versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.5 São Paulo nov. 2018 Epub 21-Set-2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180164
Obstruções venosas são frequentes em portadores de dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis (DCEI) endocárdicos, mas raramente causam problemas clínicos imediatos. A principal consequência destas lesões é a dificuldade para obtenção de via de acesso para o implante de novos cabos-eletrodos.
Determinar a prevalência de lesões venosas em candidatos a reoperações envolvendo o manuseio de cabos-eletrodos, e definir o papel da venografia pré-operatória no planejamento desses procedimentos.
De abril de 2013 a julho de 2016, 100 pacientes com indicação de troca de cabos-eletrodos, ou mudança no modo de estimulação, realizaram venografia com subtração digital no período pré-operatório. As lesões venosas foram classificadas em: não significativas (< 50%), moderadas (51-70%), graves (71-99%) ou oclusivas (100%), e a circulação colateral, em ausente, discreta, moderada ou acentuada. A estratégia cirúrgica foi definida a partir do resultado deste exame. Empregou-se análise univariada para a pesquisa de fatores de risco relacionados à ocorrência dessas lesões, com nível de significância de 5%.
Obstruções venosas moderadas foram observadas em 23%, graves em 13% e oclusões em 11% dos pacientes estudados, não sendo identificadas diferenças significativas em sua distribuição em relação ao lado do implante, ou do segmento venoso. A utilidade do exame para definição da tática operatória foi comprovada, sendo que em 99% dos casos, a estratégia cirúrgica estabelecida pode ser executada.
A prevalência de obstruções venosas é elevada em portadores de DCEI que serão submetidos a reoperações. A venografia é altamente indicada como exame pré-operatório para o adequado planejamento cirúrgico de procedimentos envolvendo cabos-eletrodos transvenosos previamente implantados.
Palavras-chave: Marca-passo artificial; desfibriladores implantáveis; flebografia; estenose venosa; extração de cabos-eletrodos; fatores de risco
Venous obstructions are common in patients with transvenous cardiac implantable electronic devices, but they rarely cause immediate clinical problems. The main consequence of these lesions is the difficulty in obtaining venous access for additional leads implantation.
We aimed to assess the prevalence and predictor factors of venous lesions in patients referred to lead reoperations, and to define the role of preoperative venography in the planning of these procedures.
From April 2013 to July 2016, contrast venography was performed in 100 patients referred to device upgrade, revision and lead extraction. Venous lesions were classified as non-significant (< 50%), moderate stenosis (51-70%), severe stenosis (71-99%) or occlusion (100%). Collateral circulation was classified as absent, discrete, moderate or accentuated. The surgical strategy was defined according to the result of the preoperative venography. Univariate analysis was used to investigate predictor factors related to the occurrence of these lesions, with 5% of significance level.
Moderate venous stenosis was observed in 23%, severe in 13% and occlusions in 11%. There were no significant differences in relation to the device side or the venous segment. The usefulness of the preoperative venography to define the operative tactic was proven, and in 99% of the cases, the established surgical strategy could be performed according to plan.
The prevalence of venous obstruction is high in CIED recipients referred to reoperations. Venography is highly indicated as a preoperative examination for allowing the adequate surgical planning of procedures involving previous transvenous leads.
