versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.8 Rio de Janeiro ago. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017228.08622017
O uso racional de medicamentos (URM) é considerado um dos elementos-chave recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para as políticas de medicamentos1. Na Política Nacional de Medicamentos (PNM) do Brasil, ele é definido como o processo que compreende a prescrição apropriada; a disponibilidade oportuna e a preços acessíveis; a dispensação em condições adequadas; e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período de tempo indicado de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade2 e sua promoção faz parte de uma das diretrizes prioritárias.
Para a implementação do URM é necessário desenvolver estratégias como a seleção de medicamentos, construção de formulários terapêuticos, gerenciamento adequado dos serviços farmacêuticos, dispensação e uso apropriado de medicamentos, farmacovigilância, educação dos usuários quanto aos riscos da automedicação, da interrupção e da troca de medicamentos prescritos. Estratégias de regulação são também essenciais porque vão pautar as relações na produção, na comercialização e na prescrição. Sem dúvida, os aspectos mais sujeitos a influências perniciosas de indução ao uso não racional dos medicamentos.
Há, ainda, uma série de hábitos e práticas que impedem sua efetivação, tais como: multiplicidade de produtos farmacêuticos registrados como novidades que não se diferem dos já existentes, difusão do uso sem uma avaliação dos impactos da adoção do produto, julgamento negativo sobre as práticas que direcionam o uso racional, muitas vezes entendida como elemento que cerceia a liberdade do prescritor e influência da indústria farmacêutica. Além disso, intervenções promotoras de URM geram desconfiança nos pacientes que têm suas crenças reforçadas pelas propagandas que estimulam o consumo no lugar de o educar3.
O crescimento excessivo no uso de medicamentos em muitos países tem sido apontado como uma importante barreira para o alcance do URM. Segundo Busfield4, esse crescimento é bem reconhecido e pode ser visto como uma clara evidência de um fenômeno denominado ‘farmaceuticalização’. Farmaceuticalização (Pharmaceuticalization) pode ser definido como a tradução ou a transformação das condições humanas, recursos e capacidades em oportunidades de intervenção farmacêutica5. Estes processos vão além dos domínios médicos ou medicalizados para abranger outros usos, não médicos para estilo de vida, melhoramento cognitivo ou de performance sexual entre pessoas ‘saudáveis’.
Ainda segundo Busfield4, se antes a preocupação era com a utilização indiscriminada de antimicrobianos, atualmente os psicofármacos, em especial o metilfenidato, têm se tornado objeto de atenção de teóricos do tema. Considerado pela Organização Mundial da Saúde como o psicoestimulante sintético mais vendido no mundo, o medicamento com o princípio ativo metilfenidato chegou ao Brasil apenas em 19986.
Segundo o International Narcotics Control Board (2013), em 2012, a produção global de metilfenidato registrou um recorde de mais 63 toneladas. Embora haja um aumento no número de países fabricando a substância nos últimos anos, os Estados Unidos da América (EUA) permanece como fabricante de quase 97% da produção total. Ainda em 2012, EUA, Canadá, Alemanha, Espanha, Suíça, Países Baixos, Brasil, Suécia, Israel, África do Sul e Austrália7 estavam entre os principais consumidores do medicamento. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM), um estudo transversal realizado no Brasil entre os anos de 2013 e 2014 encontrou o metilfenidato entre os medicamentos mais usados em doenças crônicas entre crianças de 6 a 12 anos8.
O metilfenidato, medicamento que na década de 50 não tinha destinação certa e era usado para cansaço em idosos, tem sido a primeira opção terapêutica para o Transtorno de Déficit de Atenção, com ou sem Hiperatividade (TDA/H) em crianças e adultos. Segundo Ortega et al.6, nos dias atuais o uso frequente e a confiabilidade atribuída aos seus efeitos servem como referência para legitimar o diagnóstico. É um medicamento controlado pela portaria SVS 344/98 e só pode ser dispensado com Notificação de Receita tipo “A” de cor amarela para medicamentos relacionados na lista A3 onde se inserem os Psicotrópicos. Seu uso é objeto de uma série de controvérsias principalmente porque é também utilizado para melhoramento do desempenho cognitivo de indivíduos saudáveis.
