versão impressa ISSN 1806-3713
J. bras. pneumol. vol.40 no.4 São Paulo jul./ago. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37132014000400013
A esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença neurodegenerativa progressiva. A maioria dos pacientes com ELA morre de insuficiência respiratória em virtude de fraqueza muscular respiratória progressiva; a mediana de sobrevida após o diagnóstico é de menos de 2 anos.( 1 ) A ventilação não invasiva com pressão positiva (VNIPP) prolonga e melhora a qualidade de vida dos pacientes com ELA.( 2 ) Já se estudou o uso de ventilação não invasiva com dois níveis de pressão positiva nas vias aéreas (ventilação BPAP, do inglês bilevel positive airway pressure) e volume controlado, no modo espontâneo-cronometrado (E-C), com ajuste da pressão inspiratória para fornecer um volume corrente (VC) alvo estimado, em pacientes com insuficiência respiratória crônica de diferentes etiologias.( 3 - 8 ) No entanto, não estamos cientes de nenhum relato de uso em pacientes com ELA.
Relatamos o caso de uma paciente com ELA de progressão rápida e insuficiência respiratória hipercápnica tratada em casa com ventilação BPAP com volume controlado no modo E-C. Além do acompanhamento clínico de rotina, foram monitorados os dados do ventilador, baixados semanalmente.
Uma mulher de 66 anos de idade, sem história médica significativa e com índice de massa corporal de 23,4 kg/m2, apresentou sintomas bulbares leves e, em seguida, "pé caído" à direita. Onze meses após o início dos sintomas, recebeu diagnóstico de ELA. Na época, a CVF era de 2,22 L (79% do previsto) e a PImáx era de −28 cmH2O (40% do previsto). Obteve 34 pontos (de 40 possíveis) na Escala de Avaliação Funcional da ELA (EAFELA), com 10 pontos (de 12 possíveis) no componente bulbar, o que denota comprometimento leve. Obteve 8 pontos (de 21 possíveis) no Índice de Qualidade do Sono de Pittsburgh (IQSP), o que denota má qualidade do sono, e 4 (de 24 possíveis) na Escala de Sonolência de Epworth (ESE), isto é, não havia evidência de sonolência diurna excessiva.
Aos 4 meses de acompanhamento, era evidente a acentuada progressão da doença, com agravamento dos sintomas bulbares e fadiga, assim como o eram os novos sintoma de dispneia durante a conversação, ortopneia e sono não reparador. Sua função pulmonar e seu estado funcional haviam piorado - CVF: 1,58 L (57% do previsto); PImáx: −25 cmH2O (36% do previsto) - e a paciente obteve 28 pontos na EAFELA, com 8 pontos no componente bulbar. A pontuação no IQSP e na ESE permaneceu relativamente inalterada (IQSP = 7 e ESE = 4). Foram feitas duas tentativas de gasometria arterial, ambas sem sucesso. Recomendamos gastrostomia e VNIPP. A paciente solicitou mais testes de confirmação antes dessas intervenções; foi então marcada para a semana seguinte uma polissonografia de noite inteira em laboratório.
A polissonografia revelou hipoventilação durante o sono. Três semanas depois, foi realizada a titulação da ventilação BPAP em modo E-C com volume controlado (Average Volume-Assured Pressure Support; Philips Respironics, Murrayville, PA, EUA) por meio de uma máscara facial inteira, por escolha da paciente (Tabela 1). A paciente não tolerou o VC alvo (8 mL/kg). Portanto, a configuração final foi a seguinte: VC = 320 mL (6 mL/kg); pressão positiva inspiratória nas vias aéreas = 8-15 cmH2O; pressão positiva expiratória nas vias aéreas = 6 cmH2O (aumentada para limitação do fluxo) e tempo inspiratório = 1,5 s, com frequência de backup de 12 ciclos/min. Uma semana depois, a paciente retornou à clínica; apresentava agravamento contínuo dos sintomas bulbares e fraqueza, usava um andador e relatava dispneia aos mínimos esforços. Sua CVF era de 1,05 L (38% do previsto), com PImáx de −19 cmH2O (27% do previsto) e PaCO2 de 53 mmHg. Obteve 26 pontos na EAFELA (com 6 pontos no componente bulbar), 17 no IQSP e 7 na ESE. Iniciou-se VNIPP noturna com configuração de polissonografia e frequência de backup de 14 ciclos/min.
Tabela 1 Dados do estudo do sono em paciente com esclerose lateral amiotrófica.
