versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.42 no.3 São Paulo mai./jun. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562015000000244
A pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM) afeta aproximadamente 25% dos pacientes submetidos a ventilação mecânica, com incidência de 2-16 episódios/1.000 hospitalizações.1,2 Embora a PAVM esteja relacionada com elevada mortalidade, a mortalidade atribuível à PAVM pode ser baixa conforme a mescla de casos e os ajustes para fatores de confusão.3-6 Além disso, a PAVM contribui para a falência de múltiplos órgãos em pacientes debilitados, a hospitalização prolongada e o aumento dos custos de saúde.7,8
O diagnóstico da PAVM é um desafio, e diretrizes sugerem que sejam empregados métodos clínicos, microbiológicos ou ambos.4,9-11 Demonstrou-se que o uso exclusivo de critérios clínicos apresenta baixa especificidade, pois várias outras patologias observadas na UTI podem imitar a PAVM.11-13 No entanto, a elevada sensibilidade desses critérios é útil para levantar a suspeita de pneumonia.9,12 Por outro lado, os clínicos não podem confiar apenas nos resultados microbiológicos, pois pode ser difícil lidar com resultados falso-positivos (para diferenciar colonização traqueal de infecção, por exemplo)9 e falso-negativos (resultados negativos de cultura em virtude de uso prévio de antibióticos, por exemplo) durante a interpretação do resultado da cultura de um espécime do trato respiratório.4,6,9 A combinação dos dois métodos (o clínico e o microbiológico) parece aumentar a exatidão do diagnóstico.4,9,14
Na prática médica, técnicas invasivas e não invasivas são usadas para obter amostras provenientes do trato respiratório inferior para avaliação microbiológica. Recentemente, um ensaio clínico15 e uma meta-análise mostraram que não existem diferenças entre técnicas invasivas e não invasivas no tocante aos principais desfechos.16 Embora a especificidade dos métodos invasivos seja maior que a da coleta do aspirado traqueal (AT), os métodos invasivos são mais caros e geralmente requerem orientação broncoscópica.14,17
Em todo o mundo, o AT é usado para diagnosticar PAVM e pode ser mais eficaz relativamente ao custo, o que o torna especialmente útil em locais onde haja poucos recursos. A fim de melhorar sua especificidade, é necessário um método capaz de diferenciar colonização de infecção. A avaliação de bactérias revestidas de anticorpos (BRA) é um método promissor que já foi aplicado em outras áreas.18 Portanto, nossa hipótese foi a de que as BRA seriam mais prevalentes no AT de pacientes com PAVM do que no de pacientes sem a doença. Além disso, procuramos investigar se essa diferença poderia ser usada para aumentar a especificidade do diagnóstico de PAVM.
Trata-se de um estudo diagnóstico caso-controle19 realizado na UTI geral da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, um hospital-escola terciário na cidade de São Paulo (SP). O estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da instituição. Familiares ou representantes legais dos pacientes participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.
Estavam aptos para participar do estudo pacientes adultos (> 18 anos de idade) internados na UTI, submetidos a intubação orotraqueal com ventilação mecânica e sem diagnóstico ou suspeita de pneumonia no momento da admissão à UTI.
Foram considerados casos de PAVM os pacientes que preencheram critérios clínicos e microbiológicos. Os critérios clínicos foram sinais ou sintomas que sugerissem a presença de pneumonia - infiltrado radiológico novo ou progressivo e pelo menos dois dos seguintes critérios após 48 h de ventilação mecânica: temperatura > 38°C ou < 36°C; leucocitose ou leucopenia; secreções purulentas - sem quaisquer sinais ou sintomas de outras infecções. O critério microbiológico foi uma cultura quantitativa positiva (≥ 105 UFC/ml) de uma amostra de AT colhida por meio da técnica-padrão.9 As amostras de AT foram colhidas antes da introdução de um novo antibiótico. Amostras contendo > 25 neutrófilos polimorfonucleares e < 10 células epiteliais escamosas/campo de pequeno aumento foram consideradas representativas das secreções do trato respiratório inferior.