Keywords: Pacemaker; implantable defibrillators; phlebography; venous stenosis; extraction of leads; risk factors
Obstruções venosas são frequentes em portadores de dispositivos cardíacos eletrônicos implantáveis (DCEI) transvenosos, com prevalência estimada de 14 a 64%.1-11 Essas lesões são, na maioria das vezes, assintomáticas, embora circulação colateral visível na região torácica seja comumente encontrada. A despeito do achado de trombose venosa profunda, tromboembolia pulmonar, ou síndrome da veia cava superior em 1,6 a 12% dos casos, a dificuldade para obter via de acesso para o implante de novos cabos-eletrodos, ou de outros tipos de dispositivos transvenosos, tem sido a principal consequência dessas lesões.12-16
Estudos recentes mostram aumento do número das reoperações em que há necessidade de manuseio do território intravascular com cabos-eletrodos previamente implantados.17-23 O crescimento desse tipo de procedimento se deve a três fatores principais: (1) o aumento da longevidade dos pacientes, que se relaciona diretamente a um maior tempo de permanência dos cabos-eletrodos e, consequentemente, a uma maior chance de disfunção desses componentes do sistema de estimulação; (2) o aumento das comorbidades, que levam ao incremento da ocorrência de complicações infecciosas, cujo tratamento passa, obrigatoriamente, pela remoção de todo o sistema de estimulação cardíaca artificial17-23 e (3) a prevalência cada vez maior da insuficiência cardíaca grave e, por consequência, da necessidade de mudança do modo de estimulação cardíaca convencional para modos mais avançados, como o cardioversor-desfibrilador implantável (CDI) ou a terapia de ressincronização cardíaca (TRC), que exigem o implante de cabos-eletrodos adicionais.24-27
A venografia por subtração digital proporciona excelente caracterização da anatomia venosa, e tem sido considerada o padrão ouro para o estudo das lesões venosas em portadores de DCEI.11,28-30 Embora outras modalidades de exames de imagem sejam usadas com a mesma finalidade, como a ultrassonografia com Doppler ou imagens da recirculação do contraste em tomografia computadorizada do tórax, esses métodos não possuem a mesma precisão da venografia digital para quantificar e definir a localização das obstruções e da circulação colateral que se desenvolve.31-34
O presente estudo é parte de um registro prospectivo, com dados derivados da prática assistencial, e tem por finalidade: (1) identificar a prevalência, o grau e a localização de lesões venosas em portadores de DCEI com indicação de reoperações; (2) identificar fatores predisponentes para essas alterações venográficas e, (3) definir o papel da venografia por subtração digital no planejamento das reintervenções intravasculares em indivíduos com cabos-eletrodos previamente implantados.
Trata-se de uma análise transversal derivada de uma coorte em que se estudam complicações tromboembólicas em pacientes submetidos a procedimentos de reoperação em cabos-eletrodos. Esse estudo foi realizado em um hospital cardiológico de alta complexidade, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
No período de abril de 2013 a julho de 2016, foram incluídos, consecutivamente, pacientes que preencheram os seguintes critérios: (1) ter DCEI implantado pelo território da veia cava superior há mais de seis meses; (2) ter de 18 a 90 anos de idade; (3) ter indicação de reoperação para implante, substituição ou remoção de cabos-eletrodos. Não foram incluídos: (1) indivíduos com creatinina > 1,5 mg/dL pelo risco de lesão renal pelo uso de contraste iodado; (2) portadores de alergia conhecida a meios de contraste iodado e (3) os que não aceitaram participar do estudo.
Em face da elevada taxa de ocorrência de lesões venosas nesses pacientes, foi definida uma amostra de conveniência de 100 pacientes para se detectar os desfechos estudados.
Os desfechos do estudo incluíram: (1) achado venográfico de obstruções venosas significativas e de circulação colateral, e (2) utilidade dos achados venográficos pré-operatórios no planejamento e na realização do procedimento cirúrgico.
Os pacientes que apresentavam indicação de reoperação para implante de cabos-eletrodos adicionais, substituição ou remoção de cabos-eletrodos transvenosos previamente implantados, e que preenchiam os critérios de elegibilidade do estudo, foram submetidos a avaliação pré-operatória, constituída por levantamento do histórico, avaliação clínica e avaliação por exames de imagem.
A radiografia de tórax foi realizada com a finalidade de auxiliar a determinação da posição dos cabos-eletrodos em uso ou abandonados.
