versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.8 no.1 São Paulo jan/mar. 2010
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082010rb1416
O sistema imunológico é uma rede complexa de células e moléculas que estão envolvidas nas respostas imunológicas a patógenos, manutenção de autotolerância, geração de memória específica, e adaptação. Esta rede, essencialmente pleiotrópica, é controlada por locos altamente polimórficos com elevados valores adaptativos, como o complexo principal de histocompatibilidade (MHC)(1), os componentes do sistema do complemento(2), assim como genes que regulam a expressão de regiões variáveis de imunoglobulina(3), e o receptor da célula T (TCR)(4). Ademais, as principais funções imunobiológicas, como produção de anticorpos, reatividade inflamatória, tolerância, resistência a infecções e ações de toxinas são características quantitativas submetidas a controles poligênicos independentes(5–6). Assim, todos os processos evolutivos estão relacionados à diversidade, garantindo a sobrevivência da espécie, e duas principais peculiaridades genéticas desempenham um papel essencial: polimorfismo e poligenes. A tríade – diversidade, especificidade, e complexidade – representa os aspectos básicos e fundamentais de eventos imunobiológicos e garante a proteção multidirecional de uma população natural geneticamente heterogênea.
Os fenômenos imunológicos subliminares que ocorrem naturalmente e intervêm na a manutenção da neutralização e/ou equilíbrio e estados ordenados de moléculas endógenas biologicamente ativas têm de ser frequentes. Sob as variáveis e constantes pressões ambientais ao longo da vida, o organismo expressa vários alvos moleculares que poderiam ser suscetíveis a uma série de episódios autoimunes que, em função da homeostasia, são transponíveis. Entretanto, desequilíbrios nas relações entre células e moléculas com expressões aumentadas de proteínas multifuncionais, como IL-6, Hsp, e TNF podem desencadear processos crônicos, cumulativos e irreversíveis de autoimunidade que sofrem influência de uma combinação de fatores genéticos e ambientais(7).
A uveíte autoimune experimental (UAE) é uma doença específica do órgão mediada pela célula T que afeta o pólo posterior do olho e constitui um modelo bem caracterizado e valioso para o estudo de uveíte humana idiopática. A UAE pode ser induzida em primatas e roedores suscetíveis após imunização com autoantígenos retinianos, tais como a proteína interfotorreceptora ligado à retinoide (IRBP) ou o antígeno S (arrestina), ou pela transferência passiva de células T específicas para estes antígenos(8–10).
O modelo de UAE em camundongos contribuiu para o estabelecimento de parâmetros de avaliação de possíveis terapias para uveíte posterior em humanos(8). Estudos de suscetibilidade e resistência genética à UAE(11), caracterização de epítopos uveitogênicos(12) e estudos de tolerância de UAE por desvio imunológico associado à câmara anterior(13–14) ou sistemas de tolerância oral(15–16) foram bem sucedidos de acordo com esse modelo.
Deve-se destacar que o modelo experimental usado hoje em dia, disseminado pelos países desenvolvidos, limita-se a uma ou duas linhagens isogênicas geneticamente homogêneas de camundongos, em que para a característica dada, a variância fenotípica (VF) corresponde à variância ambiental (VE). Lembramos que uma linhagem inbred é obtida por intensivos cruzamentos entre irmãos durante gerações sucessivas. A partição genética nunca é evidenciada e os resultados não permitem o estabelecimento da real relevância biológica de fatores imunes e/ou adquiridas. A eventual correlação entre parâmetros imunobiológicos distintos e a resistência ou suscetibilidade à progressão autoimune é meramente fortuita.
Para que se possa introduzir um novo conceito de investigação de uveíte autoimune em camundongos e com o objetivo de determinar a influência de históricos e fatores genéticos (VG) que intervêm nas funções imunes inatas e/ou adquiridas sobre o desenvolvimento da UAE e no estabelecimento da possível associação de perfis de isotipos anti-IRBP específicos na suscetibilidade à doença, foram conduzidos estudos com linhagens geneticamente modificadas de camundongos selecionados sobre respostas altas (H) ou baixas (L) de anticorpos e respostas inflamatórias agudas máximas ou mínimas (AIRMAX e AIRMIN, respectivamente). Estas quatro linhagens geneticamente selecionadas não-inbred resultaram na fixação convergente de alelos que afetam as respostas altas ou baixas de anticorpos ou inflamatórias em relação aos compartimentos imunológicos adquiridos e/ou inatos. Esta abordagem permite o estudo da doença em populações selecionadas em função de características imunológicas importantes, mas que ainda são heterogêneas no que diz respeito ao resto de seu genoma, assemelhando-se, assim, mais a população humana(17–18).