Desenvolvido pela OMS no final dos anos de 1970, quando o mundo vivia um boom da indústria farmacêutica, o conceito de URM se materializa como política pública nos dias de hoje através de uma estratégia estruturante para sua promoção: a implementação da lista de Medicamentos Essenciais (ME). Entendidos como medicamentos que satisfazem as necessidades prioritárias da saúde da população, estes fármacos devem ser utilizados seguindo uma determinada racionalidade, sendo selecionados por critérios de eficácia, segurança, conveniência, qualidade e comparação de custo favorável.
Recentemente, conselhos de classes, Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Saúde iniciaram um movimento que defende a necessidade de empreender esforços para a construção de diretrizes que subsidiem políticas públicas para racionalização dos usos do metilfenidato e enfrentamento das situações de abuso9. No Brasil, o metilfenidato não integra a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) estabelecida pelo Ministério da Saúde. No entanto, como estados e municípios tem relativa autonomia para incluir produtos que atendam as especificidades locais, já é possível perceber um movimento de inclusão deste medicamento nas listas selecionadas de algumas cidades. Com critérios pré-estabelecidos, usuários do SUS recebem o metilfenidato como padronizado no âmbito da política farmacêutica de São Paulo, Campinas e Espírito Santo.
O Espírito Santo foi o primeiro estado no país a criar uma portaria para regular dispensação pública deste medicamento, em setembro de 201010, seguido pelo Município de São Paulo em junho de 201411 e, finalmente, por Campinas em outubro de 201412. As três regulamentações apresentam diferenças interessantes. Critérios como a idade e os sintomas para inclusão no protocolo, concentração do medicamento dispensado, especialização do prescritor e local para dispensação são os principais itens que as diferenciam.
No Rio de Janeiro, a aprovação de uma lei municipal não foi suficiente para que fosse estruturado um programa de dispensação pública13. No ano de 2012, o prefeito Eduardo Paes sancionou o projeto de lei de nº 710/2010 de autoria do vereador Tio Carlos que garante direitos aos alunos com TDAH do Município do Estado do Rio de Janeiro. A lei que dispõe sobre as diretrizes a serem adotadas pelo Município do Estado do Rio de Janeiro para realizar a orientação a pais e professores sobre as características do Transtorno do Déficit de Atenção – TDAH, determina também a disponibilização de remédios associados ao tratamento do transtorno nos equipamentos de saúde pública municipais.
Em meio a tantas controvérsias sobre a efetividade do medicamento para o tratamento do TDAH, o Boletim Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde (BRATS) publicou, em março de 2014, um estudo que indica que este é um medicamento com “alto potencial de abuso e dependência” e que a “avaliação do efeito do metilfenidato para o TDAH deve ser cautelosa”14. Segundo os autores, foi encontrada baixa qualidade metodológica, curto período de seguimento e pouca capacidade de generalização na maior parte dos estudos sobre eficácia e segurança do uso do metilfenidato em crianças e adolescentes. Ainda assim, o documento conclui que há evidências de que crianças que não possuem TDAH estariam sendo medicadas e casos da doença sendo tratados sem necessidade. O diagnóstico deste transtorno é dimensional, pois envolve padrões típicos de comportamento da faixa etária e os apresentados pelos indivíduos. Ademais, os sintomas do transtorno podem ser encontrados no comportamento dos indivíduos com desenvolvimento típico. Machado et al.15 apresentam duras críticas ao boletim e afirmam que esta conclusão não está nos artigos incluídos no estudo.
As incertezas no diagnóstico, comorbidades frequentes relatadas no TDAH e a relação do indivíduo com a escola ou o trabalho são fatores que desafiam a adesão aos protocolos de tratamento. Wannmacher16 afirma que a tomada de decisão terapêutica, incluindo a prescrição de medicamentos deve ser permeada pela ética. Se por um lado, o profissional deve estar sempre atualizado, ciente de que a “ciência é mutável e permanentemente alimentada por novas evidências”, é necessário também que estas evidências estejam consolidadas com metodologia científica que gere graus de recomendação, isentas de conflito de interesses e que considere os princípios da autonomia, justiça, não maleficiência e beneficência.