A avaliação do sistema venoso pela venografia por subtração digital foi feita pela aquisição das imagens por aparelho Allura DSA unit ou Allura Xper FD20 (Philips, the Netherlands), visando a avaliação bilateral das veias axilar, cefálica, subclávia, inominada (ou tronco braquiocefálico), e cava superior. A infusão contínua de contraste iodado não iônico de baixa osmolalidade (Visipaque - Iodixanol, 320 [652 mg/mL de Iodixanol], GE, Healthcare, Europe) foi feita por bomba injetora MEDRAD com volume (100 mL a 120 mL) e velocidade de infusão (10 mL/s a uma pressão de 600 psi) controlados. Todos os exames foram avaliados simultaneamente por dois especialistas: um médico especialista em Radiologia Vascular Intervencionista e um especialista em Estimulação Cardíaca Artificial.
Inicialmente, as imagens obtidas foram classificadas segundo a presença ou ausência de lesões venosas e de circulação colateral. As lesões venosas foram classificadas de acordo com o grau de estenose em: sem alteração significativa (< 50%), estenose moderada (51-70%), estenose grave (71-99%) e oclusão (100%). A circulação colateral foi classificada de acordo com o número e o calibre dos novos vasos formados em: ausente, discreta, moderada e acentuada.
Os procedimentos cirúrgicos foram realizados segundo as rotinas habituais da nossa Instituição, sempre sob a supervisão de anestesiologista. As operações foram agrupadas em três tipos principais: (1) Implante de novos cabos-eletrodos desacompanhado de remoção (por disfunção de cabo-eletrodo previamente implantado, ou para mudança do modo de estimulação); (2) Substituição de cabos-eletrodos com remoção de cabo previamente implantado; ou (3) Extração isolada de cabos-eletrodos.
O planejamento das operações foi feito em função do aspecto radiológico do território venoso obtido pela venografia: (1) Nos casos em que o padrão venoso foi considerado sem lesões significativas, ou com lesões moderadas, nenhum cuidado especial era tomado quanto ao implante do novo cabo-eletrodo e, da mesma forma, a decisão quanto à remoção de cabo-eletrodo desativado era feita de acordo com a opção da equipe cirúrgica; (2) Nos casos com estenoses consideradas graves ou oclusões, o planejamento cirúrgico considerou: a) avaliação criteriosa da venografia para verificação da possibilidade de uso da veia jugular interna ipsilateral; b) preparo do paciente para extração transvenosa de cabo-eletrodo para obtenção de via de acesso para o novo cabo no caso de impossibilidade do uso da veia jugular interna ipsilateral; c) reserva de materiais para tentativa de ultrapassar a lesão e realizar dilatação venosa.
A decisão de se remover ou de se abandonar “in situ” os cabos eletrodos previamente abandonados, ou aqueles que seriam desativados no procedimento cirúrgico atual, foi tomada levando-se em consideração os seguintes critérios: (1) idade e expectativa de vida do paciente; (2) número de cabos-eletrodos restantes na veia cava superior ao final do procedimento cirúrgico realizado no presente estudo; (3) risco de agravamento das lesões observadas na venografia.
Embora os critérios para definição da via de acesso e para remoção ou abandono dos cabos-eletrodos desativados tenham sido discutidos previamente com a equipe cirúrgica envolvida no estudo, a decisão final sobre como conduzir esses dois pontos cabia a esta própria equipe durante a realização do procedimento, em função dos achados intraoperatórios e dos recursos técnicos disponíveis.
Para aferir a concordância entre o procedimento planejado em função do aspecto da venografia e o realizado, foram consideradas três condições: (1) possibilidade de acesso ao coração pela veia subclávia sem necessidade de estratégias especiais; (2) possibilidade de acesso ao coração pela veia jugular interna ipsilateral quando havia lesão grave ou oclusão em veia subclávia; (3) necessidade de extração de cabo-eletrodo, ou de outra técnica não convencional, para obtenção de via de acesso, nos casos de lesão crítica acometendo as veias subclávia, jugular interna e tronco braquiocefálico venoso.
