versão impressa ISSN 1413-8123
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.2 Rio de Janeiro fev. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.06732014
Pessoas com necessidades especiais (PNE) podem apresentar risco elevado para as doenças bucais quando apresentam dificuldade na higienização local, na mastigação, fazem uso de dieta pastosa e/ou rica em carboidrato, utilizam medicamentos adocicados ou que promovem a diminuição do fluxo salivar, além das limitações para acesso aos serviços1-3. A assistência odontológica a esse grupo populacional pode envolver dificuldades considerando as limitações apresentadas pelas PNE ou relacionadas aos profissionais das equipes de saúde bucal, o que pode culminar por atendimento odontológico sob o uso de anestesia geral ou sedação em ambiente hospitalar4. As indicações para o tratamento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral são de natureza médica, mental ou psicológica, incluindo a deficiência intelectual, limitações físicas, distúrbios de movimento, transtornos comportamentais e doenças crônicas5-8.
No Brasil houve nas últimas décadas um esforço de organização da assistência à saúde bucal das PNE, da atenção primária ao atendimento sob sedação e/ou anestesia geral em nível hospitalar, fortalecendo assim a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência9-14. Em 2010, o Ministério da Saúde criou o procedimento Tratamento Odontológico para Pacientes com Necessidades Especiais incluindo-o na tabela de procedimentos do Sistema único de Saúde (SUS) como aquele que é realizado sob sedação e/ou anestesia geral em ambiente hospitalar12. Em 2012, o estado de Minas Gerais organizou a atenção hospitalar no contexto da construção da Rede de Atenção à Saúde Bucal que, dentre outros objetivos, busca avançar na garantia da integralidade da atenção às PNE. Essa rede tem como premissa que o número de casos referenciados para o atendimento odontológico com o uso de anestesia geral é inversamente proporcional ao nível de organização da atenção primária, e que esses encaminhamentos devem ser feitos apenas em casos específicos5,15,16. A modelagem da Rede de Atenção à Saúde Bucal no estado de Minas Gerais segue a lógica do Plano Diretor de Regionalização (PDR-MG), que agrupa os 853 municípios em 77 Regiões de Saúde, que por sua vez estão inseridos em 13 Regiões Ampliadas de Saúde. Cada uma destas possui de um a três municípios sede17. O tratamento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral em ambiente hospitalar para PNE deveria ser realizado nos 19 municípios sede do estado16. Esse procedimento é descrito na tabela unificada do Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e órtese, Prótese e Materiais do SUS (SIGTAP)18, como aquele que consiste em procedimentos odontológicos realizados em ambiente hospitalar, sob sedação e/ou anestesia geral, em usuários que apresentem uma ou mais limitações temporárias ou permanentes, de ordem intelectual, física, sensorial e/ou emocional que o impeça de ser submetido a um atendimento odontológico convencional.
Esse procedimento é caracterizado como procedimento principal que gera a emissão de Autorização de Internação Hospitalar (AIH) com o Código Brasileiro de Ocupação (CBO) do cirurgião-dentista. Possui, ainda, atributo complementar que inclui o valor da anestesia, e é compatível com procedimentos odontológicos secundários (da carteira de serviços da atenção primária) e procedimentos especiais (da carteira de serviços de média complexidade/atenção especializada), sendo que a realização desses últimos também gera pagamento19.
Considerando a organização da Rede de Atenção à Saúde Bucal, a utilização dos serviços de atendimento odontológico hospitalar sob sedação e/ou anestesia geral aos PNE no SUS-MG deve ser objeto de descrição e avaliação, com o objetivo de colaborar com a tomada de decisões de gestão. A avaliação em saúde abrange as dimensões da estrutura (recursos empregados e organização), processo (serviços ou bens produzidos) e resultado20. Para a avaliação dos serviços de saúde, faz-se necessário o desenvolvimento de indicadores e padrões de qualidade nessas três dimensões. Desta forma, a análise da distribuição do perfil demográfico e assistencial do tratamento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral para pacientes com necessidades especiais pode colaborar para a ação avaliativa.