Desta forma, a partir da decisão de construir protocolos de utilização do metilfenidato como forma de racionalizar o uso e mediante relatos da literatura, o presente artigo objetiva discutir, os limites e os desafios impostos pelas diferentes formas de uso do medicamento.
Trata-se de estudo exploratório realizado por meio de revisão narrativa da literatura científica sobre o fenômeno da farmaceuticalização, uso racional de medicamentos e os usos do metilfenidato.
A proposta inicial para a busca bibliográfica incluía a combinação entre si dos seguintes descritores: “farmaceuticalização”, “uso racional de medicamentos” e “metilfenidato”. Tendo em vista a originalidade do tema e a oposição implícita entre as práticas do uso racional de medicamentos e os efeitos da farmaceuticalização só foram encontrados três artigos, dois para a combinação “pharmaceuticalization” OR “pharmaceuticalisation” AND “rational use of medicines” na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS)4 e SciELO17 e outro para “pharmaceuticalization” OR “pharmaceuticalisation” AND “methylfenidate” no PubMed-Medline e no Scopus18. Um nova tentativa nas mesmas bases com os termos “pharmaceuticalization” OR “pharmaceuticalisation” AND “cognitive enhancement” também retornou em apenas um artigo19.
Esta limitação obrigou a inclusão de mais duas combinações, quais sejam: (Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND “Label” (offlabel)20,21, (Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND “Mental Illness”22,23. Vale ressaltar que por ser um neologismo o termo Pharmaceuticalization em inglês pode ser escrito com a letra S ou Z. Isso foi controlado na busca por meio do operador booleano “OR”. Foram consultadas as bases de dados científicas PubMed-Medline, Scopus e BVS e SciELO, sem delimitação de tempo.
Os critérios de inclusão determinados foram artigos publicados em revistas indexadas e disponíveis de forma completa para acesso aberto. Como somente oito artigos retornaram nas buscas realizadas com as combinações de palavras-chaves utilizadas, não foram aplicados critérios de exclusão. A opção por não incluir o termo “medicalização” evidentemente limitou os achados sobre o tema, no entanto, permitiu uma melhor reflexão sobre a produção dos argumentos presentes no desenvolvimento dos muitos sentidos da farmaceuticalização. Para a gestão bibliográfica foi utilizado o programa Zotero versão 4.0.21.2.
Todos os artigos foram lidos na íntegra e para a análise foi utilizada uma ficha de extração de dados composta das variáveis: título, ano de publicação, objetivo, formas de utilização do medicamento, formas de obtenção do medicamento, elementos contidos do conceito de URM.
Inicialmente, as categorias elaboradas para análise dos trabalhos selecionados seriam os dois conceitos centrais do artigo, isto é, “farmaceuticalização” e “uso racional de medicamentos”. No entanto, após a leitura exaustiva dos artigos foi possível perceber que o uso off label ocupa um papel central no processo de farmaceuticalização que envolve o metilfenidato. Desta forma, a análise teve como referência as seguintes categorias: uso off label do metilfenidato, uso racional de medicamentos e farmaceuticalização.
A categorização permitiu detalhar e integrar os diferentes temas abordados nos artigos e com isso relacionar de forma mais abrangente a farmaceuticalização e as diferentes formas de uso do metilfenidato.
As iniciativas de construção de protocolos para dispensação pública de metilfenidato fazem parte de um movimento inicial para tentar racionalizar os usos e minimizar empregos inadequados do medicamento23-26. No entanto, as incertezas sobre quem se beneficia com o tratamento e dificuldades ainda existentes para estabelecer um diagnóstico desafiam a construção de diretrizes sólidas para o uso racional deste medicamento. Os artigos encontrados na revisão são apresentados no Quadro 1. Os conteúdos detalham aspectos importantes que envolvem o fenômeno da farmaceuticalização como uma importante barreira para as práticas do uso racional de medicamentos.
Quadro 1 Número e referência dos artigos encontrados segundo a base de dados.