Para compor o grupo controle, foram selecionados pacientes na proporção de 1:1, com amostragem simultânea.20 Foram selecionados pacientes que estivessem recebendo ventilação mecânica e que não apresentassem nenhuma evidência clínica, bioquímica ou microbiológica de infecção no momento do diagnóstico e inclusão dos casos de PAVM. Os pacientes aptos para ser incluídos no grupo controle foram acompanhados durante uma semana, e só foram selecionados aqueles nos quais não houve suspeita de infecção durante esse tempo. Após a seleção, uma amostra de AT (para cultura e avaliação das BRA) foi colhida de cada paciente do grupo controle. O resultado da cultura do AT no grupo controle foi então classificado em colonização (crescimento ≥ 105 UFC/ml) ou negativo (crescimento < 105 UFC/ml).
As amostras de AT foram colhidas em dois tubos estéreis. Um tubo foi entregue ao laboratório de microbiologia e o outro foi entregue ao laboratório de imunologia. Para a avaliação das BRA, foi usado um mililitro do aspirado de cada amostra. As amostras foram lavadas a 300 g durante 15 min, o sobrenadante foi descartado, e o sedimento foi lavado duas vezes com solução salina a 0,9%. Após a lavagem final, 100 µl do sedimento foram diluídos a 1:5 com solução salina a 0,9%, pois o excesso de muco poderia dificultar a visualização das bactérias e a leitura da cultura.
Para investigar as BRA, foram realizados quatro ensaios: com três anticorpos monoclonais, contra IgA (anti-IgA), IgM (anti-IgM) e IgG (anti-IgG), respectivamente; e com um anticorpo polivalente, contra todos os três. Todos os anticorpos foram conjugados com FITC (Sigma BioSciences, St. Louis, MO, EUA). Uma diluição de 1:20 dos anticorpos foi preparada com solução de Hanks. As amostras obtidas foram então colocadas em microtubos: 100 µl da secreção traqueal e 20 µl do anticorpo (anti-IgA, anti-IgM, anti-IgG ou o anticorpo polivalente). Os ensaios foram incubados a 37°C durante 15 min em completa escuridão e, em seguida, lavados duas vezes, por centrifugação, com solução de Hanks. Subsequentemente, 15 µl da solução foram pipetados com pipetas cujas pontas eram estéreis, e a solução foi espalhada em uma área correspondente a uma lamínula (24 × 24 mm). As lâminas foram previamente esterilizadas em um bico de Bunsen e cobertas com lamínulas estéreis. Para a coloração, foi usada a técnica de Gram convencional. Todos os ensaios foram realizados em duplicata, e os leitores não sabiam se a amostra provinha de um caso de PAVM ou de um controle.
Cada ensaio foi padronizado de modo a permitir que o leitor contasse 80 bactérias em três ou quatro campos. Para detectar as bactérias revestidas de anticorpos (três monoclonais e um polivalente) conjugados com FITC (quatro classes de BRA), foi usada a microscopia de imunofluorescência. Determinou-se então a proporção de BRA no total estipulado de 80 bactérias. A imunofluorescência inespecífica em microrganismos foi determinada a partir da incubação de bactérias com anticorpos conjugados com FITC sem relação com os demais.
Os dados contínuos são apresentados em forma de média ± desvio-padrão ou mediana e intervalo interquartil, conforme o caso. As variáveis categóricas são apresentadas em forma de frequência absoluta e relativa. Para comparar as características dos casos e controles, usamos o teste de Mann-Whitney ou testes t não pareados para variáveis contínuas e o teste exato de Fisher ou testes do qui-quadrado para variáveis dicotômicas. Para comparar as categorias de resultados da cultura (negativo, colonização e PAVM), usamos o teste de Kruskal-Wallis, com comparação post hoc por meio do teste de Mann-Whitney com correção de Bonferroni. A sensibilidade, especificidade, razão de verossimilhança positiva e razão de verossimilhança negativa foram calculadas por meio das fórmulas-padrão. Como este foi um estudo caso-controle, não calculamos valores preditivos positivos ou negativos. Para avaliar o desempenho global da quantificação de BRA no diagnóstico de PAVM, usamos um diagrama interativo de pontos, e o melhor ponto de corte para a proporção de BRA foi determinado por meio da maximização da sensibilidade e especificidade. Todas as análises estatísticas foram realizadas com o programa estatístico R, versão 3.1.1 (R Development Core Team, http://www.r-project.org/).
Foram incluídos 45 pacientes (22 casos e 23 controles). Os dois grupos eram comparáveis no tocante às características demográficas (à exceção do gênero), comorbidades e motivos da internação na UTI (Tabela 1). No momento do diagnóstico, 9 (41%) dos 22 pacientes com PAVM apresentaram sepse, 10 (46%) apresentaram sepse grave, e 3 (13%) apresentaram choque séptico.