Os riscos associados ao presente estudo estiveram relacionados ao uso de contraste iodado. Cuidados especiais foram tomados com o objetivo de diminuir o risco de lesões renais após a venografia por subtração digital, embora reações adversas relacionadas ao uso de contraste iodado não-iônico sejam raras. Os pacientes diabéticos, que estavam recebendo o hipoglicemiante oral cloridrato de metformina, foram orientados a suspender o uso desse medicamento por 48 horas antes da realização do exame e reiniciar seu uso 48 horas após o exame. Os casos de reações alérgicas ao contraste iodado, durante ou após os exames, foram tratados conforme o protocolo institucional de reações alérgicas ao uso de contraste.
Os dados demográficos, clínicos e cirúrgicos obtidos foram armazenados em banco de dados desenvolvido no sistema REDCap (Research Electronic Data Capture)35 que se encontra hospedado no servidor da nossa Instituição.
Foram analisadas como variáveis independentes para o risco de ocorrência dos desfechos estudados: os dados demográficos, os dados clínicos basais pré-operatórios, o tipo de DCEI, e o tipo de procedimento realizado.
Os dados cadastrados no banco de dados (REDCap) foram exportados em formato de planilhas Excel (Microsoft Excel) e analisados pelo programa SAS (Statistical Analysis System).
Inicialmente, todas as variáveis foram analisadas descritivamente. Para as quantitativas, essa análise foi feita mediante observação dos valores mínimos e máximos, do cálculo de médias, do desvio padrão e mediana. Para as variáveis qualitativas, foram calculadas as frequências absolutas e relativas. Para a comparação de médias, foi utilizado o teste t de Student, e para testar a homogeneidade entre as proporções das variáveis, empregou-se o teste qui-quadrado. O nível de significância adotado nos testes estatísticos foi de 5%.
Os desfechos do estudo foram descritos segundo frequências absolutas e relativas. O cálculo da Odds Ratio (OR) e seus respectivos intervalos de confiança de 95% foram utilizados como medida de efeito entre as variáveis de exposição e o desenvolvimento dos desfechos.
Dos 289 pacientes que receberam a indicação de procedimentos de reoperação envolvendo o manuseio de cabos-eletrodos, 100 foram incluídos no presente estudo. (Figura 1)
Nesta população houve equilíbrio entre os gêneros, predominância da raça branca (82%), e idade média de 58,5 ± 15,1 anos, com mediana de 60. A maioria dos indivíduos estudados era oligossintomática para insuficiência cardíaca (77%), com fração de ejeção média do ventrículo esquerdo de 53,4 ± 15,5, sendo que em 39% deles não foi identificada doença cardíaca estrutural. Apenas 20% dos casos não apresentavam comorbidades. Um terço desta população estava em uso de antiplaquetário, enquanto anticoagulantes eram utilizados por 12% dos pacientes. (Tabela 1)
Tabela 1 Características demográficas e clínicas dos participantes da pesquisa
Características Demográficas e Clínicas Basais | |
---|---|
Gênero masculino, n (%) | 48% |
Idade (anos), média ± DP | 58,5 ± 15,1 |
Raça branca, n (%) | 82% |
Índice de massa corpórea, média ± DP | 25,7 ± 3,2 |
Classe Funcional (NYHA), n (%) | |
I | 40% |
II | 37% |
III | 23% |
Doença cardíaca estrutural, n (%) | |
Nenhuma | 39% |
Doença de Chagas | 23% |
Cardiopatia isquêmica | 8% |
Cardiopatia não-isquêmica | 24% |
Outra | 6% |
Comorbidades associadas | |
Nenhuma | 20% |
Hipertensão arterial sistêmica | 62% |
Diabetes | 17% |
Dislipidemia | 33% |
Doença arterial coronariana | 9% |
Valvopatia | 7% |
Tabagismo (atual) | 1% |
Tabagismo (prévio) | 9% |
Medicamentos em uso, n (%) | |
Antiplaquetários | 33% |
Anticoagulantes orais | 12% |
Estatinas | 39% |
Fração de ejeção do ventrículo esquerdo (%) média ± DP | 53,4 ± 15,5 |
DP: desvio padrão; NYHA: New York Heart Association.