O desenvolvimento da UAE e a produção dos anticorpos IgG1 e IgG2a anti-IRBP, dois isotipos de IgG representativos das séries Th2 e Th1 de linfócito-T helper foram investigados nestes camundongos geneticamente modificados, e provaram definitivamente que, diferente das linhagens inbred, as respostas anti-IRBP não estavam correlacionadas com a suscetibilidade à UAE. Para ambos os anticorpos antígeno-específicos IgG1 e IgG2a, a análise da variância corrobora a importância de fatores multigênicos que regulam as respostas de adaptação a IRBP. Ademais, com base nos principais alelos H-2 de histocompatibilidade das quatro linhagens de camundongos e as similaridades entre os escores de UAE, especialmente entre as linhagens AIRMAX e LIII, nenhum alelo específico de MHC parece ser crucial para o desenvolvimento da doença como é nas linhagens inbred. Deve-se salientar que os camundongos LIII são H–2z, os HIII são H–2o3; os AIRMAX são predominantemente H–2b, e em camundongos AIRMIN, H–2d e H–2k são os haplótipos prevalentes.
Portanto, o controle genético das características imunológicas durante o processo autoimune na UAE é poligênico, já que as variâncias interlineares foram sempre maiores do que as intralineares e houve distribuição contínua entre indivíduos(19).
O curso da UAE se caracteriza por vasculite e formação de granuloma na retina neural, destruição de células fotorreceptoras e cegueira(8,10) causada pela infiltração de linfócitos e células inflamatórias. A migração de linfócitos ativados para dentro do olho é facilitada pela ligação de proteínas da superfície nestas células com moléculas de adesão no endotélio. A imunização de camundongos B10.A com IRBP induz a expressão da molécula-1 intercelular de adesão (ICAM-1) no endotélio vascular do corpo ciliar e da retina, assim como a expressão do antígeno-1 em associação à função do linfócito (LFA-1) sobre células inflamatórias que entram no olho(20). A observação de que a inflamação ocular diminui significativamente após a administração de anticorpos monoclonais (mAbs) contra ICAM-1 e LFA-1(20) atribui um papel importante a estas moléculas de adesão na UAE. Além disso, um estudo in vitro confirmou que a adesão de linfócitos e a transmigração por monocamadas de células epiteliais pigmentadas da retina ativadas por IFN-γ (RPE) são inibidas por mAbs contra o antígeno-4 bem tardio (VLA-4) e a molécula-1 de adesão celular vascular (VCAM-1) em um modelo de uveíte em ratos(21). A expressão de VCAM-1 em vasos sanguíneos da retina durante o desenvolvimento da UAE também parece estar envolvida na migração de linfócitos para dentro do olho(21–22).
Em 2005, nosso grupo demonstrou que o tratamento com um inibidor do peptídeo ativo α4 (α4-api), que tem como alvo a integrina α4 da molécula de adesão VLA-4, apresentou um efeito de melhora significativa sobre a UAE(23). Estes resultados indicam que as α4 integrinas são de fato essenciais para o recrutamento de linfócitos para dentro do olho e que o bloqueio das interações integrina-ligante podem ser eficazes na prevenção da entrada de células uveitogênicas.
Outros achados mostraram que a administração de um anticorpo anti-LFA-1α suprimia a UAE induzida por IRBP em camundongos C57Bl/6 pelo bloqueio da ativação das células T uveitogênicas e o tráfego de células T autorreativas ativadas para dentro do sítio inflamatório(24).
