 z=-0,992 p=0,321 | |
DTL | 33 | 29 | 42 | |||
Transitivo direto | 2 anos | AEL | 29 | 18 | . | U=2,0 z=-2,062 p=0,039* |
DTL | 10 | 7 | 14 | |||
3 anos | AEL | 31 | 25 | 35 | U=19,5 z=-2,798 p=0,005* | |
DTL | 20 | 14 | 24 | |||
4 anos | AEL | 27 | 22 | 46 | U=101,5 z=-0,352 p=0,725 | |
DTL | 32 | 22 | 36 | |||
Transitivo indireto | 2 anos | AEL | 3 | 1 | . | U=7,0 z=-1,598 p=0,110 |
DTL | 0 | 0 | 2 | |||
3 anos | AEL | 1 | 0 | 4 | U=67,5 z=-0,142 p=0,887 | |
DTL | 1 | 0 | 3 | |||
4 anos | AEL | 2 | 1 | 8 | U=106,0 z=-0,166 p=0,868 | |
DTL | 4 | 2 | 7 | |||
Transitivo relativo | 2 anos | AEL | 0 | 0 | 0 | U=16,0 z=-0,680 p=0,497 |
DTL | 0 | 0 | 0 | |||
3 anos | AEL | 0 | 0 | 1 | U=67,5 z=-0,154 p=0,877 | |
DTL | 0 | 0 | 1 | |||
4 anos | AEL | 0 | 0 | 1 | U=77,5 z=-1,428 p=0,153 | |
DTL | 1 | 0 | 2 | |||
Transitivo circunstancial | 2 anos | AEL | 2 | 1 | . | U=0,5 z=-2,230 p=0,026* |
DTL | 10 | 6 | 17 | |||
3 anos | AEL | 3 | 1 | 3 | U=22,5 z=-2,653 p=0,008* | |
DTL | 7 | 4 | 8 | |||
4 anos | AEL | 3 | 0 | 5 | U=62,5 z=-1,974 p=0,048* | |
DTL | 5 | 3 | 8 | |||
Bitransitivo | 2 anos | AEL | 3 | 2 | . | U=5,5 z=-1,822 p=0,068 |
DTL | 0 | 0 | 2 | |||
3 anos | AEL | 2 | 1 | 6 | U=14,0 z=-3,312 p=0,001* | |
DTL | 0 | 0 | 1 | |||
4 anos | AEL | 3 | 2 | 8 | U=15,0 z=-4,378 p<0,001* | |
DTL | 0 | 0 | 0 | |||
Transobjetivo | 2 anos | AEL | 0 | 0 | 0 | U=19,0 z=-0,316 p=0,752 |
DTL | 0 | 0 | 0 | |||
3 anos | AEL | 0 | 0 | 1 | U=62,5 z=-0,613 p=0,540 | |
DTL | 0 | 0 | 0 | |||
4 anos | AEL | 0 | 0 | 0 | U=96,5 z=-0,871 p=0,384 | |
DTL | 0 | 0 | 0 | |||
de ligação | 2 anos | AEL | 22 | 13 | . | U=16,5 z=-0,401 p=0,689 |
DTL | 16 | 12 | 20 | |||
3 anos | AEL | 29 | 23 | 48 | U=38,0 z=-1,774 p=0,076 | |
DTL | 23 | 16 | 27 | |||
4 anos | AEL | 32 | 23 | 42 | U=28,5 z=-3,370 p=0,001* | |
DTL | 18 | 15 | 22 |
*diferença estatística p<0,05 – teste de Mann-Whitney
Legenda: AEL = alteração específica de linguagem; DTL = desenvolvimento típico de linguagem
O objetivo principal deste estudo foi comparar o uso de substantivos e verbos utilizados por pré-escolares com alterações específicas de linguagem, além de comparar seu desempenho ao de seus pares em desenvolvimento típico.