Houve equilíbrio entre o número de casos de dispositivos implantados no lado direito (48%) ou no lado esquerdo (52%). Foi possível observar, entretanto, diferenças marcantes com relação ao tempo de implante que, em média, foi de 14,3 ± 6,1 anos para o lado direito, e 8,0 ± 7,9 anos para o lado esquerdo, e quanto ao tipo de dispositivo, com predomínio de marca-passos convencionais no lado direito, e maior distribuição entre os quatro tipos de dispositivos no lado esquerdo. (Tabela 2)
Tabela 2 Características do dispositivo cardíaco em uso no momento da inclusão no estudo segundo o lado do implante
Características do DCEI prévio | Lado direito (n = 48) | Lado esquerdo (n = 52) | p |
---|---|---|---|
Tipo de DCEI em uso no momento da inclusão, n (%) | |||
Marca-passo convencional | 45 | 31 | |
CDI convencional | 1 | 18 | < 0,001 (1) |
TRC | 1 | 1 | |
TRC-D | 1 | 2 | |
Número total de cabos-eletrodos transvenosos, n (%) | |||
Apenas um | 10 | 12 | |
Dois | 33 | 37 | 0,306 (1) |
Três | 4 | 3 | |
Quatro | 1 | - | |
Tempo de uso dos cabos-eletrodos transvenosos, anos | |||
Média ± DP | 14,3 ± 6,1 | 8,0 ± 7,9 | 0,075 (2) |
Variação | 5 - 37 | 1 - 32 |
DCEI: dispositivo cardíaco eletrônico implantável; CDI: cardioversor-desfibrilador implantável; TRC: terapia de ressincronização cardíaca; TRC-D: terapia de ressincronização cardíaca associada ao cardioversor-desfibrilador implantável.
(1)Teste qui-quadrado;
(2)Teste t de Student.
A análise das venografias demonstrou que 47 pacientes apresentavam lesões venosas significativas, e que em 36 havia circulação colateral venosa. Obstruções venosas moderadas foram observadas em 23 exames, graves em 13 e oclusões em 11. Dentre os 53 pacientes sem obstruções significativas (< 50% da luz do vaso), somente 4 apresentavam circulação colateral. Por outro lado, dos 24 indivíduos com lesão venosa considerada grave ou com oclusão venosa, apenas 2 não apresentavam circulação colateral na venografia. Observou-se, portanto, que o achado de circulação colateral na venografia foi um forte marcador da presença de lesão venosa, aumentando em 4,9 vezes a taxa de prevalência (IC 95% 3,05 - 8,10; p < 0,0001) dessas lesões. (Figuras 2 e 3)
Figura 2 Distribuição dos quatro tipos de lesão venosa e suas associações com a presença de circulação colateral.
Figura 3 Classificação das lesões venosas e da circulação colateral. Exemplos de cada um dos quatro tipos de lesão, segundo a classificação adotada no estudo. Figura 3A: lesão não significativa, caracterizada por obstrução menor do que 50% da luz do vaso e ausência de circulação colateral; Figura 3B: lesão moderada, que acomete de 51 a 70% do vaso, com circulação colateral discreta; Figura 3C: lesão grave, comprometendo de 71 a 99% do vaso com circulação colateral moderada; Figura 3D: oclusão venosa com circulação colateral acentuada.
A despeito das diferenças do tempo de implante e dos tipos de dispositivos implantados, houve equilíbrio entre o achado de lesões venosas (p = 0,865) e de circulação colateral (p = 0,715) nos pacientes com dispositivos implantados nos lados direito e esquerdo. Independentemente do lado em que o DCEI estivesse implantado, as veias subclávias e a transição das veias subclávia para o tronco braquiocefálico foram as regiões mais acometidas por lesões significativas (Tabela 3). Não foram identificadas lesões significativas na veia cava superior.