Considerando que a aplicação das políticas de saúde à pessoa com necessidade especial é recente, pouco conhecimento científico foi produzido com o objetivo de colaborar para o planejamento da organização das ações assistenciais. Nesse sentido, o presente estudo objetivou identificar as características demográficas dos pacientes e assistenciais do tratamento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral em ambiente hospitalar no SUS-MG.
Trata-se de um estudo quantitativo descritivo com utilização de dados secundários referentes às Autorizações de Internações Hospitalares (AIH) registradas como pagas no estado de Minas Gerais pela execução do procedimento Tratamento Odontológico para Pacientes com Necessidades Especiais no período de julho de 2011 a junho de 2012.
O estado de Minas Gerais, localizado na região sudeste, é o segundo estado mais populoso e o terceiro com maior Produto Interno Bruto do Brasil. Apresenta população estimada, em 2013, igual a 20.593.356, distribuída em 853 municípios.
Foram utilizadas as bases de dados do Sistema de Informações Hospitalares-SUS (SIH/SUS), do Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) e da Secretaria de Estado de Saúde do Estado de Minas Gerais (SES-MG).
Em fevereiro de 2013, foi realizado o levantamento do número de AIH pagas no estado de Minas Gerais pela execução do procedimento durante o período, no banco de dados do SIH/SUS e da SES-MG, conforme o município de internação, com posterior comparação dessas informações para identificar a existência ou não de divergências quanto ao quantitativo de AIH pagas. O banco de dados foi exportado para o programa SPSS for Windows versão 19.0 sendo realizada novamente avaliação de incoerências que, quando existiram, foram corrigidas por meio de informações da SES-MG. Optou-se pela utilização das informações da SES-MG, pois neste nível foi possível ter acesso ao detalhamento da AIH de cada atendimento.
Foram analisadas todas as AIH pagas e que estavam registradas no banco de dados da SES-MG. As variáveis estudadas foram: mês e ano de realização do procedimento, sexo, idade (em anos), faixa etária (crianças: até 9 anos; adolescente: 10 a 19 anos; adulto: 20 a 59 anos; idoso: 60 anos ou mais), diagnóstico principal (Classificação Internacional de Doenças - CID), município de residência do usuário; município do atendimento hospitalar, região ampliada de saúde de Minas Gerais do município do atendimento hospitalar (Centro, Centro Sul, Jequitinhonha, Leste, Leste do Sul, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Sudeste, Sul, Triangulo do Norte, Triangulo do Sul), tipo de leito (cirurgia, clínica médica, pediatria, hospital-dia), caráter da internação (eletiva, urgência/emergência), procedimentos realizados (Tabela SIA/SUS), Código Brasileiro de Ocupação (CBO) do cirurgião-dentista que realizou os procedimentos, quantidade de diárias do paciente e do acompanhante.
Foram calculadas as taxas de internação por 10.000 habitantes no estado de Minas Gerais e em cada uma das Regiões Ampliadas de Saúde, utilizando-se o quantitativo populacional constante no PDR-MG/201117. Foram estimadas a cobertura assistencial realizada no estado de Minas Gerais e em cada uma das regiões ampliadas de saúde. Para este cálculo o número de AIH foi dividido pela população estimada de pessoas com necessidades especiais com demanda para atendimento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral21-23. De acordo com o IBGE21 e o Ministério da Saúde22, 6,7% da população em geral pode apresentar necessidade especial de atendimento odontológico. Entre estes, 5% podem demandar por atendimento hospitalar sob sedação e/ou anestesia geral23, o que significa que 0,34% da população em geral pode necessitar dessa modalidade de tratamento.
Foi realizada a análise descritiva das variáveis de interesse por meio de cálculo da frequência e medidas de tendência central e variabilidade. Não foram mensurados os intervalos de confiança, pois se trata de estudo censitário.
O estudo foi submetido, avaliado e aprovado pelo Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais.
Foram estudadas todas as 1.063 AIH pagas no período avaliado. O percentual de AIH nos meses avaliados do ano de 2012 correspondeu a 50,2%. Em relação a todos os meses pesquisados, observou-se que o menor quantitativo de AIH pagas foi igual a 67 e o maior, 108.