Base de Dados / Palavras-chaves | Scopus | Pubmed Medline | Bireme Lilacs | Scielo |
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(Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND (Rational Use of Medicines) | Busfield J. Assessing the overuse of medicines. Soc Sci Med 2015; 131:199-206. | 1* *Mesmo do Scopus | 0 | Biehl J. Patient-Citizen-Consumers: Judicialization of health and metamorphosis of biopolitics. Lua Nova Rev. Cult. e Política 2016; 98:77-105. |
(Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND (Methylphenidate) | Vrecko S. Everyday drug diversions: A qualitative study of the illicit exchange and non-medical use of prescription stimulants on a university campus. Soc Sci Med 2015; 131:297-304. | 1* *Mesmo do Scopus | 0 | 0 |
(Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND (Cognitive Enhancement) | Coveney C, Williams S, Gabe J. The Sociology of Cognitive Enhancemente: Medicalisation and Beyond. Health Sociology Review 2011; 20(4):381-393. | 0 | 0 | 0 |
(Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND Label (off label) | Towghi F. Normalizing Off-Label Experiments and the Pharmaceuticalization of Homebirths in Pakistan. Ethnos 2014; 79(1):108-137. Bell SE, Figert AE. Medicalization and pharmaceuticalization at the intersections: Looking backward, sideways and forward. Soc Sci Med 2012; 75(5):775-783. | 0 | 0 | 0 |
(Pharmaceuticalization OR Pharmaceuticalisation) AND Mental Illness | Kokanovic R, Bendelow G, Philip B. Depression: the ambivalence of diagnosis. Sociol Health Illn 2013; 35(3):377-390. Fisher JA, Cottingham MD, Kalbaugh CA. Peering into the pharmaceutical “pipeline”: Investigational drugs, clinical trials, and industry priorities. Soc Sci Med 2015; 131:322-330. | 2* *Mesmos do Scopus | 0 | 0 |
No caso das características e comportamentos semelhantes ao TDAH, assim como em outros transtornos mentais, muitos indivíduos percorrem diferentes especialistas em busca de uma solução para suas dificuldades, incômodos, sofrimentos e fracassos gerados por situações relacionadas à falta ou pouca atenção22. A partir do que é divulgado na mídia, buscam médicos que prescrevam o tratamento. Há também aqueles que buscam ampliar sua capacidade cognitiva para prestar concursos, produzir trabalhos que exijam muita concentração, aumentar sua produtividade ou até mesmo diminuir a procrastinação19 e ainda, crianças e adolescentes que cumprem as características determinadas nos protocolos para diagnóstico.
Muitos são usos off label, isto é, distintos dos aprovados em bula que inclui indicação, posologia, formas de administração e faixas etárias distintas das testadas e aprovadas24. Para o termo em inglês não há tradução oficial no Brasil24. Busfield4 aponta a prescrição off-label amplamente utilizada por médicos, a não conformidade de alguns esquemas terapêuticos considerados como “irracionais” ou “não racionais” e a definição de comportamentos de alguns pacientes como “racional” como aspectos importantes da discussão do uso excessivo de medicamentos.
Dentre as muitas atribuições da Anvisa, regular a prática médica não está sob seu escopo. Desta forma, não há como estabelecer controle para as prescrições resultantes dessa prática profissional, o que possibilita que um medicamento seja aprovado para uma finalidade e prescrita para outra, bem diferente dos ensaios clínicos23,24. No caso do metilfenidato, a bula registrada na Anvisa remete ao prescritor a responsabilidade de determinar a dose e o esquema de uso. Dados de consumo apontam um uso mais frequente em períodos letivos, especialmente no segundo semestre e pode estar influenciado pelos usos off label da substância. O fato de ter efeitos colaterais leves para muitos pode encorajar o aumento de doses efeitos ou o uso de substâncias mais potentes.
Osorio-de-Castro et al.25 afirmam, no entanto, que o uso de medicamentos não é motivado apenas por necessidades de saúde. Ao contrário do uso racional (URM), desenvolve-se, paralelamente, “práticas e desejos” não racionais de utilização de fármacos por indivíduos e populações”25,26. O alcance e a popularidade de um fármaco não se baseiam apenas na sua capacidade para conseguir um efeito, mas a sua interação com pressões culturais e sociais que definem uma condição como merecedoras de resolução farmacêutica20,23.