Parâmetro | Tipo de estudoa | |
---|---|---|
PSG | AVAPS | |
Tempo total de sono, min | 250 | 116 |
Eficiência do sono, % | 55 | 32 |
Latência do sono, min | 58 | 113 |
Tempo total acordada, min (%) | 203 (45) | 242 (65) |
Estágio 1, min (%) | 5 (1) | 15 (4) |
Estágio 2, min (%) | 175 (39) | 99 (27) |
Estágio 3, min (%) | 71 (16) | 15 (4) |
Sono REM, min (%) | 0 (0) | 0 (0) |
Tempo acordada após o início do sono, min | 143 | 31 |
Índice de microdespertares, eventos/h | 18 | 6 |
Microdespertares espontâneos, n | 67 | 11 |
Índice de movimentos periódicos dos membros, eventos/h | 1 | 0 |
Índice de apneia-hipopneia, eventos/h | 0 | 0 |
Média de SpO2 noturna, % | 95 | 97 |
SpO2 mínima, % | 93 | 94 |
ETCO2 basal, mmHg | 46 | 47-54 |
ETCO2 máximo, mmHg | 57 | 57 |
ETCO2 > 50, min | 227 | 121 |
FR basal, ciclos/min | - | 24 |
ETCO2 final, mmHg | - | 35-45 |
FR final, ciclos/min | - | 12-14 |
PSG: polissonografia
AVAPS: average volume-assured pressure support (ventilação com média de pressão de suporte e volume garantido)
REM: rapid eye movement
ETCO2: dióxido de carbono corrente final
aA paciente realizou ambos os estudos em decúbito, a aproximadamente 45°.
Um tubo de gastrostomia foi inserido sob orientação radiológica, e a paciente passou a ser tratada em regime de internação domiciliar, sem planos de voltar à clínica. Sete semanas após o início da VNIPP, a paciente foi contatada para ajuste da configuração com base nos sintomas e nos dados baixados (Tabela 2 e Figura 1). Decidiu fazer uma rápida visita à clínica para discutir a piora da dispneia. Apresentava dispneia leve em repouso e necessitava de uma cadeira de rodas para se mover. A VNIPP noturna, usada todas as noites, facilitava a respiração, permitindo-lhe dormir melhor e por mais tempo. Recentemente houvera um vazamento na máscara, em virtude da perda de peso da paciente. Na época, a paciente apresentava CVF de 1,01 L (36% do previsto), PImáx de −15 cmH2O (21% do previsto) e PaCO2 de 55 mmHg. A configuração do ventilador foi ajustada assim: VC = 370 mL (7 mL/kg); pressão inspiratória positiva nas vias aéreas = 10-17 cmH2O e tempo inspiratório = 1,2 s, com frequência de backup de 18 ciclos/min. Recomendamos o uso de VNIPP intermitente durante o dia e um ajuste no tamanho da máscara. O contato com a paciente (por telefone e e-mail) foi mantido, e as mudanças foram bem toleradas. Seis semanas após sua última visita, a paciente foi novamente contatada para ajuste da configuração do ventilador, mas não quis fazer mais alterações. Pouco tempo depois, morreu de insuficiência respiratória progressiva.
Tabela 2 Dados do ventilador, baixados semanalmente, em paciente com esclerose lateral amiotrófica tratada com ventilação com dois níveis de pressão positiva nas vias aéreas.
Variável | Semana | ||||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10a | 11 | 12 | 13 | 14 | 15 | |
VE, L/min | 4,3 | 4,5 | 4,4 | 4,4 | 4,3 | 4,5 | 5,8 | 5,4 | 5,5 | 6,5 | 7,1 | 6,4 | 5,9 | 6,3 | 6,5 |
VC, mL | 271 | 267 | 266 | 259 | 265 | 259 | 295 | 273 | 252 | 310 | 354 | 346 | 336 | 336 | 338 |
Ciclos espontâneos, % | 77 | 82 | 77 | 78 | 76 | 80 | 90 | 87 | 78 | 63 | 55 | 47 | 43 | 46 | 50 |
Uso diário, h | 5,0 | 3,9 | 6,1 | 5,7 | 5,4 | 5,3 | 5,6 | 6,0 | 10,1 | 12,9 | 11,8 | 12,4 | 10,3 | 13,7 | 17,6 |
Uso ≥ 4 h/dia, % | 71 | 43 | 100 | 100 | 86 | 86 | 86 | 100 | 100 | 86 | 100 | 100 | 43 | 100 | 100 |
FR, ciclos/min | 19 | 19 | 20 | 19 | 20 | 20 | 22 | 23 | 25 | 24 | 22 | 20 | 20 | 21 | 22 |
IAH, eventos/h | 15,2 | 19,4 | 25,8 | 21,6 | 19,1 | 23,2 | 5,2 | 13,4 | 22,3 | 26,8 | 7,7 | 15,1 | 11,4 | 5,5 | 12,7 |
Vazamento, L/min | 40 | 40 | 41 | 38 | 42 | 38 | 36 | 39 | 41 | 38 | 38 | 36 | 36 | 35 | 36 |
PPIVA, cmH2O | 11,9 | 11,9 | 12,9 | 12,8 | 12,5 | 12,6 | 10,9 | 11,8 | 13,5 | 15,0 | 13,8 | 13,5 | 14,2 | 14,0 | 14,5 |
VE: ventilação minuto
VC: volume corrente
Ciclos espontâneos: ciclos respiratórios desencadeados pela paciente
Uso diário: uso do dispositivo por período de 24 h
Uso = 4 h/dia: dias em que o dispositivo foi usado durante = 4 h/ dia
IAH: índice de apneia-hipopneia
Vazamento: vazamento total na máscara
PPIVA: pressão positiva inspiratória nas vias aéreas
aO suporte ventilatório aumentou entre a 8ª e a 9ª semana; a 10ª semana reflete esse aumento pela primeira semana completa.