A idade média foi igual a 28,5 (± 18,2), variando entre zero e 90 anos. O primeiro, segundo e terceiro quartis da idade foram iguais a 15, 25 e 39 anos, respectivamente. O percentual de crianças, adolescentes, adultos e idosos atendidos correspondeu a 15,0%, 21,4%, 56,0% e 7,6%, respectivamente. A maioria (61,0%) era do sexo masculino.
Houve 145 tipos de diagnóstico principal, sendo que a maior frequência (60,3%) referiu-se a transtornos mentais e comportamentais, seguido de doenças do sistema nervoso (18,5%), doenças do sistema osteomuscular e tecido conjuntivo (5,0%), doenças infecciosas e parasitárias (4,5%), fatores que influenciam o estado de saúde e o contato com os serviços de saúde (3,5%), doenças do aparelho geniturinário (2,8%), doenças da pele e do tecido subcutâneo (1,8%), malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas (1,0%), neoplasias [tumores (0,8%), doenças do aparelho circulatório (0,8%), doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e alguns transtornos imunitários (0,4%), doenças endócrinas e metabólicas (0,4%) e doenças do aparelho digestivo (0,2%)].
Os pacientes foram oriundos de 236 municípios de Minas Gerais, que corresponde a 27,7% do total de municípios do estado e 2 pacientes do município de Três Rios (RJ).
Do total de 853 municípios do estado, 39 (4,6%) realizaram o procedimento. Dos 39 municípios, 16 (41,0%) eram sede de Região Ampliada de Saúde e 14 (35,9%) realizaram atendimentos exclusivamente a pacientes oriundos do próprio município. Nestes municípios, 43 estabelecimentos hospitalares executaram os procedimentos.
Em relação ao tipo de leito, as maiores frequências foram do tipo cirurgia (72,7%) e hospital dia (12,6%). O caráter da internação de urgência correspondeu a 59,9% das AIH. A quase totalidade dos atendimentos (98,6%) não ocorreu em UTI.
Além do procedimento Tratamento Odontológico para Pacientes com Necessidades Especiais, presente em 100% das AIH, em 544 AIH (51,2%) houve registro detalhado dos procedimentos odontológicos realizados.
Do total de registros do procedimento Tratamento Odontológico para Pacientes com Necessidades Especiais com CBO de cirurgião-dentista (N = 1.200), 71,4% foi de clínico geral. Outros especialistas como cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial (21,3%), odontologia para pacientes com necessidades especiais (2,4%), periodontia (1,6%), odontogeriatria (1,4%), endodontia (1,3%) e radiologia odontológica e imaginologia (0,5%) realizaram o atendimento.
Na maioria das AIH (94,1%) houve o registro de uma diária do paciente. O número máximo de diárias foi igual a 33 (n = 1). Em 76,0% das AIH não houve diárias de acompanhantes e 22,4% registraram uma diária. O número máximo de diárias de acompanhante foi igual a 26 (n = 1).
A Tabela 1 mostra uma variação na frequência do número de municípios, na população residente e no número de atendimento odontológico hospitalar sob sedação ou anestesia geral por pessoas com necessidades especiais, nas diversas Regiões Ampliadas de Saúde.
Tabela 1 Número de municípios, população e número de atendimentos odontológico hospitalar sob sedação e/ ou anestesia geral por pessoas com necessidades especiais realizadas de acordo com Regiões Ampliadas de Saúde, Minas Gerais, no período de julho/2011 a junho/2012.