Tabela 1 Características demográficas, tipo de internação, comorbidades e motivo da internação na UTI nos casos de pneumonia associada à ventilação mecânica e controles.
Variável | Grupo PAVM | Grupo controle | p |
---|---|---|---|
(n = 22) | (n = 23) | ||
Características demográficas | |||
Idade (anos), média ± dp | 53 ± 18 | 55 ± 21 | 0,71 |
Gênero masculino, n (%) | 10 (46) | 19 (83) | 0,02 |
Tipo de internação, n (%) | 0,18 | ||
Cirúrgica | 9 (41) | 15 (65) | |
Médica | 13 (59) | 8 (35) | |
Comorbidades, n (%) | |||
Hipertensão | 3 (14) | 7 (30) | 0,28 |
Diabetes mellitus | 2 (9) | 6 (26) | 0,24 |
Insuficiência renal crônica | 2 (9) | 1 (4) | 0,61 |
Insuficiência cardíaca crônica | 2 (9) | 1 (4) | 0,61 |
DPOC | 3 (14) | 1 (4) | 0,35 |
Câncer | 1 (5) | 2 (9) | > 0,99 |
Motivo da internação na UTI, n (%) | 0,84 | ||
Cuidados pós-operatórios | 4 (18) | 5 (22) | |
Politraumatismo | 4 (18) | 5 (22) | |
Neurocirúrgico | 2 (9) | 4 (17) | |
Insuficiência renala | 4 (18) | 2 (9) | |
Acidente vascular cerebral | 2 (9) | 3 (13) | |
Síndrome coronariana aguda | 3 (14) | 1 (4) | |
Outros | 3 (14) | 3 (13) |
PAVM: pneumonia associada à ventilação mecânica. aInclui lesão renal aguda e insuficiência renal crônica.
Os resultados da avaliação microbiológica das amostras de AT são apresentados na Tabela 2. Foram observadas bactérias coradas pelo método de Gram em todos os casos e controles; a ocorrência de bactérias gram-negativas e gram-positivas nos dois grupos foi comparável. Contudo, a proporção de pacientes que apresentaram resultado positivo simultaneamente para bactérias gram-positivas e gram-negativas foi significativamente maior no grupo PAVM (96% vs. 65%; p = 0,02).
Tabela 2 Resultados da coloração de Gram e cultura das amostras de aspirado traqueal nos casos de pneumonia associada à ventilação mecânica e controles.
Variável | Grupo PAVM | Grupo controle | p |
---|---|---|---|
(n = 22) | (n = 23) | ||
Coloração de Gram, n (%) | |||
Presença de bactérias | 22 (100) | 23 (100) | > 0,99 |
Bactérias gram-negativas | 22 (100) | 21 (91) | 0,49 |
Bactérias gram-positivas | 21 (96) | 17 (74) | 0,10 |
Bactérias gram-negativas e gram-positivas | 21 (96) | 15 (65) | 0,02 |
Culturas, n (%) | < 0,01 | ||
Negativas | - | 11 (48) | |
Positivas | |||
Bactérias gram-positivas | 10 (45) | 2 (9) | |
Bactérias gram-negativas | 5 (23) | 7 (30) | |
Polimicrobianas | 7 (32) | 3 (13) | |
Interpretação final | < 0,01 | ||
Resultado negativo | - | 11 (48) | |
Colonização | - | 12 (52) | |
Pneumonia gram-positiva | 10 (45) | - | |
Pneumonia gram-negativa | 5 (23) | - | |
Pneumonia polimicrobiana | 7 (32) | - |
PAVM: pneumonia associada à ventilação mecânica.
Os resultados da cultura do AT são apresentados na Tabela 2. Nos pacientes com PAVM, a doença foi causada por patógenos gram-positivos em 10 (46%), por patógenos gram-negativos em 5 (23%) e por mais de um patógeno em 7 (32%). Nos controles, os resultados da cultura foram negativos em 11 (48%) e positivos (interpretados como colonização) em 12 (52%), dos quais 2 (17%) apresentaram resultado positivo para bactérias gram-positivas, 7 (58%) apresentaram resultado positivo para bactérias gram-negativas, e 3 (25%) apresentaram resultado positivo para ambas.