Tabela 3 Distribuição dos achados venográficos segundo o lado do DCEI e a localização anatômica da lesão
Achados venográficos | Lado direito (n = 48) | Lado esquerdo (n = 52) |
---|---|---|
Exame normal / lesões discretas (< 50% da luz do vaso) | ||
Veia subclávia | 37 | 43 |
Transição da veia subclávia com a veia inominada | 46 | 44 |
Veia inominada | 42 | 46 |
Junção da veia inominada com a veia cava superior | 33 | 46 |
Estenose moderada | ||
Veia subclávia | 4 | 5 |
Transição da veia subclávia com a veia inominada | - | 4 |
Veia inominada | 1 | 2 |
Junção da veia inominada com a veia cava superior | 8 | 2 |
Estenose grave | ||
Veia subclávia | 3 | 2 |
Transição da veia subclávia com a veia inominada | 2 | 3 |
Veia inominada | 1 | 1 |
Junção da veia inominada com a veia cava superior | 3 | 3 |
Oclusão venosa | ||
Veia subclávia | 4 | 2 |
Transição da veia subclávia com a veia inominada | - | 1 |
Veia inominada | 4 | 3 |
Junção da veia inominada com a veia cava superior | 4 | 1 |
Circulação colateral | ||
Ausente | 19 | 29 |
Discreta | 13 | 7 |
Moderada | 5 | 8 |
Acentuada | 11 | 8 |
O principal motivo para a realização do procedimento cirúrgico foi a disfunção de cabos-eletrodos para 71 pacientes. Mudança do modo de estimulação foi a causa da reoperação em 25 casos. Em apenas 4 pacientes a operação foi motivada exclusivamente pela necessidade de remover cabos-eletrodos. (Tabela 4)
Tabela 4 Características dos procedimentos cirúrgicos realizados no estudo
Características dos Procedimentos Cirúrgicos | n = 100 |
---|---|
Procedimento realizado, (%) | |
Implante de cabo-eletrodo adicional sem remoção de cabo-eletrodo previamente implantado | 48 |
Implante de cabo-eletrodo adicional com remoção de cabo-eletrodo previamente implantado | 48 |
Somente remoção de cabo-eletrodo | 4 |
Número total de cabos-eletrodos transvenosos ao final do procedimento, (%) | |
Nenhum | 4 |
Um | 6 |
Dois | 41 |
Três | 42 |
Quatro | 7 |
Lado do dispositivo cardíaco implantável ao final do procedimento, n (%) | |
Direito | 45 |
Esquerdo | 54 |
Subxifoide | 1 |
Remoção de cabo-eletrodo foi realizada em 52 pacientes. Extração transvenosa com dilatadores mecânicos ou energizados foi realizada em 36 pacientes, enquanto que remoção pela simples tração do cabo-eletrodo foi realizada em apenas 16 casos. Ao final da operação, apenas 4 pacientes permaneceram sem nenhum cabo-eletrodo transvenoso implantado, sendo que a maioria (90%) dos casos ficou com dois ou três cabos no território venoso.
Houve concordância entre a estratégia cirúrgica estabelecida pela análise da venografia por subtração digital e o procedimento cirúrgico realizado em 99 dos 100 pacientes operados. A falta de concordância, que ocorreu em um único paciente, foi decorrente de erro na classificação do grau de uma lesão na veia subclávia direita, que foi considerada moderada no pré-operatório e que, durante a operação, verificou-se tratar de uma lesão sub-oclusiva. (Tabela 5)
Tabela 5 Concordância entre a estratégia cirúrgica definida com o auxílio da venografia pré-operatória e o procedimento cirúrgico realizado
Planejamento cirúrgico | Casos planejados | Casos realizados |
---|---|---|
• Estenose venosa < 50% a estenose moderada | 76 | 75 |
Acesso direto pela veia subclávia/ cefálica | ||
• Estenose grave ou oclusão, com veia jugular e/ou tronco braquiocefálico sem lesões obstrutivas | 11 | 11 |
Acesso pela veia jugular interna | ||
• Estenose grave ou oclusão, com veia jugular e/ou tronco braquiocefálico com lesões obstrutivas | 13 | 14 |
Extração de cabos-eletrodos |
Em todos os casos estudados, o planejamento cirúrgico foi embasado pelos achados da venografia pré-operatória. Dentre os 53 sem lesão significativa, optou-se simplesmente pelo implante de novos cabos-eletrodos sem a remoção de cabos antigos em 28 casos, e pelo implante de novos cabos associado à remoção de cabos antigos, para evitar superpopulação, em 22 casos. Houve remoção completa do sistema nos outros 3 casos.