Região Ampliada de Saúde | Número de municípios | População | Número de atendimentos (%) |
---|---|---|---|
Total | 853 (100%) | 19.728.252 (100%) | 1.063 (100%) |
Centro | 103 (12,1%) | 6.145.218 (31,1%) | 179 (16,8%) |
Centro Sul | 50 (5,9%) | 727.516 (3,7%) | 30 (2,8%) |
Jequitinhonha | 29 (3,4%) | 374.199 (1,9%) | 44 (4,1%) |
Leste | 86 (10,1%) | 1.458.884 (7,4%) | 2 (0,2%) |
Leste do Sul | 53 (6,2%) | 667.926 (3,4%) | 80 (7,5%) |
Nordeste | 57 (6,7%) | 811.856 (4,1%) | 34 (3,2%) |
Noroeste | 33 (3,9%) | 657.378 (3,3%) | 53 (5,0%) |
Norte | 86 (10,1%) | 1.585.946 (8,0%) | 132 (12,4%) |
Oeste | 55 (6,4%) | 1.201.980 (6,1%) | 10 (0,9%) |
Sudeste | 94 (11,0%) | 1.575.629 (8,0%) | 373 (35,1%) |
Sul | 153 (17,9%) | 2.625.589 (13,3%) | 74 (7,0%) |
Triângulo do Norte | 27 (3,2%) | 1.190.043 (6,0%) | 28 (2,6%) |
Fonte: Banco de dados SES-MG, PDR-MG/2011.
A taxa de internação por 10.000 habitantes no estado de Minas Gerais foi de 0,54. A Figura 1 apresenta as taxas por Região Ampliada de Saúde.
Figura 1 Taxas de internações/10.000 habitantes, por Região Ampliada de SaúdeFonte: Banco de dados SES-MG, PDR-MG/2011
A Tabela 2 apresenta a estimativa populacional de PNE que pode demandar por atendimento odontológico hospitalar sob sedação e/ou anestesia geral e a cobertura assistencial por Região Ampliada de Saúde em Minas Gerais. Para Minas Gerais, a cobertura assistencial no período analisado foi igual a 1,58%.
Tabela 2 Estimativa populacional de PNE que pode demandar por atendimento odontológico hospitalar sob sedação e/ou anestesia geral e cobertura assistencial por Região Ampliada de Saúde, Minas Gerais, no período de julho/2011 a junho/2012.
Região Ampliada de Saúde | Estimativa Populacional* | Número de AIH | Cobertura Assistencial (%) |
---|---|---|---|
Total | 67.076 | 1.063 | 1,58 |
Centro | 20.894 | 179 | 0,86 |
Centro Sul | 2.474 | 30 | 1,21 |
Jequitinhonha | 1.272 | 44 | 3,46 |
Leste | 4.960 | 2 | 0,04 |
Leste do Sul | 2.271 | 80 | 3,52 |
Nordeste | 2.760 | 34 | 1,23 |
Noroeste | 2.235 | 53 | 2,37 |
Norte | 5.392 | 132 | 2,45 |
Oeste | 4.087 | 10 | 0,24 |
Sudeste | 5.357 | 373 | 6,96 |
Sul | 8.927 | 74 | 0,83 |
Triângulo do Norte | 4.046 | 28 | 0,69 |
*Estimativa de pessoas com necessidades especiais que podem demandar por tratamento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral (= 0,34% da população em geral).
Fonte: Banco de dados SES-MG, PDR-MG/2011.
Verificou-se que a assistência é realizada majoritariamente em pacientes adultos, do sexo masculino, com diagnóstico de transtornos mentais e comportamentais, oriundos de todas as regiões do estado. Uma baixa cobertura assistencial foi identificada.
A predominância dessa modalidade de tratamento odontológico em pacientes na idade adulta pode estar relacionada ao fato que o PNE, nesta fase, aumenta em tamanho e força física a um ponto que, a execução das técnicas de manejo comportamental não promove o controle adequado que o cirurgião-dentista necessita para realizar seu trabalho, ou mesmo pela maior interferência de movimentos involuntários24,25. E em se tratando do gênero masculino, o aumento da força física pode ser ainda mais exacerbado, ficando mais difícil o controle por parte do profissional quando alterações cognitivas e mentais estão relacionadas. A baixa prioridade da família para a atenção odontológica precoce pode ser causada pelos desafios por parte dos responsáveis, em razão de possíveis condições de saúde desses pacientes, que demandando cuidados contínuos para a manutenção da vida, não têm facilitado o acesso à assistência à saúde25, levando, assim, a um número elevado de adultos exigindo atenção sob sedação e/ou anestesia geral. Por se tratar de estudo descritivo, essas hipóteses devem ser avaliadas por estudos com potencial analítico.
