versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.90 no.2 Porto Alegre mar./abr. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2013.07.004
As práticas neonatais modernas envolvem a gestão de pacientes cada vez mais doentes e complexos. A avaliação da função neurológica desses pacientes é limitada pela gravidade da doença de base e pelo uso de sedativos. É difícil determinar quais pacientes precisam de acompanhamento neurológico especializado após uma doença neonatal.
A introdução do monitoramento cerebral contínuo por eletroencefalograma de amplitude integrada (aEEG) permite avaliar a função cerebral em tempo real e por longos períodos. As ondas de aEEG parecem ser o resultado da soma do potencial de repouso da membrana, influenciada primeiramente pelo estado metabólico e, em segundo lugar, pelo fluxo sanguíneo recebido pelo cérebro, entre outros fatores.1 - 4
Apesar de comprovado o valor prognóstico da evolução no monitoramento por aEEG após eventos hipóxico-isquêmicos,5 - 10 sua utilidade para outras morbidades neonatais comuns não foi muito estudada. A principal limitação ao monitoramento por aEEG é que ele fornece informações limitadas sobre a atividade elétrica cerebral. As áreas monitoradas correspondem à irrigação máxima das três artérias cerebrais que supostamente são mais suscetíveis a insultos hipóxico-isquêmicos.11 Há controvérsias sobre sua utilidade na detecção de convulsões.12 Outra limitação é a distinção da real imagem de artefatos.13
O principal objetivo deste estudo foi testar a utilidade clínica de um aEEG precoce para prever resultados neurológicos de curto prazo entre recém-nascidos a termo internados na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN), com risco de lesão neurológica.
Foram selecionados, para monitoramento por aEEG, recém-nascidos a termo entre setembro de 2005 a agosto de 2006, caso considerados como evolução para risco neurológico. Dessa forma, foram incluídos bebês com encefalopatia neonatal, distúrbio neurológico ou com síndrome da angústia respiratória aguda (SARA). Médicos plantonistas fizeram os diagnósticos com base nos critérios clínicos e laboratoriais. Em neonatos com encefalopatia hipóxico-isquêmica (EHI), foi utilizada a classificação I-III de Sarnat por ordem de gravidade crescente.9 Os critérios de inclusão no protocolo de hipotermia foram: nascidos a termo, menos de seis horas de idade, sofrimento fetal agudo (e necessidade de reanimação prolongada e/ou sangue do cordão umbilical com pH < 7,0 e/ou índice de Apgar < 5 aos cinco minutos), evolução da encefalopatia e registro de aEEG alterado após a primeira hora de vida. Monitoramos pacientes com SARA atingindo o índice oxigenação (IO) > 18. Os critérios para o tratamento da oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) foram IO > 40, após administração máxima por via respiratória e doença pulmonar reversível. Foram incluídos bebês diagnosticados com lesão cerebral pré-natal ou malformação, além de pacientes simultâneos, pois apenas um monitor cerebral estava disponível. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética de nossa instituição, e foi obtido o consentimento informado dos pais.
Foram posicionados eletrodos no couro cabeludo raspado dos pacientes, e os mesmos foram monitorados com equipamentos que fornecem informações sobre ambos os hemisférios do cérebro em regiões equivalentes às C3-P3 e C4-P4 de um EEG padrão. Esse aparelho amplifica o sinal obtido após ser filtrado entre 2-15 Hz, integra informações da amplitude das ondas obtidas e, então, as digitaliza para mostrar padrões na tela a 6 cm/hora, e os dados brutos do EEG em tempo real. Um médico (não cego), com o auxílio de supervisores médicos treinados nessa técnica, interpretou os traçados. As informações foram armazenadas em um disco rígido do computador para análise adicional utilizando dois softwares(Analyze e Chart Analyzer). Os padrões obtidos foram qualificados segundo a classificação de Hellström-Westas, na qual o Tipo 1 é normal e 2, 3, 4 e 5 são alterados com ordem de gravidade crescente.14 O monitoramento foi feito o mais rápido possível, e continuou até que os pacientes estivessem estáveis. EEG foi solicitado em casos selecionados como uma necessidade clínica padrão. A presença e o manejo de convulsões foram registrados, bem como eventos adversos relacionados à técnica de aEEG. Registramos o uso de medicamentos que afetam o sistema nervoso central.15 - 18
Foram coletados dados demográficos e clínicos de forma prospectiva. O principal resultado foi evolução neurológica de curto prazo, classificada como normal ou anormal.