Com relação à comparação quantitativa entre substantivos e verbos utilizados pelos sujeitos com AEL, os resultados demonstram que os pré-escolares com alteração de linguagem utilizaram mais verbos do que substantivos em suas produções (Gráfico 1). Esse achado difere dos resultados obtidos em estudos internacionais, uma vez que os sujeitos com alteração de linguagem falantes do Inglês apresentaram melhor desempenho no uso de nomes do que de verbos(5,13,18,27).
As crianças com AEL falantes do Inglês possuem aprendizado mais lento para os verbos(13), além de dificuldade no seu mapeamento rápido(5) e processamento linguístico(18). Contudo, essas diferenças podem ser decorrentes da língua falada, já que nossos achados reproduzem o que foi observado em pré-escolares brasileiros em desenvolvimento típico(6).
Comparando os sujeitos com AEL e seus pares por idade linguística expressiva quanto ao uso de substantivos, é interessante notar que não foram encontradas diferenças (Tabela 2). Isso demonstra que o grupo com AEL utiliza os substantivos da mesma forma que seus pares, embora de maneira mais lentificada, como é característico dessa alteração de linguagem(4). Nesse sentido, é importante acentuar que os sujeitos do grupo com AEL tinham maior idade cronológica que seus pares, o que comprova esse atraso.
Já quando essa comparação considerou os verbos não houve distinção nos subgrupos de 2 e 4 anos, mas, no de 3 anos, os sujeitos com AEL produziram mais verbos do que seus pares (Tabela 2). Os sujeitos com AEL possuem um gap entre suas idades cronológica e linguística, de modo que, embora pareados pela linguagem expressiva, possuem maior vivência de exposição à língua, e por isso podem ter utilizado mais verbos que seus pares linguísticos. Além disso, considerando sua idade cronológica avançada, é possível que eles tenham tido menos uniformidade em seu desenvolvimento linguístico, de modo que diferenças pontuais como estas seriam compreensíveis.
Estes achados podem divergir de resultados da língua inglesa, pois seus verbos são estanques, sofrendo poucas variações com relação à pessoa, tempo e modo verbal. Já os verbos do Português Brasileiro, e das línguas romanas em geral, apresentam, por outro lado, muitas variações de tempo, modo, número e pessoa(19). Tais variações permitem que um mesmo verbo seja exposto de diferentes formas aos falantes, e quanto maior a frequência de um verbo no estímulo, mais e com maior flexibilidade ele pode aparecer na fala da criança, beneficiando seu aprendizado(6).
Com relação à classificação dos tipos de verbos produzidos pelos pré-escolares com AEL, foi possível observar que os verbos mais utilizados foram o intransitivo, o de ligação e o transitivo direto (Gráfico 2). Nossos resultados concordam com achados internacionais do Inglês sobre a dificuldade relacionada ao uso de argumentos verbais por sujeitos com AEL(10,19,20,28). As crianças com AEL utilizam verbos omitindo seus argumentos, pois sua aprendizagem é difícil e está relacionada à complexidade verbal(28,29).
Comparando-se os sujeitos com AEL com seus pares por idade linguística expressiva, observamos diferenças pontuais: maior uso do verbo transitivo direto aos 2 e 3 anos, do bitransitivo aos 3 e 4 anos, e do verbo de ligação aos 4 anos por sujeitos com AEL (Tabela 3). Novamente o gap entre suas idades cronológica e linguística pode ter contribuído para essas diferenças, especialmente no caso do verbo de ligação, é possível que os sujeitos com idade linguística de quatro anos já tenham percebido que este tipo de verbo é de uso simples, e por isso o utilizem com mais frequência.
Porém, para o verbo transitivo circunstancial, o padrão oposto foi observado em todas as idades, ou seja, o grupo sem alteração de linguagem utilizou mais este tipo de verbo do que as crianças com AEL (Tabela 3). Como este tipo de verbo requer um complemento que pode ser ou não preposicional, seu uso exige mais habilidade linguística na estruturação gramatical por parte do falante, o que pode justificar o menor uso pelos sujeitos com AEL(26).