Estudos que avaliaram pacientes submetidos ao tratamento odontológico sob anestesia geral relatam que a maioria deles apresentava comprometimento mental ou cognitivo25-27. A normativa no SUS para essa modalidade de atendimento às pessoas com necessidades especiais12 indica 2.442 códigos de CID-10 para a abertura da AIH, o que a caracteriza como abrangente por possibilitar essa modalidade de tratamento odontológico para além do contexto da deficiência. Os conceitos de pessoa com deficiência e pessoa com necessidades especiais se confundem, e em relação à assistência odontológica nem todas as pessoas com deficiência são pessoas com necessidades especiais e o contrário também é verdadeiro. O termo utilizado neste trabalho, PNE, está de acordo com a especialidade oficializada no Conselho Federal de Odontologia (CFO) e com a descrição pelo Ministério da Saúde acerca do procedimento odontológico que é foco deste estudo.
O perfil demográfico e clínico identificado neste trabalho pode ser útil para que os serviços de saúde promovam estudo sobre a atual demanda para a atenção terciária e se organizem visando o atendimento nos níveis primário e secundário, com uma redução, quando for possível, dos atendimentos sob sedação e/ou anestesia geral28,29.
A não realização do atendimento aos PNE residentes na maioria dos municípios de Minas Gerais pode significar, ou que os municípios oferecem uma atenção primária resolutiva para esse grupo populacional, ou que não garantem a integralidade da atenção, por exemplo pela falta de vagas para o atendimento, configurando-se numa situação de deficiência na organização da Rede de Atenção à Saúde Bucal no SUS-MG16,30-32. O atendimento a pacientes oriundos de outros estados da federação, embora muito reduzida, pode dificultar a gestão dos serviços no município de Juiz de Fora. A explicação para o atendimento de um paciente do estado do Rio de Janeiro envolve a proximidade geográfica.
Duas situações foram identificadas nos resultados obtidos neste estudo e que indicam práticas que contrariam a organização da Rede de Atenção à Saúde Bucal no SUS-MG16,30-32. A primeira foi que a minoria dos municípios que realizou o atendimento era sede de região ampliada de saúde. Além disso, identificou-se uma importante proporção de municípios que atendeu exclusivamente pacientes do seu próprio território o que sugere uma dificuldade de operacionalização da diretriz de regionalização dos serviços especializados de saúde bucal no SUS-MG.
Como o caráter da internação de urgência apresentou uma maior frequência em relação ao caráter eletivo, infere-se que os encaminhamentos foram realizados em condições agudas das doenças bucais e que não houve a intervenção em tempo oportuno pela atenção primária30. O tipo de leito mais utilizado para o atendimento pode ser devido a sua disponibilidade na rede hospitalar em Minas Gerais.
O procedimento Tratamento Odontológico para Pacientes com Necessidades Especiais é realizado mais frequentemente pelo cirurgião-dentista clínico geral. Trata-se de um achado interessante, pois estudos anteriores demonstram que cirurgiões-dentistas brasileiros têm dificuldades para o atendimento a esses indivíduos, mesmo em nível ambulatorial33. Quando se autoavaliam como bem formados para esse atendimento, esses profissionais atendem mais frequentemente tais pacientes34. Novas pesquisas devem ser feitas com o objetivo de compreender a disponibilidade desses recursos humanos para esse atendimento.
Houve registro dos procedimentos (N = 1.200) em número maior do que o de atendimentos (N = 1.063). Sugere-se que o procedimento seja registrado uma única vez, pelo CBO do médico anestesiologista ou do cirurgião-dentista, envolvendo um rigoroso trabalho integrado da equipe de saúde35.