Busfield4 propõe uma tipologia de cinco tipos de uso inadequado. São eles: a) Não recebimento de um medicamento que é clinicamente necessário (benefícios compensariam os riscos); b) Recebimento/uso de um medicamento que não é eficaz para a condição a ser tratada (riscos superam os benefícios); c) Recebimento/uso de um medicamento em que não há necessidade clínica adequada para ele (riscos superam quaisquer benefícios); d) Recebimento/uso de um medicamento certo, mas nas doses ou duração ou combinação com outros medicamentos erradas (mudando assim a equação risco-benefício); e) Recebimento/uso de um medicamento caro, quando um mais barato seria tão eficaz quanto.
De acordo com Osório-de-Castro et al.25 existiriam alguns fatores que contribuem com esta prática: uma grande oferta (em quantidade ou em variedade) de medicamentos, considerados essenciais ou não; a atração proporcionada por novidades terapêuticas17; o marketing poderoso da indústria farmacêutica; o direito supostamente alienável do médico de prescrever; e até sincretismos culturais, que expõem os medicamentos a usos jamais pensados por aqueles que o desenvolveram20.
No caso do Metilfenidato, por ser um medicamento controlado que só pode ser vendido com retenção da prescrição, há duas resoluções importantes que regulam a propaganda e a venda. A primeira é a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 96/2008 que dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas para divulgação comercial de medicamentos resolve que a propaganda ou publicidade só pode ser efetuada em revistas de conteúdo exclusivamente técnico, referentes a patologias e medicamentos, dirigidas direta e unicamente a profissionais de saúde habilitados a prescrever e/ou dispensar medicamentos27. A segunda é a RDC nº 63/2008 que veda comercialização de medicamentos regulados pela portaria 344/98 em ambientes virtuais, sendo a aquisição possível apenas de forma presencial em estabelecimento farmacêutico28. Isso, no entanto, não tem sido suficiente e a internet tem permitido ir além do acesso à informação, criando ambientes onde esse medicamento é facilmente localizado e adquirido sem a influência de médicos ou autoridades sanitárias.
O acesso à infinidade de fontes de informação disponíveis na internet tem papel fundamental na conformação desta postura ativa do indivíduo que decide utilizar um psicofármaco como o metilfenidato. Os novos espaços virtuais de compartilhamento de informações modificam ou interferem na relação com médicos que deixam de ser detentores supremos do saber e passam a ser questionados por pacientes cada vez mais informados29.
Entre os anos de 2009 e 2011, Vrecko18 coordenou uma investigação qualitativa que teve como sujeitos usuários do medicamento Aderall (mistura de sais de anfetamina, também utilizado para TDAH e proibido no Brasil) que fazem uso para fins de melhoramento cognitivo em ambientes universitários ingleses. No estudo foram constatadas as seguintes formas de aquisição do medicamento para utilização não terapêutica: amigos, membros da família, mercado paralelo e médicos “enganados” por pacientes. A aquisição feita por meio de amigos conta com a proximidade de alguém que tem a prescrição e fornece sem expectativa de um pagamento ou outra troca monetária. O fornecimento consiste em apenas algumas pílulas e não é feito de forma regular. Não há solicitação direta por parte de quem recebe sob risco de incluir o fornecedor em alguma situação embaraçosa, mas são narradas estratégias de sedução e manipulação para esta obtenção. Assim como entre os amigos, a aquisição feita por meio de membros da família ou parceiros íntimos não envolve troca monetária mas é mais impositiva que a anterior. O fato de ser algo de um parente próximo faz com que este “objeto” (o medicamento) possa ser compartilhado como qualquer outro. Inclui estratégias que não são feitas com amigos. Já no mercado paralelo, as interações são impessoais e envolvem dinheiro. Segundo Vrecko18, os dados coletados nas entrevistas mostram que os fornecedores não eram traficantes e sim conhecidos, “amigos de amigos” e a transação indicou a necessidade de mobilização de uma rede social. Ficou explícita a necessidade de confiar em amigos dispostos a intermediar as relações que garantirão o fornecimento. Foi possível perceber ainda, que quando o medicamento era adquirido nesta modalidade, em troca de dinheiro, ganhava uma conotação mais próxima de ‘droga’, uso de rua, perigo e ilegalidade e menos percebida como um ‘remédio’, que, por comparação, foi apresentada como relativamente segura e socialmente aceita. A última forma de aquisição apresentada no estudo foi enganando os médicos e envolvia formas fraudulentas e previamente planejadas para forjar sintomas que levassem a um (falso) diagnóstico de TDAH e consequentemente numa prescrição para o medicamento desejado. Com a obtenção de suas próprias prescrições, o padrão de utilização mudou e esses indivíduos passaram a tomar o medicamento regularmente e não mais de forma intermitente como quando tinham acesso por amigos ou no mercado paralelo.
