versão impressa ISSN 2595-0118versão On-line ISSN 2595-3192
BrJP vol.2 no.1 São Paulo jan./mar. 2019
http://dx.doi.org/10.5935/2595-0118.20190008
A dor crônica (DC) é definida como "uma experiência estressante associada à lesão tecidual real ou potencial, com componentes sensoriais, emocionais, cognitivos e sociais"1 que perdura por mais de seis meses, com frequência diária ou quase diária. No Brasil, a DC é considerada um problema de saúde pública apresentando alta incidência e prevalência2. A DC afeta mais de 40% da população no Brasil3,4.
O caráter multifatorial da DC prevê a necessidade de novas modalidades preventivas e terapêuticas para o seu controle. Desse modo, o uso de abordagens multidimensionais que envolvem aspectos biológicos, psicológicos e sociais, assim como as atividades de educação em saúde que abordam esses aspectos biopsicossociais, podem resultar em benefícios imediatos e tardios. Esse efeito se mostrou superior àqueles obtidos através de intervenções convencionais, como uso de fármacos e fisioterapia5,6.
Tornar as pessoas conscientes quanto ao significado da dor, como ela se comporta, suas causas mais comuns, fatores de risco e como prevenir ou tratá-la de forma efetiva, podem contribuir para controlar os sintomas e otimizar o uso dos serviços de saúde6-8.
Diferentes métodos para a realização de processos educativos na área de saúde, que envolvem desde a distribuição de cartilhas, estudos de construção pessoal, filmes, atividades em grupo e palestras, têm sido adotados6,9-11. Entretanto, observa-se escassez na literatura sobre abordagens que utilizem materiais educativos escritos, como cartilhas envolvendo orientações para o auxílio ao tratamento de pacientes com DC. Através de cartilhas, pacientes e familiares/cuidadores podem adquirir conhecimento sobre situações desencadeantes da dor e o que fazer para ajudar a minimizá-la12,13.
Pensando nisso, Mendez et al.14, desenvolveram uma cartilha para educação em DC, denominada "EducaDor", que ultrapassa o modelo puramente biomédico de sua abordagem. O seu conteúdo envolve a dor desde seu conceito até seu o processamento, sendo abordada de forma simples e objetiva, e propondo estratégias de enfrentamento. Visando à utilização da cartilha de forma ampliada na prática clínica, este estudo teve como objetivo validar uma cartilha socioeducativa sobre DC por pacientes e profissionais de saúde.
Trata-se de um estudo de validação de uma tecnologia leve em saúde, realizado no Ambulatório de Dor do Hospital Universitário Professor Edgar Santos (HUPES) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período de junho de 2015 a novembro de 2016.
Para a validação da cartilha foram formulados e aplicados questionários semiestruturados em uma amostra voluntária de pacientes com DC e profissionais de saúde com experiência na assistência a esse perfil de pacientes. Dentre os profissionais da equipe do referido ambulatório, foram selecionados seis juízes, conforme sugerido por Joventino et al.15, que atenderam aos critérios de elegibilidade. A validação pelo público-alvo foi validada com 10 pacientes por profissional de saúde, totalizando 60 pacientes.
Foram incluídos pacientes cadastrados no Ambulatório de Dor do HUPES/UFBA, com diagnóstico de DC, alfabetizados, com faixa etária de 18 a 60 anos e excluídos os que não compreenderam o instrumento de avaliação. Foram incluídos profissionais de saúde com experiência mínima de 5 anos na assistência ao paciente com DC.
Este trabalho consistiu de três etapas: construção de questionários para validação da cartilha por juízes, entrevista, e validação de conteúdo.
A construção dos questionários foi realizada com base nos critérios de avaliação para validação de material educativo Suitability Assessment of Materials (SAM)16. Esse método consiste na avaliação do conteúdo escrito em termos de compreensão, descrita como a dificuldade relativa em entender um significado. Para isso, as questões aplicadas têm como opção de resposta o grau de entendimento, sendo essas repostas graduadas em escala likert de "1" a "4", correspondendo a "não", "pouco", "bastante" e "totalmente", respectivamente.
A entrevista foi realizada por quatro membros do grupo de pesquisa. Inicialmente foi apresentado ao voluntário o objetivo do estudo e uma breve introdução sobre o conteúdo da cartilha. Ao concordar em participar, e atendendo aos critérios de inclusão e exclusão, o voluntário assinava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e lhe era disponibilizada uma cópia da cartilha para leitura. A leitura foi realizada em ambiente de sala de espera e o tempo disponível para realizá-la era de acordo com a necessidade individual de cada juiz. Logo em seguida foi realizada a aplicação do questionário de avaliação. O sigilo das respostas era garantido pelos avaliadores através da não identificação dos juízes, e as respostas eram arquivadas para posterior análise.
Para a validação da cartilha educativa em dor foi utilizado o Índice de Validade de Conteúdo por itens (I-IVC)17,18, considerando um ponto de corte para aprovação maior ou igual a 78% quando houver sete ou mais juízes e de 86% para seis juízes19. O I-IVC avalia a proporção de avaliadores que julgaram determinados aspectos da cartilha como satisfatório, sendo esses avaliados através do questionário estruturado. Os itens dos questionários que eram pontuados com 1 e 2 eram classificados como respostas insatisfatórias e aqueles com 3 ou 4 eram classificados como satisfatórias. O escore final foi calculado a partir do número de avaliadores que julgaram cada item como satisfatório, dividido pelo número de avaliadores:
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da UFBA de 2015 sob o protocolo 44318415.7.0000.5662. Foram expressamente cumpridas todas as recomendações da resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde que estão de acordo com a Declaração de Helsinque.
