versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.1 São Paulo jan. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20190009
Em 1967, foi publicada a primeira descrição sobre insuficiência cardíaca (Estágio C), induzida pela quimioterapia.1 Tem ocorrido uma evolução terapêutica no tratamento oncológico, constatado pelo fato que, a partir de 2005, a taxa de sobrevida superou a de mortalidade.2 Isso gerou um novo problema epidemiológico nesses sobreviventes, uma vez que, pelo menos 30% deles, irão apresentar algum grau de cardiotoxicidade que pode ocorrer até décadas após o término da quimioterapia. Ademais, a mortalidade cardiovascular já é considerada a segunda causa de morte mais comum, perdendo apenas para o câncer.3-5
A definição, classicamente aceita de cardiotoxicidade durante o tratamento, foi proposta em 2014 em que se descreve como uma queda absoluta da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (VE) de 10 pontos percentuais para valores abaixo de 53%, sendo recomendada sua reavaliação após 2-3 semanas. Além disso, a lesão subclínica está baseada na queda relativa do strain global longitudinal do VE em 15% em relação ao basal.6 A grande preocupação é que a disfunção sistólica pode levar a um ajuste de dose terapêutica, esquemas terapêuticos alternativos menos eficazes, ou, no pior cenário, a interrupção do tratamento quimioterápico.
A Sociedade Europeia de Cardiologia, no ano de 2016, revisou a definição de cardiotoxicidade induzida pela quimioterapia e a estendeu para toda e qualquer alteração estrutural ou funcional do coração e circulação, seja na vigência, pós-tratamento imediato ou tardio do câncer.7 Isso obriga a uma ampliação conceitual do racional na monitorização cardiológica do doente oncológico, que antes se restringia a um valor arbitrário da fração de ejeção, não respeitando a individualização dos parâmetros hemodinâmicos, sexo e idade do paciente, que influenciam no cálculo da fração de ejeção.
Importante pontuar que a fração de ejeção pelo método bidimensional de Simpson não avalia as alterações da contratilidade segmentar do VE correspondente a 25% dos seus segmentos, considerando a segmentação de 16 segmentos:8 porção médio-basal da parede ínfero-lateral (dois segmentos) e porção médio-basal da parede ântero-septal (dois segmentos) não são analisadas, sendo essa limitação técnica superada pelo ecocardiograma tridimensional.9 Diante dessa problemática e de uma constatação pragmática de quem acompanha essa população de pacientes, vem se indagando a relevância das alterações segmentares isoladas do VE como toxicidade induzida pela quimioterapia e seu impacto prognóstico.
Em 2017, em um estudo de caso-controle, foi publicado um artigo em que a alteração da motilidade segmentar no septo interventricular tinha associação com a redução do desempenho ventricular esquerdo, a despeito da fração de ejeção preservada.10
O estudo publicado nessa edição avaliou uma coorte prospectiva de câncer de mama e mostrou o valor incremental da alteração da motilidade segmentar do VE em predizer cardiotoxicidade por antracíclico e/ou trastuzumabe.11 Chama atenção uma cardiotoxicidade elevada (16,1%) em uma população em que 35% eram hipertensas; 22% eram tabagistas; 19% dislipidêmicas e 7% diabéticas. Não há descrição no presente estudo sobre as doses utilizadas da doxorrubicina e trastuzumabe, o intervalo entre a realização dos exames foi variável entre os grupos, e se o surgimento de alterações da motilidade segmentar poderia estar relacionado à doença coronária obstrutiva, já que vários pacientes apresentavam fatores de risco.
Weberpals et al. em 201812 descreveram uma coorte de 347.476 pacientes com câncer de mama expostas a tratamento de quimioterapia ou radioterapia em um seguimento de mais de 10 anos e não houve aumento da mortalidade cardíaca comparada com a população geral.12
Outro dado relevante não descrito no texto foi se houve queda de mais de 15% da deformação global longitudinal (DGL) do VE nos pacientes que apresentaram alterações na contratilidade segmentar. Já está bem estabelecido que a DGL do VE tem a capacidade de predizer a queda da fração de ejeção do VE,13 sendo, em algumas instituições, indicado iniciar medicações para cardioproteção mesmo com a fração de ejeção preservada. Interessante que as alterações da motilidade segmentar descritas em 14% dos pacientes no artigo (septo interventricular, inferior e ínfero-lateral) são as mesmas regiões que fisiologicamente apresentam uma redução fluxo coronariano.14
O conceito proposto como uma das possibilidades fisiopatológicas para o acometimento segmentar preferencial descrito na doença de Chagas é de que a circulação terminal - entre a artéria coronária descendente anterior e a descendente posterior (ápice do VE) e circulação terminal entre a artéria coronária direita e a circunflexa esquerda (o segmento ínfero-lateral basal) - contribui para a lesão chagásica nessas topografias. Dessa forma, provavelemente, o agente agressor (quimioterápico, ou o Trypanossoma cruzy, por exemplo) apresentaria um clareamento mais lento nessas regiões, aumentando o tempo de exposição deletéria do cardiomiócito.
Indiscutivelmente, a cardiotoxidade por quimioterápico é multifatorial, porém talvez tal hipótese fisiopatológica possa ter uma implicação clínica ao se melhorar a função endotelial e vasomotora coronariana previamente à exposição ao quimioterápico (estatinas, vasodilatadores, betabloqueadores). Dentre os 14 pacientes com alteração da contratilidade segmentar, 50% eram movimento atípico do septo. Porém, alterações da movimentação septal apresentam um achado inespecífico porque há uma gama extensa de etiologias que alteram a motilidade septal como: condições que causem aumento de volume ou pressão no VE; acometimento primário do cardiomiócito (cardiomiopatias); alterações elétricas de condução; estado pós-cirúrgico; doença pericárdica; cardiomiopatias congênitas; encurtamento pós-sistólico e massa interventricular,15 merecendo cautela em atribuir tal achado à cardiotoxicidade, apesar da sua plausibilidade.
Uma alternativa que ajudaria na compreensão dos achados seria expor a evolução da queda da DGL do VE entre os diferentes grupos e analisar se houve semelhança entre os achados da alteração segmentar e a disposição paramétrica da DGL do VE. Apesar de ainda ser discutível a valorização das alterações segmentares da deformação miocárdica, há trabalhos que vêm mostrando o papel incremental desse tipo de análise.16,17
A presente coorte descrita no artigo desse editorial não deixa claro como ficaram divididos os grupos, dificultando a compreensão da realização do cálculo estatístico exposto. Seria interessante uma análise univariada e multivariada dos fatores que contribuíram para a queda da fração de ejeção (pressão arterial sistólica, dose e local da radioterapia, dose do quimioterápico, queda relativa da deformação do VE; valores absolutos iniciais da deformação, etc). Além disso, uma análise mais detalhada dos volumes ventriculares e função diastólica permitiriam um entendimento melhor do remodelamento ventricular. Da mesma forma, outra limitação seria a inclusão do encurtamento pós-sistólico na medida do pico máximo do strain, não considerando a fase do ciclo cardíaco.
Independente das limitações expostas, o artigo mostra a relevância de um achado pouco discutido que é as alterações da motilidade segmentar do VE durante o tratamento quimioterápico, podendo ser secundário à doença, ao tratamento, ou descompensação de uma doença de base.