versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.3 São Paulo mar. 2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140024
A Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC) ocorre quando há incapacidade do coração em manter a demanda metabólica basal frente à pressão venosa fisiológica. Na população pediátrica, corresponde a uma entidade complexa de múltiplas etiologias, a depender da faixa etária avaliada, e ocorre principalmente se associada a malformações estruturais congênitas, cardiomiopatias ou secundária a eventos arritmogênicos, infecciosos, isquêmicos, tóxicos ou infiltrativos1.
A incidência da ICC em crianças também varia conforme a condição de base. Estima-se que pacientes com defeitos cardíacos congênitos apresentam incidência de ICC entre 15 a 25% na evolução clínica. Enquanto isso, em corações estruturalmente normais, a miocardiopatia é o principal fator associado à ICC, com incidência descrita de 40% de ICC nesses pacientes1.
A miocardiopatia não compactada isolada é uma doença rara, com incidência na população geral de 0,014 a 1,3%. Provavelmente, seu desenvolvimento se dá em razão de falha da compactação do miocárdico entre a 5ª e 8ª semanas de vida embrionária, levando à persistência de trabeculações e recessos profundos, que se comunicam com a cavidade ventricular e geram espessamento do miocárdio em duas camadas distintas (compactado e não compactado). Descrita inicialmente na população pediátrica ou em conjunto com cardiopatia congênita, também acomete pacientes adultos que não apresentam outra doença cardíaca2 , 3.
Postula-se que essa falha sobre a regressão dos sinusoides embrionários possa ocorrer devido às pressões muito elevadas a que os ventrículos são submetidos nesse período do desenvolvimento, mas o aspecto genético, descrito na literatura, ressalta a relação da doença com diferentes genes, como a mutação no gene G4.5 em famílias com miocardiopatia não compactada grave infantil, mutação P121L, CYPHER/ZASP, E101K e num lócus contendo o gene da doença no cromossomo 11p153.
Pacientes com miocardiopatia não compactada apresentam, como principais complicações, tromboembolismo pulmonar, arritmias e ICC3. Além do tratamento habitual da ICC, novas classes de medicamentos têm sido estudadas ao longo dos últimos anos, entre elas os inibidores da Fosfodiesterase do Tipo 5 (PDE 5)4. Com o uso corrente para o tratamento da disfunção erétil e da hipertensão arterial pulmonar, sua utilização no tratamento da ICC passou a ser estudada após se ter demonstrado maior expressão de PDE-5 nos miócitos e células musculares vasculares, bem como marcadores de estresse oxidativo em pacientes com ICC, interrogando se o uso dos inibidores de PDE-5 poderia ter papel nessa situação clínica5.
Relatamos aqui, pela primeira vez, a evolução clínica e laboratorial de um paciente portador de miocardiopatia não compactada, após uso de sildenafil (inibidor da PDE-5), em associação ao tratamento habitual.
Trata-se de paciente masculino, previamente hígido, admitido aos 6 anos de idade com quadro clínico compatível com ICC. Na investigação clínica, foram descartadas causas de ICC secundária a processos infecciosos, arritmogênicos, infiltrativos, tóxicos, isquêmicos ou doenças neuromusculares. A dosagem sérica de Peptídeo Natriurético do Tipo B (BNP) foi de 641 pg/mL e o ecocardiograma constatou fração de ejeção de Ventrículo Esquerdo (VE) de 19,1%, disfunção sistólica biventricular importante e disfunção diastólica do VE, além de dilatação importante do VE e discreta do átrio esquerdo. Foi observada, ainda, presença de trabeculações profundas, que se comunicavam com a cavidade livre do VE, com relação entre a área não compactada e a compactada de 3,2:1, e sem malformação estrutural, firmando o diagnóstico de miocardiopatia bilateral do tipo miocárdio não compactado (Figura 1). Iniciou se tratamento medicamentoso com Inibidor de Enzima Conversora da Angiotensina (IECA), diuréticos e carvedilol.
Figura 1 Estudo ecocardiográfico realizado aos 6 anos de idade mostrando dilatação das câmaras esquerdas, com aspecto esponjoso do ventrículo esquerdo e relação entre miocárdio não compactado e compactado igual a 3,2:1, em projeção de eixo longo (A) e eixo curto (C), e após 7 anos de tratamento clínico medicamentoso (B e D).
Após 1 ano de seguimento clínico e tratamento farmacológico otimizado (diuréticos, IECA e betabloqueador), o paciente evoluiu com piora dos sintomas e classe funcional, necessitando de nova internação. O seguimento ecocardiográfico demonstrou persistência de cardiomiopatia dilatada de importante repercussão hemodinâmica, com insuficiência tricúspide moderada e discreta insuficiência mitral. Frente ao diagnóstico e à evolução clínica desfavorável, indicou-se a avaliação visando ao transplante cardíaco. Nessa época, realizou estudo hemodinâmico que demonstrou miocardiopatia por ventrículos não compactados com miocárdio esponjoso, angiografia capilar normal e pressão capilar média de 25 mmHg.
Como terapia de resgate, foi indicado, nesse momento, o uso do sildenafil na dose de 2 mg/kg/dia enquanto aguardava doador. O seguimento trimestral clínico e de imagem mostrou melhora progressiva, com normalização da função ventricular, dos níveis séricos de BNP e da sintomatologia (Tabela 1). Com essa evolução, o paciente foi retirado da fila de transplante cardíaco, seguindo com boa Qualidade de Vida.