Um dos aspectos fundamentais da farmaceuticalização da sociedade é o papel exercido pelos meios de comunicação na propagação deste fenômeno. Bedor30 analisa de forma crítica o lançamento publicitário de uma opção terapêutica sem hormônios para “curar” disfunções associadas aos corpos de mulheres na menopausa e pós-menopausa. A campanha publicitária, segundo a autora explora a farmaceuticalização do envelhecimento e principalmente a eterna busca de uma normalização e normatização do corpo feminino. Com o aumento na oferta de novas tecnologias que permite aos indivíduos idosos uma melhor qualidade de vida, o medicamento em questão representa o alcance da indústria farmacêutica num evento que estava naturalizado como parte do envelhecimento. A inovação apresentada pela estratégia de marketing busca neutralizar a ideia de que desejo e sexualidade são apenas pertencentes aos mais jovens. Outro exemplo é a pesquisa de Woloshin e Schwartz31 sobre a atual cobertura feita pela mídia da “síndrome da perna inquieta”. Segundo os autores, os meios de comunicação provocaram um grande alarde na opinião pública exagerando na divulgação dos sintomas e na necessidade do tratamento induzindo a casos de excesso de diagnóstico. No uso não racional do metilfenidato, as matérias jornalísticas (pagas ou não) e as interações via internet têm tido papel de destaque.
A automedicação é também uma crescente forma de consumo entre aqueles que usam este meio de comunicação. O conhecimento e a troca de experiência constituem-se como “fontes de sabedoria” e transforma interessados em “especialistas”32. O alto grau de especialização em pacientes com doenças terminais (em alguns casos agindo em parceria com o médico) já era algo percebido por pesquisadores mas o processo de expansão da farmaceuticalização acontece sobretudo com os fármacos utilizados para fins não terapêuticos visando a potencialização de performances, denominada por Conrad33 como “aprimoramento biomédico”. Neste caso, “aprimoramento” representaria um bem social no interior de uma cultura que valoriza o “maior, mais rápido e mais ainda!” e onde as diferenças competitivas entre indivíduos constituem-se como patologia. O metilfenidato tem sido protagonista neste processo para aprimoramento/melhoramento cognitivo.
Segundo Bostrom & Sandberg34, “cognição pode ser definida como os processos que um organismo usa para organizar a informação. Isso inclui a aquisição de informações (percepção), a seleção (atenção), a representação (entendimento) e a retenção de informações (memória), e usá-lo para orientar o comportamento (raciocínio e coordenação motora)” (trad. livre). Intervenções farmacológicas ou tecnológicas para melhorar a função cognitiva podem ser dirigidas a qualquer uma destas funções. Quando a intervenção objetiva corrigir uma patologia específica ou defeito de um subsistema cognitivo, pode ser caracterizado como terapêutico. A escassez nos estudos não permite determinar, ainda, o que são abusos nas diferentes formas de usos do metilfenidato, mas é evidente o consumo entre pessoas saudáveis.
Bostrom e Sandberg34 argumentam que a sociedade moderna vem exigindo muito mais estudo e concentração intelectual do que era esperado para a espécie humana em seu ambiente de adaptação evolutiva, desta forma não é surpreendente que muitas pessoas lutem para atender as demandas da escola ou do mercado de trabalho com a utilização de novas tecnologias. O uso dessas ferramentas para melhoria cognitiva pode ser visto, segundo os autores, como uma extensão da capacidade da espécie humana para se adaptar ao seu ambiente.