A frequência do atendimento sob sedação/anestesia geral variou entre as Regiões Ampliadas de Saúde do estado de Minas Gerais, mas não de acordo com a frequência do número de municípios, nem com a população residente em cada uma dessas regiões. Quando foi determinada a taxa desse atendimento odontológico sob a população que potencialmente necessita deste atendimento, verificou-se que a cobertura está longe do necessário. Diversos fatores podem estar envolvidos com este fato, entre eles o financiamento do atendimento36 e a atitude dos profissionais28. Razões históricas de organização hospitalar em geral e na assistência à PNE podem também explicar essa baixa cobertura. Nos anos de 1990, houve uma redução de 22,2% na cobertura hospitalar no SUS37. A redução de AIH em hospitais privados não foi compensada pelo leve incremento nas AIH de hospitais estatais38. Além da restrição de leitos, o fato da política de organização do atendimento odontológico hospitalar à PNE e da própria inserção do cirurgião-dentista no ambiente hospitalar serem recentes pode ter levado a dificuldades de disponibilidade de estrutura para o atendimento odontológico hospitalar16,19,39. Ademais, a tímida formação do profissional nesta área pode, mais uma vez, explicar a baixa cobertura28,39,40. A avaliação da atuação do cirurgião-dentista na rede hospitalar do estado de São Paulo revelou que a Odontologia Hospitalar ainda está em estágio de estruturação41, resultado semelhante ao do presente estudo. A avaliação da cobertura leva à identificação de uma potencial necessidade acumulada que deverá ser enfrentada pelo gestor.
O estudo apresenta limitações comuns aos que avaliam dados secundários em saúde e que podem gerar algumas distorções, como a qualidade e a padronização de preenchimento da AIH. A avaliação dos resultados da assistência prestada, como a satisfação de usuários e família, deveria ser pesquisada. Verifica-se, também, a necessidade de estudos analíticos sobre fatores associados à utilização ou não de atendimento odontológico sob sedação e/ou anestesia geral a pessoas com necessidades especiais que levem em consideração a distribuição regional da população. Para uma avaliação do atendimento odontológico a pessoas com necessidades especiais em toda a rede, seria necessária a avaliação nos diversos níveis de atendimento (primário, secundário e terciário). No nível secundário, essa avaliação poderia ser feita por meio de dados dos Centros de Especialidade Odontológica. No entanto, no nível primário, essa informação ainda não é disponibilizada. Abordagens avaliativas poderiam ser feitas para verificar como profissionais trabalham ‘dentro de’ e ‘entre’ cada um dos níveis do sistema35.
A escolha do período do estudo justifica-se no fato de que o mês e o ano inicial retratam um ano de efetiva vigência da Portaria/GM nº 1.032, de 05 de maio de 201012, que incluiu o referido procedimento odontológico na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, órteses e Próteses e Materiais Especiais-OPM/SUS. O mês e o ano de término foram escolhidos para garantir doze meses de avaliação, evitando perda de uma tendência de realização do procedimento em algum mês específico do ano. A coleta foi finalizada pouco antes da adesão dos municípios à Resolução SES-MG nº. 3.238, de 18 de abril de 201216, que aprovou o incentivo financeiro e estabeleceu os critérios para a implantação de serviços de assistência odontológica com uso de anestesia geral ou sedação em ambiente hospitalar no estado de Minas Gerais. Assim, os dados do presente estudo devem ser interpretados considerando essas características, podendo ser úteis como uma avaliação inicial da assistência a esse grupo.
O presente estudo apresentou, até onde se pode revisar a literatura, a primeira descrição populacional da atenção odontológica hospitalar a pessoas com necessidade especial em um estado brasileiro. Além do conhecimento do perfil demográfico e assistencial, a utilização de parâmetros referenciais para o planejamento e a programação das ações e serviços de saúde bucal é um dos elementos importantes no processo de organização da Rede de Atenção à Saúde Bucal pautada na lógica das necessidades de saúde apresentadas pela população.
O estudo revelou um perfil clássico do paciente atendido com necessidade especial atendido sob sedação e/ou anestesia geral, ou seja, trata-se, majoritariamente, de um paciente adulto, do sexo masculino com diagnóstico de transtornos mentais, comportamentais e doenças do sistema nervoso. Os resultados mostraram a existência de situações que dificultam o estabelecimento de uma rede de atenção à saúde bucal para esse grupo populacional. Diversas dificuldades em se estabelecer uma rede de atenção à saúde bucal para esse grupo foram identificadas. O atendimento odontológico hospitalar a PNE, parte da área de Odontologia Hospitalar, parece estar em fase de estruturação no estado de Minas Gerais.