No sentido contrário, dos 23 casos em que foi diagnosticada estenose moderada, optou-se pelo implante dos novos cabos associado à extração de cabos antigos em 14 casos, enquanto que a opção de implante de novos cabos com a manutenção dos cabos antigos foi adotada em apenas 9.
Nos 24 casos em que havia necessidade de implante de novo cabo-eletrodo e onde foi diagnosticada estenose grave ou oclusão venosa, o achado da venografia demonstrou que em 13 casos, a veia jugular interna e o tronco braquiocefálico ipsilaterais do implante estavam livres de obstruções. Destes 13 casos, em apenas 2, por serem pacientes jovens, foi programado procedimento de extração transvenosa, para evitar superpopulação de cabos-eletrodos. Dos 11 casos em que não foi realizada extração, a veia jugular interna foi a via de acesso utilizada em 5 deles. Nos outros 5 casos, foi possível ultrapassar a lesão da veia subclávia com o auxílio de guias hidrofílicos 0,14”. Dos 8 casos em que a veia jugular interna não era utilizável como via de acesso, pela existência de obstrução do tronco braquiocefálico venoso ipsilateral, em apenas 1 caso a equipe médica optou por realizar novo implante contralateral. Nos demais (7 casos) a opção para obtenção de via de acesso foi a extração transvenosa.
Remoção de cabo-eletrodo sem o implante de novos cabos foi realizada em apenas 4 casos: em 3, para tratamento de infecção relacionada ao dispositivo, e em 1 caso para a retirada de cabo-eletrodo ventricular disfuncional que estava gerando ruído em um CDI. Neste último, a venografia mostrava oclusão venosa.
Apesar da elevada taxa de aparecimento de desfechos venográficos nos pacientes estudados, não foi possível identificar variável demográfica, clínica, ou do sistema de estimulação implantado previamente, que pudesse estar relacionada ao aparecimento de lesões venosas significativas e/ou de circulação colateral. Foram testadas como prováveis fatores prognósticos: gênero, idade no momento do estudo venográfico, cardiopatia de base, classe funcional para insuficiência cardíaca, uso de anticoagulantes orais e antiplaquetários, ter cabo-eletrodo de CDI, lado do DCEI, tempo de implante do DCEI, número de cabos-eletrodos implantados, fração de ejeção do ventrículo esquerdo, e procedimentos prévios de reoperação. (Figura 4)
Obstruções venosas raramente causam problemas clínicos imediatos. Entretanto, quando o implante de novos cabos-eletrodos é necessário, a presença dessas lesões pode tornar o procedimento impossível de ser realizado por técnicas convencionais. Assim, a venografia por subtração digital tem sido o exame mais utilizado porque permite a identificação precisa do grau e da localização das lesões venosas, possibilitando um adequado planejamento da estratégia cirúrgica.11,28-30
A alta prevalência de indivíduos com lesões consideradas significativas no presente estudo foi compatível à de outras experiências relatadas na literatura.1-11 Independentemente do grau das lesões, sua distribuição foi equilibrada, nas veias subclávias, nos troncos braquiocefálicos venosos, ou nas regiões de transição dessas veias.