O resultado neurológico anormal foi definido como práticas clínicas padrão: a presença de um exame físico alterado (perturbações na consciência, hiper ou hipotonia, ausência de fixação visual e/ou ausência de engasgo, sucção e autonomia na alimentação), documentado pelo médico plantonista após a evolução aguda ter sido resolvida; um exame de imagem cerebral alterado (presença de lesão da substância cinzenta ou branca, comprometimento dos gânglios da base, lesões hemorrágicas e/ou causadas por derrame); e/ou EEG alterado antes da alta (padrão histórico alterado, tensão reduzida persistente e/ou convulsões). Foi solicitada neuroimagem, dependendo da necessidade clínica (ultrassom da cabeça, tomografia computadorizada por transmissão ou ressonância magnética), e a mesma foi informada por um neurorradiologista independente, não ciente dos achados clínicos e do aEEG.
Os dados descritivos foram apresentados como média ± DP ou mediana (intervalo), conforme adequado. Foi utilizado o teste t bicaudal com intervalo de confiança de 95% para as variáveis paramétricas, e o teste de Mann Whitney para não paramétricas. As variáveis categóricas foram comparadas por meio do teste exato de mid-p.
Sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivos e negativos e razões de verossimilhança (RV) positiva e negativa foram calculados com um intervalo de confiança de 95%, para avaliar o aEEG como uma ferramenta preditiva da evolução neurológica de curto prazo em todos os pacientes, independentemente do diagnóstico.
Durante o período do estudo, 2.196 bebês nasceram em nosso centro, e 118 foram transferidos de outros centros. Desses pacientes, 225 neonatos a termo foram internados na UTIN. Foram monitorados 21 bebês, dos quais 13 eram transferidos de outros centros. Os diagnósticos dos pacientes incluídos foram: encefalopatia neonatal em 12 recém-nascidos (5 foram incluídos no protocolo de hipotermia); hipertensão pulmonar secundária a SARA em oito (quatro com início de ECMO); e um com suspeita de convulsões neonatais. A idade gestacional dos pacientes foi 38,6 ± 1,4 semanas (média ± DP). O monitoramento foi iniciado às dez (4-20) horas de vida [mediana (PC25-PC75)], e a duração média do monitoramento foi de 54 (27-120) horas. Obtivemos 1.626 horas de monitoramento. Nenhum dos pacientes veio a óbito durante o período do estudo.
As características demográficas e clínicas dos pacientes estão descritas na tabela 1. Dos 21 pacientes estudados, dez apresentaram resultado neurológico de curto prazo alterado, conforme definido por critérios clínicos, do EEG e/ou da neuroimagem alterada. Os bebês com alterações neurológicas apresentaram índices de Apgar de cinco minutos inferiores ao grupo normal, e os mesmos estavam mais propensos a desenvolver convulsões durante a evolução. O grupo resultado neurológico anormal tem uma tendência a ser mais representado por pacientes com encefalopatia, porém a diferença não foi estatisticamente significativa. Os três pacientes que não apresentaram encefalopatias nesse grupo também apresentaram um curso neurológico complicado, porém, tal fato não pareceu estar ligado a um evento hipóxico-isquêmico perinatal. O aEEG mostrou resultados anormais em nove desses dez bebês (sensibilidade de 90%, IC de 95% 59,6-98,2). Dos 11 pacientes neurologicamente normais, nove também apresentaram aEEG completamente normal (especificidade de 82%, IC de 95% 52,3-94,9). O valor preditivo positivo foi de 82% (IC de 95% 52, 3-94, 9), e o valor preditivo negativo foi de 90% (IC de 95% 59, 6-98, 2). Analisado como uma razão de verossimilhança (VR), a VR positiva foi de 4,95 (IC de 95% 1,81-13,51), e a RV negativa de 0,12 (IC de 95% 0,02-0,91).
Tabela 1 Características demográficas e clínicas do grupo de estudo
Resultado Neurológico de Curto Prazo | |||||
---|---|---|---|---|---|
Anormal (n = 10) | Normal (n = 11) | Valor de p | |||
Peso ao nascer, kg | 3210 ± 457 | 3309 ± 494 | 0,639 | ||
Idade gestacional, semanas | 38 ± 1 | 38 ± 1 | 0,999 | ||
Sexo, n (% masculino) | 6 | (60%) | 6 | (55%) | 0,37 |
Apagar aos 5 minutosa | 5 | (1-9) | 8 | (6-8) | 0,045 |
Presença de qualquer grau de encefalopatia, n (%) | 7 | (70%) | 5 | (46%) | 0,068 |
Presença de padrão anormal no aEEG, n (%) | 9 | (90%) | 2 | (18%) | < 0,001 |
Presença de convulsões, n (%) | 7 (70%) | 1 (9%) | < 0,001 |
aEEG, eletroencefalograma de amplitude integrada
DP, desvio-padrão.