Figura 1 Dados do ventilador durante um período de 15 semanas em uma paciente com esclerose lateral amiotrófica tratada com ventilação com dois níveis de pressão positiva nas vias aéreas. Nota-se o aumento da duração do uso diário de ventilação com a diminuição da capacidade de desencadear ciclos respiratórios espontaneamente (isto é, o aumento da dependência dos ciclos cronometrados gerados pelo ventilador) ao longo do tempo. Como se pode observar, a ventilação minuto manteve-se relativamente constante. *O suporte ventilatório aumentou entre a 8ª e a 9ª semana; a 10ª semana reflete esse aumento pela primeira semana completa.
Apresentamos o caso de uma paciente com ELA tratada com ventilação BPAP com volume controlado no modo E-C durante 15 semanas em virtude de insuficiência respiratória crônica. Nessa paciente, o monitoramento semanal dos dados do ventilador mais os cuidados de rotina forneceram informações úteis para o tratamento da insuficiência respiratória. A progressão da doença associou-se a piora da fraqueza muscular respiratória, diminuição da respiração espontânea e aumento do uso de VNIPP, embora o VC e a ventilação minuto (VE) tenham permanecido relativamente constantes. Até onde sabemos, não há relatos de casos de ELA nos quais se tenha usado esse modo de VNIPP.
Em pacientes com ELA, a progressão da doença é relativamente rápida, mas varia.( 9 ) Portanto, ajustes seriais da pressão da VNIPP podem ser necessários para compensar a diminuição da força muscular respiratória e o aumento da hipercapnia. ( 10 ) Um modo de VNIPP com variação de pressão inspiratória (para manter um VC alvo) em vez de pressão fixa pode reduzir a frequência de ajustes necessários ao longo do tempo em alguns pacientes. Esse recurso também pode ser benéfico em curto prazo, como durante o sono, quando os pacientes com fraqueza diafragmática estão vulneráveis à piora da hipoventilação, especialmente durante o sono rapid eye movement. Ambogrio et al. mostraram que, em comparação com o modo tradicional de ventilação BPAP E-C, o modo de ventilação BPAP E-C com volume controlado foi mais capaz de manter a VE (por meio da manutenção do VC) durante o sono em pacientes com síndrome de hipoventilação por obesidade.( 4 )
O software embutido nos dispositivos de VNIPP é privado, e, na ausência de validação independente, os dados relativos a muitos parâmetros devem ser considerados indicadores de tendências, sem qualquer garantia de linearidade das estimativas.( 11 ) Apesar dessa limitação, os dados disponíveis podem fornecer informações valiosas para o tratamento do paciente. Estudos envolvendo o monitoramento remoto de dados de adesão à VNIPP em pacientes com ELA usando ventilação BPAP tradicional mostraram que, em comparação com os cuidados de rotina, esse monitoramento reduz a utilização de serviços de saúde e as internações hospitalares, potencialmente reduzindo os custos globais de cuidados de saúde. ( 12 ) Essa modalidade de monitoramento pode ser particularmente útil em pacientes com ELA avançada ou de progressão rápida, que, como nossa paciente, podem ficar impedidos de sair de casa. A capacidade de solicitar alterações na configuração e verificá-las remotamente (sem uma visita domiciliar) é uma vantagem adicional.
A ventilação BPAP com volume controlado no modo E-C é uma alternativa relativamente nova à VNIPP tradicional para pacientes com insuficiência respiratória, e fomos os primeiros a relatar seu uso em um paciente com ELA. São necessários mais estudos a fim de comparar os vários modos de VNIPP quanto a seu efeito sobre a sobrevida, qualidade de vida, qualidade do sono, adesão, adequação da ventilação e utilização de serviços de saúde em pacientes com ELA.