Apesar das particularidades que existem entre a anatomia das veias que drenam o lado esquerdo e o lado direito do tórax, o estudo venográfico não identificou diferenças significativas na frequência de aparecimento, no grau de estenose, ou na localização das lesões entre os dois lados. Houve diferença, entretanto, no tempo médio da permanência dos cabos-eletrodos, que foi maior nos pacientes em que o dispositivo estava implantado do lado direito, o que poderia ter aumentado a taxa de ocorrência de lesões no território direito. Por outro lado, a despeito do equilíbrio entre a quantidade de cabos-eletrodos implantados, o número de cabos-eletrodos de desfibrilador, que é considerado fator de risco para lesões venosas, foi significativamente maior nos casos em que o DCEI estava implantado do lado esquerdo.1-4-8
A forte associação entre a presença de circulação colateral e a de lesões venosas graves ou oclusivas, que foi observada no presente estudo, é de grande utilidade para a interpretação das venografias. Essa informação nos permite afirmar que, sempre que se observe a presença de circulação colateral, torna-se imperiosa a pesquisa cuidadosa de lesões de difícil definição. Neste sentido, sugerimos a manutenção de imagens dinâmicas do estudo venográfico, que permitem que seja se acompanhe o trajeto que o contraste percorreu. Frequentemente o contraste, passando exclusivamente pela circulação colateral, preenche completamente a luz venosa logo após a lesão crítica, fazendo com que esta não seja corretamente detectada em imagens estáticas.
A elevada taxa de pacientes com lesões graves ou oclusivas observadas no presente estudo, o que é concordante com dados da literatura, demonstrou a importância da venografia para o planejamento cirúrgico. Nos casos em que não foram identificadas lesões venosas significativas, a equipe cirúrgica pode planejar o procedimento, indicando ou não a extração dos cabos desativados, em função exclusivamente de fatores como a idade do paciente, ou o número de cabos-eletrodos que restariam no território venoso. Por outro lado, em pacientes em que foram observadas lesões moderadas, a equipe médica pode programar a extração dos cabos-eletrodos, na expectativa de evitar que a superpopulação de cabos viesse a causar agravamento das obstruções. E, finalmente, nos casos em que foram observadas lesões venosas graves ou oclusivas, o conhecimento da anatomia venosa foi fundamental para o planejamento cirúrgico, por orientar a possibilidade do uso da veia jugular ipsilateral, ou a necessidade de extração de cabo-eletrodo para obtenção de via de acesso.
Por ter causa multifatorial, a literatura é controversa quanto à definição de fatores preditores da ocorrência de complicações tromboembólicas em portadores de DCEI.2-11,36,37 Neste sentido, a ausência de fatores de risco para lesões venosas encontrada na presente amostra confirma a importância do estudo venográfico pré-operatório em pacientes que necessitam reoperações em cabos-eletrodos, uma vez que não foi possível identificar subgrupo de indivíduos menos sujeito às obstruções venosas.
Mesmo sendo parte de um registro prospectivo derivado da prática assistencial, em função dos critérios de não-inclusão considerados, as conclusões do presente estudo não podem ser estendidas para crianças, indivíduos com mais de 90 anos e portadores de disfunção renal com níveis de creatinina sérica maior que 1,5 mg/dL.
No que se refere à taxa de alterações venosas encontradas e seus fatores predisponentes, a presente análise tem as mesmas limitações dos estudos transversais, uma vez que foram avaliados em um único momento.
A prevalência elevada de obstruções graves ou de oclusões venosas em portadores de DCEI dificulta, em número considerável de pacientes, o implante transvenoso de novos cabos-eletrodos. Algumas vezes o uso de técnicas não convencionais, como a extração de cabo-eletrodo para obtenção de acesso, pode ser obrigatório. A falta de fatores predisponentes e a ausência de sinais clínicos de obstrução venosa, que ocorrem na maioria dos pacientes que apresentam lesões graves ou oclusivas, dificultam o planejamento cirúrgico antecipado. Assim, a venografia por subtração digital se mostra de grande utilidade para a definição da estratégia cirúrgica em reoperações para revisão de cabos-eletrodos ou para mudança de modo de estimulação em indivíduos com DCEI. O achado de vasos colaterais neste exame tem alto valor preditivo para o diagnóstico de lesões graves e oclusivas.