Os dados estão apresentados como média ± DP, exceto quando destacado com um (a).
amediana (intervalo).
Dentre os bebês, 48% inicialmente apresentaram um padrão normal no aEEG, e os resultados permaneceram normais até o final do registro. Nenhum deles apresentou convulsões. Os registros mostraram que os padrões do tipo anormal 2, 3, 4 e 5 do aEEG eram mais propensos a continuar alterados.
Apresentaram convulsões durante o monitoramento 38% das crianças. Todas as constatações foram feitas inicialmente por monitoramento, pois as mesmas foram feitas cerca de três horas após a correlação clínica (fig. 1). Todas as crianças que tiveram convulsões apresentaram um padrão normal no aEEG no início do monitoramento. Dentre os recém-nascidos que evoluíram para um estado convulsivo, 75% necessitaram Dio uso de dois ou mais medicamentos para tratamento das convulsões (fig. 2).
Figura 1 Paciente com hipertensão pulmonar secundária grave relacionada à cardiomiopatia dilatada com insuficiência cardíaca. No terceiro dia de vida, o aEEG mostrou convulsões no hemisfério direito. Devido a uma suspeita clínica, um ultrassom da cabeça foi realizado, mostrando hemorragia intraventricular no lado direito do cérebro. aEEG, Amplitude integrated electroencephalography; aEEG, Eletroencefalograma de amplitude integrada; EEG Waveform Left, Forma de Onda no EEG do Lado Esquerdo; EEG Waveform Right, Forma de Onda no EEG do Lado Direito; aEEG Left, aEEG do Lado Esquerdo; aEEG Right, aEEG do Lado Direito.
Figura 2 Paciente com padrão suprimido no aEEG evolui para um estado epilético. Ele foi tratado com 60 mg/kg de fenobarbital sem efeitos sobre convulsões. A seta mostra como as convulsões são controladas com fenitoína, e a linha básica se torna mais suprimida. EEG Waveform Left, Forma de Onda no EEG do Lado Esquerdo; EEG Waveform Right, Forma de Onda no EEG do Lado Direito; aEEG Left, aEEG do Lado Esquerdo; aEEG Right, aEEG do Lado Direito.
Dentre os 12 neonatos com encefalopatia (tabela 2), os registros normais de cinco deles foram decisivos para que não fossem classificados para o protocolo de hipotermia. Dois recém-nascidos com encefalopatia apresentaram padrões alterados no aEEG, porém o tratamento da hipotermia foi feito tardiamente (recomenda-se iniciar antes de seis horas de vida). Os pacientes de números 3, 8 e 12 apresentaram sintomas de EHI grau I no momento da avaliação, porém o registro do aEEG mostrou anormalidade; um dos neonatos desenvolveu convulsões posteriormente, assim os três pacientes, de fato, evoluíram para EHI grau II em vez de EHI grau I, como na primeira abordagem clínica.
Tabela 2 Características clínicas e do aEEG de pacientes com encefalopatia
Pacientes | IG (semanas) | Apgar aos | Sangue | Classificação | Início do | Tempos | Padrão | Hipotermia |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
5 minutos | do cordão | de Sarnat | registro | de registro | no aEEG | |||
umbilical | em neonatos | (horas de | (horas) | (Hellström- | ||||
com pH | com EHI | vida) | Westas) | |||||
1 | 39 | 2 | 6,89 | I | 4 | 25 | 1 | Não |
2 | 40 | 1 | 6,76 | III | 3 | 149 | 5+c | Sim |
3 | 40 | 2 | 6,95 | I | 8 | 87 | 2+c | Sim |
4 | 40 | 9 | 7,1 | I | 5 | 16 | 1 | Não |
5 | 40 | 2 | 6,96 | I | 6 | 16 | 1 | Não |
6 | 38 | 3 | 6,98 | II | 12 | 87 | 3+c | Não |
7 | 40 | 5 | 6,96 | I | 9 | 10 | 1 | Não |
8 | 37 | 2 | 6,8 | I | 5 | 27 | 3 | Sim |
9 | 39 | 6 | 6,84 | II | 1 | 53 | 2+c | Sim |
10 | 37 | 4 | 6,85 | II | 22 | 138 | 5+c | Sim |
11 | 40 | 7 | 6,91 | I | 2 | 23 | 1 | Não |
12 | 37 | 6 | N/D | I | 17 | 50 | 3 | Não |
c, convulsões
N/D, não disponível
IG, idade gestacional.
aEEG, eletroencefalograma de amplitude integrada.
Foi realizado EEGs padrão em 11 dos recém-nascidos (57%), e os resultados foram compatíveis com os do aEEG.