Tabela 1 Evolução do seguimento após associação do sildenafil. Descrição evolutiva de parâmetros clínico, laboratorial e ecocardiográfico antes e após introdução do sildenafil no tratamento medicamentoso
Antes do sildenafil | Durante administração do sildenafil | Depois da administração do sildenafil | |
---|---|---|---|
FC (bpm) | 100 | 80 | 79 |
SATO2 (%) | 90 | 99 | 99 |
Classe funcional | III | II | I |
VD (mm) | 23 | 19,1 | 14,7 |
VDF VE (mL/m2) | 208 | 122 | 95 |
VSF VE (mL/m2) | 168 | 51,6 | 48,7 |
FE VE (%) | 19 | 32-43 | 60 |
BNP (pg/mL) | 641 | 15 | 42 |
FC (bpm): frequência cardíaca (batidas por minuto); SATO2: saturação do oxigênio; VD: ventrículo direito; VDF VE: volume diastólico final de ventrículo esquerdo; VSF VE: volume sistólico final de ventrículo esquerdo; FE VE: fração de ejeção de ventrículo esquerdo; BNP: peptídeo natriurético cerebral.
Relatamos, pela primeira vez, o caso de um paciente escolar, portador de miocardiopatia não compactada, com disfunção miocárdica refratária ao tratamento clínico convencional e que obteve melhora significativa dos parâmetros clínicos, laboratoriais e de imagem após associação de um inibidor da PDE-5 (sildenafil) ao tratamento medicamentoso de base.
A miocardiopatia não compactada foi descrita inicialmente em 1932, em necrópsia, e corresponde a uma doença heterogênea com prognóstico reservado. O tratamento baseia se na evolução para insuficiência cardíaca sistólica, na presença de fenômenos tromboembólicos ou de arritmias secundários ao acometimento ventricular esquerdo. O miocárdio não compactado isolado pode ser identificado desde a infância até a vida adulta, ocorrendo em ambos os gêneros6.
O prognóstico é extremamente variável, sendo as complicações consideravelmente menos frequentes na faixa etária pediátrica7. Numa série de casos de adultos, em torno de 60% sofreram morte súbita ou foram submetidos a transplante cardíaco num prazo de 6 anos após o diagnóstico1. De forma semelhante, em outra série de casos, 47% de 34 adultos com miocardiopatia não compactada isolada tiveram o mesmo desfecho num período de seguimento de 44 ± 39 meses2.
A PDE-5 é uma enzima com especificidade para catalisar a hidrólise do GMPc presente em diversos tecidos, atuando no metabolismo do óxido nítrico intracelular. Sua inibição favorece a vasodilatação, via permanência do GMPc intracelular8. Entretanto, na disfunção cardíaca, o efeito benéfico do uso de inibidores da PDE-5 parece estar relacionado ao desvio da cascata e ao aumento da produção de AMPc, com aumento do cálcio intracelular e melhora da contratilidade5. Esse efeito ainda foi relacionado à preservação da função ventricular esquerda e à diminuição da fibrose, da apoptose e da hipertrofia ventricular esquerda, por meio da inibição da via RhoA/Rhokinase. Essa é a via fisiopatológica associada à aterosclerose, hipertrofia cardíaca e remodelação pós-infarto8.
O sildenafil é um inibidor seletivo da PDE-5 inicialmente empregado para o tratamento de disfunção erétil que apresenta potenciais aplicações não urológicas4. Segundo Freitas Jr. e cols.9, a administração aguda de sildenafil e de nitroprussiato de sódio esteve associada ao remodelamento cardíaco reverso, com redução das câmaras cardíacas direitas e melhora da função cardíaca biventricular9. Observou-se que o uso de sildenafil melhora a captação de oxigênio, o índice cardíaco, a depressão e a qualidade de vida, bem como reduz a rigidez aórtica e a resistência vascular sistêmica em pacientes com ICC. Bocchi e cols.5 demonstraram que, no exercício, o uso do sildenafil melhorou a capacidade física, a atenuação do aumento da frequência cardíaca e sua redução no período de recuperação, durante teste ergométrico em esteira5. Enquanto isso, Gómez-Sánchez e cols.10 e Freitas Jr e cols.9 demonstraram que uma única dose de 100 mg de sildenafil sublingual foi eficaz e segura na redução da pressão pulmonar e de suas variáveis durante o teste de reatividade vascular pré-transplante cardíaco, evidenciando que, além da redução significativa da pressão sistólica da artéria pulmonar e das resistências pulmonar e sistêmica, houve aumento do débito cardíaco e mínimas repercussões sobre a circulação sistêmica9 , 10.
A utilização do sildenafil não está liberado para uso rotineiro em população pediátrica, exceto para o tratamento da hipertensão arterial pulmonar. Contudo, a ausência de terapias outras que pudessem contribuir para melhora da classe funcional e reversão da insuficiência cardíaca motivou o uso off label.
Embora maiores extrapolações não possam ser feitas com base em um único relato de caso, nosso trabalho sugere que o uso de sildenafil possa ter papel importante para o tratamento da ICC na população pediátrica, mesmo na ausência de hipertensão arterial pulmonar, ressaltando a necessidade de estudos desenhados para tal fim, nessa população específica.