Ainda que os dados sobre o consumo off label de medicamentos para melhora cognitiva sejam difíceis de serem obtidos, pesquisas recentes indicam que este consumo é bastante difundido entre estudantes. Com base em alguns estudos sobre uso ilícito de estimulantes, 5-35% dos estudantes universitários americanos usam ou já usaram estimulantes prescritos para TDAH35. No Brasil, houve um aumento significativo na divulgação da doença e do número de pessoas que passam a ter acesso ao tratamento de TDA/H, além disso, alguns dados apontam para o crescimento do consumo do metilfenidato para uso não terapêutico36. Autoridades sanitárias alegam que existem indícios de abuso e desvio de utilização para outras finalidades que não as terapêuticas. Embora haja esforços em andamento, ainda é difícil quantificar os efeitos da prescrição de medicamentos para melhoramento cognitivo em pessoas saudáveis29.
Em meio aos debates sobre dilemas éticos do uso de medicamentos para melhora cognitiva em indivíduos saudáveis estão questões sobre adicção, formas de utilização e acesso. Não é possível precisar se pessoas que necessitam de estimulantes de venda livre como café, bebidas energéticas, nicotina para manter o nível cognitivo normal se tornariam viciadas caso fizessem uso desse medicamento. Cakic37 defende a necessidade de criar estratégias para minimizar riscos e potencializar benefícios, pois estudantes usarão medicamentos para aumentar sua capacidade cognitiva (nootrópicos) independente da segurança ou legalidade. E por último, como ele nunca será acessível para todos, novas formas de desigualdades podem surgir.
Os caminhos percorridos para o desenvolvimento e a regulação de novos medicamentos chamam a atenção para as formas em que os processos de farmaceuticalização, biomedicalização e medicalização muitas vezes se sobrepõem e convergem, contribuindo para a discussão sociológica do aprimoramento19,20. No entanto, Coveney et al.19 ressaltam que quando o objeto de análise é o medicamento, o conceito de farmaceuticalização permitirá compreender suas diferentes inserções na sociedade, que podem ocorrer na ausência de medicalização ou de envolvimento do profissional médico. Ressaltam que no campo do aprimoramento cognitivo, este conceito só pode ser aplicado às formas farmacêuticas e que formas que incluam interfaces com computador ou alimentos devem envolver conceitos como medicalização e biomedicalização.
Coveney et al.19 sugerem agendas de estudos sociológicos no campo da farmaceuticalização que incluem detalhamento do tipo e função de produtos farmacêuticos em desenvolvimento, tendências econômicas, políticas, sociais e culturais presentes na condução destes desenvolvimentos; modos de interação e compreensão de usuários com as tecnologias farmacêuticas estando ou não relacionados com a medicina; a legitimação em diferentes contextos sociais e culturais; e a avaliação da intervenção farmacêutica na cognição e suas consequências nos corpos, seres e finalmente na sociedade contemporânea. Desta forma novas contribuições surgirão para romper com os limites encontrados pelo atual conceito de racionalidade no uso de medicamentos.
O conceito de farmaceuticalização tem possibilitado explorar campos ainda pouco analisados sobre usos de medicamentos, com destaque especial para as discussões sobre automedicação e usos de tecnologias farmacêuticas para aprimoramento ou melhoramento cognitivo. Estudos no campo da antropologia e da sociologia da saúde têm apresentado novas características sobre usos de fármacos, novas formas de comunicação e também o papel do prescritor nesse novo cenário.
O uso abusivo e desnecessário tem se mostrado crescente e dá visibilidade às inadequações das medidas de regulamentação, da comercialização, publicidade, hábitos de prescrição e formação cultural da população, entre outras. Desta forma, pensar em uma alternativa para promover a racionalidade para o “aprimoramento” é uma tarefa complexa, que envolve vários atores sociais e diferentes sistemas, incluindo aspectos sociais, econômicos, educativos, epistemológicos e clínicos. Avaliar as propostas para dispensação pública do metilfenidato como forma de racionalizar o uso é, também, um desafio que se coloca, uma vez que não está claro quais elementos seriam necessários para o diagnóstico de todos aqueles que se beneficiariam do medicamento.
A capacidade governamental para produzir respostas seja por meio de regulações ou construção de protocolos é bem-vinda, mas parece não estar sendo suficiente para conter avanços da propaganda e do comércio que transformam o metilfenidato em um dos medicamentos mais consumidos no mundo.