Em síntese, observamos a omissão de complementos verbais com frequência, fator responsável pelo grande número de verbos intransitivos por falante. Isto pode nos dar mostras da dificuldade na estruturação gramatical vivenciada pelo sujeitos com AEL. Sendo o verbo uma classe de palavras com valor sintático e semântico significativo, nossos sujeitos podem ter reduzido suas sentenças ao seu uso, que em si já expressa significado, mas que requer menos refinamento linguístico. Assim, eles podem ter optado pelos verbos cuja utilização seja mais simples, considerando que os intransitivos não necessitam de argumento verbal; que os transitivos diretos, apesar de necessitarem de argumento, não requerem a utilização de preposições - uma classe de palavras que em si já denota dificuldade aos sujeitos com AEL por ser pouco concreta(30); e os verbos de ligação, por sua vez, possuem apenas a função de relacionar o predicado com o sujeito.
É importante ressaltar que alguns fatores podem ter limitado os resultados de nosso estudo. A tarefa composta por fala espontânea permitiu verificar o uso funcional da linguagem e das classes gramaticais de substantivos e verbos por sujeitos com AEL, demonstrando suas habilidades línguísticas e comunicativas reais. Entretanto, também contribuiu para questionamentos envolvendo o contexto, como possível influenciador das omissões de argumentos verbais. Desse modo, replicar o estudo com uma tarefa mais direcionada à complementação verbal pode ser útil e esclarecedor aos nossos propósitos, apesar de a fala espontânea ser, em si, uma mostra importante sobre o uso efetivo da linguagem, e de grande valor, do ponto de vista de sua avaliação e reabilitação.
Além disso, nosso estudo contou com um número restrito de sujeitos com AEL, que, quando subdividido pela idade da linguagem expressiva, transformou-se em amostras ainda menores. Cientes desse fator, salientamos que, embora nossos resultados estatísticos sejam fidedignos, uma amostra maior poderia nos dar indícios mais robustos para o estudo do desenvolvimento de linguagem, aquisição e uso de verbos por crianças com AEL.
Entretanto, ressaltamos a validade de nossos achados à prática clínica fonoaudiológica, pois esta análise nos fornece de maneira clara e objetiva indícios importantes sobre o uso funcional da linguagem, e permite quantificações precisas acerca desses diferentes tipos de palavras no encadeamento da fala espontânea. Do mesmo modo, torna-se possível traçar estratégias terapêuticas voltadas à morfossintaxe baseando-se na idade linguística expressiva de cada sujeito, e seguindo o padrão esperado ao desenvolvimento típico nesse mesmo estágio.
Por fim, afim de investigar mais a fundo a produção e o uso gramatical de verbos, sugerimos estudos futuros com análises a respeito da variabilidade da produção verbal por sujeitos com AEL. Acreditamos que assim será possível inferir com mais propriedade a respeito da interferência do tempo de vivência linguística no uso de verbos, bem como se a quantidade de verbos produzidos por sujeito pode ser indicativa de maior ou menor maturidade linguística.
Os pré-escolares com alterações específicas de linguagem falantes do Português Brasileiro utilizaram mais verbos do que substantivos em atividade de fala espontânea. O uso de substantivos não diferiu entre o grupo com AEL e seus pares em desenvolvimento típico, porém o uso de verbos aos 3 anos foi maior no grupo com AEL.
Com relação aos tipos de verbos, os sujeitos com AEL utilizaram com maior frequência os verbos de ligação, intransitivo e transitivo direto. A comparação entre os grupos, neste aspecto, indicou diferenças pontuais para os verbos transitivo direto, bitransitivo e de ligação; apenas o verbo transitivo circunstancial foi mais utilizado pelos sujeitos em DTL para todas as idades.