A patologia clínica ocular também pode ser prevenida pela administração do recombinante Galectina-1 (rGal-1) seja no início ou em fase tardia do curso clínico de UAE. A Galectina-1 é um membro de uma família de proteínas altamente conservadas(25) e é expresso em locais de ativação de células T e privilégio imunológico(26–27), tendo o potencial de regular respostas inflamatórias(28–34). O tratamento com rGal-1 em UAE induzida por IRBP em camundongos B10.RIII resultou em uma melhora significativa da inflamação ocular. Nesses animais, a hipersensibilidade tardia e proliferação celular diminuíram e os níveis de citocinas-T regulatórias, TGF-β e IL-10, aumentaram pelo tratamento com rGal-1; e os níveis de IFN-γ diminuíram (Figura 1). Foi observado que o fator de transcrição GATA-3, envolvido na transcrição gênica das citocinas Th2, estava aumentado(35). Estes resultados mostram que a manipulação do sistema imunológico para regulação positiva (upregulate) de citocina Th2 e citocina T-regulatória podem prevenir inflamação e o desenvolvimento de UAE, assim como outros trabalhos já haviam demonstrado(36–39). Outro estudo descreveu que os anticorpos antirretinianos Gal-1 estão presentes no soro de pacientes com uveíte, o que sugere que estes autoanticorpos reconhecem as estruturas retinianas e desempenham um papel na progressão da doença ocular(40).
Fonte: Toscano MA et al.(35)
Figura 1 O tratamento com rGal-1 em fases iniciais ou tardias de UAE redireciona a resposta autoimune a perfis regulatórios de citocinas Th2 e Th3 não-patogênicas. (A-E) Drenagem de células de linfonodos de camundongos tratados com rGal-1 ou camundongos-controle coletados no Dia 21 e estimuladas in vitro com 30 µg/ml de IRBP. Após 48 horas, os níveis de IFN-γ (A), IL-5 (B), IL-10 (C), TGF-β (D) e IL-12 (E) foram determinados nos sobrenadantes de culturas por ELISA. Os resultados são expressos em média pg/ml ± desvio padrão. *p < 0,05; **p < 0,01; ***p < 0,0001.
Recentemente, vários relatos demonstraram claramente que algumas moléculas, como LX211 (voclosporina)(41), Fingolimod (FTY720)(42), anti-IL-17(43), hormônio estimulante de alfa-melanócitos (alfa-MSH)(44), foram eficazes na supressão de uveíte autoimune.
Nesse contexto, o nosso grupo estudou a eficiência da proteína do veneno da cobra Viperidae Lachesis muta (LMVp) na supressão de UAE e os mecanismos envolvidos na regulação da doença. Inicialmente, foi descrito que LMVp fortemente suprimia a produção de anticorpos a eritrócitos de ovelhas(45). Em uma série de experimentos, foi possível demonstrar in vivo o efeito supressor de LMVp administrado antes da imunização.
Resultados preliminares em camundongos isogênicos B10.RIII demonstraram, de maneira marcante, que o tratamento com LMVp 72 horas antes da indução de UAE abolia o desenvolvimento de uveíte nesses animais; as estruturas retinianas foram mantidas e houve substancial redução de infiltração de leucócitos (Figura 2). Entretanto, o tratamento com LMVp não foi capaz de inibir a ativação/proliferação específica por IRBP das células T. Observou-se uma diminuição na população de células B (B220+) nos animais tratados com LMVp e a supressão dos anticorpos específicos anti-IRBP, IgG1 e IgG2a. Tais resultados sugerem que a modulação da diferenciação das células B pode inibir a doença mediada por Th1, revelando a importante participação da resposta humoral na UAE(46).
Fonte: Commodaro et al.(46)
Figura 2 LMVp suprime os sinais clínicos de UAE ativamente induzida. Camundongos B10.RIII foram imunizados com 100 µg de IRBP no dia 0 e tratados com 100 µg i.p. de LMVp 72 horas antes da imunização. Os olhos foram coletados para exame histopatológico 21 dias após a imunização. Os escores de UAE foram determinados em uma escala de 0 a 4, segundo a extensão da inflamação e do dano aos tecidos
Nos resultados mencionados acima, evidenciou-se o impacto significativo de fatores ambientais prevalentes durante este processo de autoimunidade. Como a hipótese recentemente levantada, a história imunológica de um indivíduo é singular, irreversível e cumulativa, isto é, o contínuo agravamento de um processo autoimune resulta na incapacidade de regeneração tissular pelos sistemas afetados(7). Nesse contexto, o uso de inibidores α4, rGal-1 e LMVp pode servir como uma abordagem terapêutica alternativa no controle de doenças oculares autoimunes.