A Tabela 3 mostra os resultados da coloração de Gram e cultura em cada paciente. O patógeno gram-positivo mais comum foi o Staphylococcus aureus , e o patógeno gram-negativo mais comum foi o Klebsiella pneumoniae .
Tabela 3 Resultados da coloração de Gram e cultura, por paciente, nos casos de pneumonia associada à ventilação mecânica e controles.
Caso | Grupo PAVM | Grupo controle | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Coloração de Gram positiva | Coloração de Gram negativa | Isolado(s) | Coloração de Gram positiva | Coloração de Gram negativa | Isolado(s) | |
1 | Sim | Sim | Staphylococcus aureus | Não | Sim | Klebsiella pneumoniae |
2 | Não | Sim | Enterobacter sp. | Não | Sim | - |
3 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | - |
4 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | Enterococcus faecalis |
5 | Sim | Sim | S. aureus & K . pneumoniae | Sim | Sim | K. pneumoniae |
6 | Sim | Sim | S. aureus & E . faecalis | Sim | Sim | K. pneumoniae & Proteus mirabilis |
7 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | - |
8 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | Pseudomonas aeruginosa |
9 | Sim | Sim | S. aureus | Não | Sim | P. aeruginosa |
10 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | Providencia rettgeri |
11 | Sim | Sim | Haemophilus influenzae | Sim | Sim | S. aureus & P . aeruginosa |
12 | Sim | Sim | H. influenzae | Sim | Sim | P. rettgeri |
13 | Sim | Sim | S. aureus & Enterobacter sp. | Não | Sim | - |
14 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | S. aureus & K . pneumoniae |
15 | Sim | Sim | S. aureus & K . pneumoniae | Sim | Sim | - |
16 | Sim | Sim | S. aureus | Sim | Sim | - |
17 | Sim | Sim | S. aureus & Acinetobacter baumannii | Não | Sim | - |
18 | Sim | Sim | P. rettgeri | Sim | Não | - |
19 | Sim | Sim | S. aureus | Não | Sim | - |
20 | Sim | Sim | K. pneumoniae | Sim | Sim | - |
21 | Sim | Sim | S. aureus & K . pneumoniae | Sim | Sim | K. oxytoca |
22 | Sim | Sim | S. aureus & P . aeruginosa | Sim | Sim | - |
23 | - | - | - | Sim | Não | S. aureus |
PAVM: pneumonia associada à ventilação mecânica.
A mediana da proporção de BRA foi significativamente maior nos pacientes com PAVM do que naqueles sem a doença, para todas as classes de BRA: bactérias revestidas de IgA - 60,6% (54,7-65,3%) vs. 22,5% (17,5-26,3%), p < 0,001; bactérias revestidas de IgM - 42,5% (35,6-46,3%) vs. 12,5% (7,5-16,3%), p < 0,001; bactérias revestidas de IgG - 50,6% (43,1-59,1%) vs. 17,5% (13,7-22,5%), p < 0,001; e bactérias revestidas de anticorpo polivalente - 75,6% (72,5-84,1%) vs. 33,8% (26,3-40,0%), p < 0,001. A Figura 1 mostra as proporções de cada classe de BRA, por categoria de resultado da cultura (resultado negativo, colonização e PAVM).
Figura 1 Proporção de bactérias revestidas de anticorpos (BRA) em cada classe de anticorpos nas categorias de resultados da cultura do aspirado traqueal: resultado negativo, colonização e pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM). Os valores de p referem-se à comparação das três categorias (teste de Kruskal-Wallis). Nas comparações post hoc , foram observadas diferenças significativas apenas entre PAVM e negativo e entre PAVM e colonização (p < 0,001 para ambos). Os pacientes do grupo controle foram divididos nas categorias "resultado negativo" e "colonização" (≥ 105 UFC/ml). A categoria "PAVM" compreende todos os casos de PAVM (pacientes que preencheram os critérios clínicos e microbiológicos para o diagnóstico de PAVM).
Os gráficos interativos de pontos são apresentados na Figura 2. Houve boa diferenciação entre casos e controles no tocante a todas as classes de BRA. Ao maximizar a sensibilidade e especificidade, alcançamos uma acurácia de mais de 95% para todas as classes de BRA, exceto a de bactérias revestidas de anticorpo polivalente. A avaliação diagnóstica completa é apresentada na Tabela 4.