Não houve eventos adversos locais ou gerais relacionados ao uso dessa técnica. Artefatos foram relatados em 29% dos pacientes, associados a algumas dificuldades com o sinal de detecção do aEEG, principalmente em pacientes com edema no couro cabeludo e em três pacientes com hipotermia. Os sinais intermitentes resultam do deslocamento dos sensores e, no caso de um bebê, da interferência do ventilador de alta frequência.
Prior e Maynard inventaram o aEEG nos anos 60, para monitorar pacientes cardíacos adultos.19 Desde o final da década de 1970, o mesmo tem sido utilizado em recém-nascidos, porém inicialmente apenas na Europa.20 - 23 A necessidade de identificar recém-nascidos com encefalopatia com risco neurológico elevado levou ao desenvolvimento dessa técnica, paralelamente a estudos multicêntricos de hipotermia,24 fazendo com que fosse utilizado no restante do mundo.25 Atualmente, essa técnica está cada vez mais sofisticada, com um equipamento menos invasivo. Então, este estudo visou testar a tecnologia emergente, na ânsia de melhor entender a abordagem clínica.
Na época de nosso estudo, cerca de 10% de nossos nascidos a termo estavam muito doentes e qualificavam-se para o monitoramento por aEEG. Com os critérios de inclusão utilizados para monitorar os pacientes em nossa UTIN, o aEEG precoce serviu como um bom teste de diagnóstico, para prever resultados neurológicos de curto prazo mal diagnosticados. Ele mostrou ser menos preciso ao prever resultados normais, quando as ferramentas de diagnóstico comuns se mostraram úteis.
Um dos achados mais notáveis foi que mais da metade dos pacientes apresentaram alterações nos registros do aEEG. Também constatamos que os pacientes com padrão alterado no aEEG eram mais propensos a desenvolver convulsões, e isso aconteceu não apenas com pacientes com encefalopatia. Inicialmente, todas as convulsões eram subclínicas, como descrito na literatura.26 Contudo, também houve um período de latência notável entre o início da perturbação elétrica e o aparecimento clínico em nosso meio. Em neonatos com estado epilético, foram necessários dois ou mais medicamentos para conter as convulsões, e o aEEG ajudou a administrar a terapia anticonvulsivante.
Um tema de discussão é se o aEEG é necessário para decidir se um recém-nascido com encefalopatia é um candidato a terapia de resfriamento.27 O aEEG tem sido utilizado como critério de inclusão em alguns protocolos de resfriamento,25 , 28 porém não em outros. Descobrimos que monitoramento por aEEG precoce, principalmente em bebês com EHI grau I evidente,24 foi mais efetivo na identificação de quais pacientes com encefalopatia desenvolveriam doenças neurológicas graves, em vez de ser apenas uma avaliação clínica. Os achados se tornaram mais importantes se considerarmos que o tempo para decidir se uma criança é candidata a terapia de hipotermia é limitado, e não queremos errar quanto ao início desse tratamento tão importante.
Existe um estudo prospectivo recente sobre o uso precoce do aEEG (< 9 horas) em pacientes com encefalopatia moderada e grave, e que não apresenta vantagens sobre o fato de apenas testar para prever o resultado neurológico de longo prazo.29 Esse estudo difere quanto aos pacientes incluídos e quanto ao resultado principal; então não pode ser comparado ao nosso.
Foi notado um achado inesperado quanto à incapacidade de o exame clínico distinguir os pacientes que evoluem para uma doença neurológica grave em tempo real, e como o uso do aEEG influenciou em terapias mais rápidas. Isso foi mais notável em pacientes com SARA.
A principal limitação ao estudo é o pequeno número de pacientes, assim como a ausência de um protocolo rigoroso para o tempo total de monitoramento ou para solicitação de EEG ou de neuroimagem. Contudo, assemelha-se de forma mais confiável ao que acontece com bebês em UTINs.
Os benefícios de longo prazo do uso do aEEG em pacientes não foram avaliados. Esse é um relato de que a incidência posterior de epilepsia, entre pacientes com convulsões no período neonatal, é muito menor com o uso dessa técnica do que sem a mesma (9,4% em comparação a 56%).30 O aEEG parece ser uma ferramenta complementar interessante para nós.
Concluindo, o aEEG precoce em pacientes internados em UTIN possibilita fazer diagnósticos mais precisos para melhor selecionar pacientes para terapia de hipotermia, para detectar e tratar adequada e precocemente convulsões e para selecionar pacientes para acompanhamento neurológico.
O monitoramento cerebral na UTIN oferece várias possibilidades, e seria interessante ter mais conhecimento sobre sua aplicação em pacientes com problemas respiratórios, cardíacos e ECMO, bem como em neonatos extremamente prematuros.