Figura 2 Gráficos interativos de pontos do desempenho da avaliação de bactérias revestidas de anticorpos (BRA), por classe de anticorpos, no diagnóstico de pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM). As linhas pontilhadas horizontais denotam os melhores valores de corte para maximizar a sensibilidade e especificidade de cada classe de anticorpos.
Tabela 4 Desempenho diagnóstico de cada classe de bactérias revestidas de anticorpos na diferenciação entre casos de pneumonia associada à ventilação mecânica e controles.
Classe de BRA | Corte | Sensibilidade | Especificidade | Acurácia | RV+ | RV− |
---|---|---|---|---|---|---|
IgA | ≥ 38% | 95,5% | 95,7% | 95,6% | 21,96 | 0,05 |
IgM | ≥ 21% | 100,0% | 95,7% | 97,8% | 23,00 | - |
IgG | ≥ 34% | 95,5% | 95,7% | 95,6% | 21,96 | 0,05 |
Polivalente | ≥ 54% | 95,5% | 91,3% | 93,3% | 10,98 | 0,05 |
BRA: bactérias revestidas de anticorpos; RV+: razão de verossimilhança positiva; e RV−: razão de verossimilhança negativa.
Nosso estudo mostrou que a avaliação de BRA em amostras de AT parece ser uma ferramenta útil para facilitar o diagnóstico de PAVM. De fato, nesse contexto controlado, proporções maiores de BRA foram mais prevalentes em amostras provenientes de pacientes com PAVM confirmada clínica e microbiologicamente do que em amostras provenientes de pacientes com colonização apenas (cultura positiva sem nenhum sinal clínico que sugerisse a presença de PAVM) ou com resultados negativos de cultura. Além disso, a avaliação de BRA em amostras de AT teve bom desempenho como ferramenta auxiliar para diferenciar pacientes com PAVM daqueles sem a doença.
Poucos estudos avaliaram o papel das BRA no diagnóstico de pneumonia em pacientes sob ventilação mecânica. Em 1991, Wunderink et al.21 analisaram BRA em 71 amostras de 36 pacientes sob ventilação mecânica. Os autores relataram que um valor de corte ≥ 5 BRA por campo de imersão apresentou sensibilidade de 52% (11 de 21 resultados) e especificidade de 100% (11 de 11 resultados). Outros pequenos estudos relataram que a avaliação de BRA tem um bom desempenho no diagnóstico de infecções respiratórias.22-24 É difícil comparar os achados de estudos anteriores com os de nosso estudo por causa das diferenças metodológicas, tais como a inclusão de pacientes que não estavam sob ventilação mecânica e a avaliação de pacientes com pneumonia adquirida na comunidade e de pacientes com pneumonia hospitalar.
O diagnóstico microbiológico de PAVM é baseado na determinação do número de unidades formadoras de colônias em amostras provenientes do trato respiratório inferior, embora a avaliação semiquantitativa também tenha sido usada, com resultados comparáveis.4,9,25 O uso da avaliação de BRA para o diagnóstico de PAVM tem vantagens potenciais importantes, tais como a melhora da especificidade de um resultado positivo da cultura do AT, diminuindo assim a proporção de resultados falso-positivos. Além disso, a avaliação de BRA parece ser útil para diferenciar colonização de infecção ativa. Se assumirmos que todos os casos de PAVM (aqueles que preencheram os critérios clínicos e microbiológicos para o diagnóstico de PAVM) no presente estudo foram casos de infecção "verdadeira", a avaliação de BRA no AT aparentemente facilitou o diagnóstico de colonização (baseado em resultado positivo da cultura do AT na ausência de PAVM), pois as proporções de BRA foram muito menores do que na infecção "verdadeira". Com base no racional da avaliação de BRA, o diagnóstico deve ser sempre confiável, não obstante o uso prévio de antibióticos. 26 Especulamos que a avaliação de BRA poderia ajudar os clínicos a evitar o uso de antibióticos de amplo espectro por meio da redução do número de resultados falso-positivos de culturas de AT. Vale notar que pouquíssimos de nossos pacientes teriam adiado o tratamento com base nos resultados da avaliação das BRA, em virtude da elevada sensibilidade do método.
A avaliação de BRA já havia sido empregada em outras áreas, principalmente em infecções do trato urinário.18 Nossa hipótese é a de que o método poderia ser otimizado e aplicado rotineiramente de modo a melhorar a avaliação de amostras provenientes do trato respiratório inferior. Embora estejam disponíveis novos métodos de diagnóstico molecular,27 especulamos que a avaliação de BRA poderia ser eficaz relativamente ao custo, o que a torna particularmente útil em locais onde haja poucos recursos. De fato, após a padronização, o método poderia ser incorporado à rotina laboratorial e, em decorrência da redução dos resultados falso-positivos, diminuir os custos associados de antibióticos e seus efeitos colaterais (uma maior incidência de infecções por Clostridium spp., por exemplo).7 Abordagens semelhantes foram empregadas para o diagnóstico da tuberculose, tais como o desempenho diagnóstico da avaliação do esfregaço de escarro reforçada por microscopia de fluorescência como alternativa em locais onde haja poucos recursos.28
Outros métodos foram usados para melhorar a acurácia diagnóstica de critérios clínicos e microbiológicos. Tais métodos incluem o uso dos biomarcadores disponíveis atualmente, tais como a proteína C reativa (PCR) e a procalcitonina.29,30 Por exemplo, um estudo revelou uma associação positiva entre os valores séricos de PCR e a carga bacteriana em amostras de AT em 68 pacientes com PAVM,29 sugerindo que valores de PCR poderiam aumentar a acurácia diagnóstica da avaliação do AT na PAVM. Outros estudos mostraram que a determinação do número de bactérias intracelulares aumenta a especificidade da avaliação de amostras respiratórias.15,31 Uma das principais limitações de nosso estudo é o fato de que não comparamos a avaliação das BRA com outros métodos, o que nos impediu de avaliar se o desempenho diagnóstico da avaliação de BRA difere do de outros métodos relatados.
O diagnóstico de PAVM é um desafio, principalmente por causa da falta de um método diagnóstico padrão ouro. Além disso, mesmo para fins de pesquisa, a biópsia pulmonar e a cultura de tecidos não são viáveis, e é provável que não sejam benéficas.11,14,32 Discute-se também se métodos invasivos ou não invasivos são preferíveis para a obtenção de amostras provenientes do trato respiratório inferior. No presente estudo, decidimos avaliar a avaliação microbiológica por meio da avaliação de amostras de AT. Essa escolha foi feita em virtude da indisponibilidade da broncoscopia em nossa instituição e das dificuldades em obter broncoscópios e contratar pessoal treinado para operá-los. A escolha também foi pragmática, pois acreditamos que nossa instituição seja representativa da maioria dos serviços públicos de saúde no Brasil e outros locais onde os recursos sejam poucos ou razoáveis. Contudo, é possível que essa abordagem pragmática tenha reduzido nossa capacidade de estudar BRA em amostras respiratórias obtidas por métodos invasivos, que são geralmente mais específicos para o diagnóstico de infecções do trato respiratório inferior.2
Este estudo tem outras limitações. Embora tenha sido um estudo diagnóstico caso-controle realizado em um único centro, tanto os casos de PAVM como os controles foram rigorosamente selecionados, o que aumenta as chances de identificação de casos "verdadeiros" de PAVM e controles sem qualquer suspeita de infecção. Contudo, por causa dessas restrições, o desempenho das BRA no diagnóstico de PAVM provavelmente seria diferente em outros contextos e desenhos de estudo. Não obstante, estudos diagnósticos do tipo caso-controle são úteis na fase preliminar de testes diagnósticos.19 O desenho do estudo impediu-nos também de avaliar o impacto da avaliação de BRA em pacientes com suspeita clínica de PAVM, mas com resultado negativo de cultura de AT. Também não tivemos acesso aos números exatos de unidades formadoras de colônias nas culturas de AT, pois nós as quantificamos de forma binária (< 105 ou ≥ 105 UFC/ml). Portanto, não foi possível correlacionar a carga bacteriana com a proporção de BRA. Finalmente, não avaliamos outras variáveis que poderiam modular o desempenho diagnóstico, tais como o uso de antibióticos e corticosteroides.33
Em suma, o número de BRA observado nos pacientes com PAVM foi significativamente maior que o observado naqueles sem a doença. Acreditamos que a avaliação de BRA possa ser usada para melhorar a especificidade do diagnóstico de PAVM, o que é necessário em virtude do desafio de chegar a um diagnóstico confiável nesse contexto. Justificam-se mais estudos nesse campo, pois a avaliação de BRA é potencialmente eficaz relativamente ao custo e, portanto, útil em locais com poucos recursos, com as vantagens de diminuir o número de resultados falso-positivos e reduzir a taxa de supertratamento.