Para o processo de validação da cartilha foram entrevistados 60 pacientes com DC e seis profissionais de saúde com experiência na assistência a essa população. Na tabela 1 está demonstrado o nível de escolaridade e sexo dos juízes entrevistados. A maioria dos pacientes entrevistados foi do sexo feminino (83,3%) com ensino fundamental (38,3%) e médio completos (38,3%). Quanto aos profissionais de saúde, 83,3% possuía ensino superior completo (Tabela 1), enquanto que em relação aos pacientes, apenas 6 (10,0%) tinham esse nível de escolaridade.
Tabela 1 Escolaridade dos juízes expressa em frequência absoluta e relativa
Variáveis | Pacientes (n e %) | Profissionais de saúde (n e %) |
---|---|---|
Escolaridade | ||
Fundamental incompleto | 4 (6,6) | - |
Fundamental completo | 23 (38,3) | - |
Médio incompleto | 4 (6,6) | - |
Médio completo | 23 (38,3) | - |
Superior completo | 6 (10) | 5 (83,3) |
Técnico completo | - | 1 (16,6) |
Sexo | ||
Masculino | 10 (16,6) | 2 (33,3) |
Feminino | 50 (83,3) | 4 (66,6) |
Total | 60 (100) | 6 (100) |
Foram elaborados questionários estruturados para a validação da cartilha educativa por juízes. Um questionário era voltado para pacientes e outro para profissionais de saúde.
O questionário para pacientes (Figura 1A) foi composto pelos domínios conteúdo, apresentação da literatura, ilustração, legibilidade e impressão, e avaliação geral, totalizando 5 domínios. Enquanto que o questionário para profissionais (Figura 1B) foi composto por 6 domínios, sendo os já citados e acrescido o de acurácia científica. Os questionários de pacientes e profissionais consistiram de 22 e 24 questões, respectivamente. Ao final das questões de cada domínio era disponibilizado um espaço opcional para comentários e/ou sugestões de ajustes pelos juízes.
Figura 1A Questionário para pacientes
Questionário para validação da cartilha da dor crônica EducaDor - Questionário Pacientes Nível de Escolaridade: ( ) Ensino fundamental ( ) Ensino médio ( ) Ensino superior 1 - Não 2 - Pouco 3 - Bastante 4 - Totalmente Não: de modo nenhum; negação Pouco: não muito; insuficiente Bastante: em quantidade suficiente; muito Totalmente: completamente Conteúdo 1. O objetivo dessa cartilha está claro para você? 1 2 3 4 2. Você gostou das orientações apresentadas na cartilha? 1 2 3 4 3. Você gostou da ordem em que os textos são apresentados? 1 2 3 4 4. Você acha que falta alguma informação? 1 2 3 4 5. Todas as informações apresentadas são necessárias? 1 2 3 4 Espaço para comentários / sugestões |
Figura 1B Questionário para profissionais de saúde
Questionário para validação da cartilha da dor crônica EducaDor - Questionário Profissionais Nível de Escolaridade: ( ) Ensino fundamental ( ) Ensino médio ( ) Ensino superior 1 - Não 2 - Pouco 3 - Bastante 4 - Totalmente Legenda: Não: de modo nenhum; negação Pouco: não muito; insuficiente Bastante: em quantidade suficiente; muito Totalmente: completamente Acurácia Científica 1. O conteúdo da cartilha está de acordo com o conhecimento atual? 1 2 3 4 2. As recomendações apresentadas na cartilha estão corretamente abordadas? 1 2 3 4 Espaço para comentários / sugestões Conteúdo 1. O objetivo da cartilha está claro? 1 2 3 4 2. As recomendações apresentadas são satisfatórias? 1 2 3 4 3. O conteúdo da cartilha segue uma linha de raciocínio lógico? 1 2 3 4 |
O escore final dos questionários se baseou no I-IVC. Foram contabilizados o total de respostas que categorizavam os itens avaliados da cartilha como satisfatórios. A análise foi realizada para cada domínio do questionário e ao final o valor do I-IVC total foi calculado, obtendo-se o valor de 88 e 92% para pacientes e profissionais de saúde, respectivamente (Tabela 2).
Tabela 2 Valores do Índice de Validade de Conteúdo por itens dos avaliadores por domínio
Domínios | Pacientes(%) | Profissionais de Saúde (%) |
---|---|---|
1. Acurácia científica | NA | 100 |
2. Conteúdo | 87 | 92 |
3. Apresentação da literatura | 86 | 90 |
4. Ilustração | 84 | 88 |
5. Legibilidade e Impressão | 94 | 94 |
6. Avaliação Geral | 88 | 100 |
I-IVC total | 88 | 92 |
NA = não se aplica
Este estudo buscou validar um material socioeducativo sobre DC no formato de uma cartilha que havia sido desenvolvida em estudo prévio14, a fim de verificar se ela poderia ser aplicada como recurso de educação em saúde, na perspectiva dos pacientes e de profissionais especializados. Os escores finais da avaliação atingiram nível de excelência na concordância dos juízes e indicaram que a cartilha EducaDor é válida e pode ser utilizada como recurso terapêutico.
Diversos fatores têm sido apontados como preditores para DC, dentre eles, ser do sexo feminino e ter baixo grau de escolaridade20,21. As diferenças na percepção dolorosa entre sexos são bastante evidenciadas na literatura22-25. Estudos experimentais com animais de laboratório26,27 e humanos28 sustentam a hipótese de que as mulheres possuem maior percepção à dor, por encontrarem-se mais expostas a determinadas situações como dismenorreia e parto. O grau de instrução inferior a 11 anos tem sido apontado como o maior fator de risco para essa condição29. As características sociodemográficas da amostra de pacientes entrevistados foram compatíveis com o perfil citado nesses estudos prévios. Justamente por esse perfil, o uso de materiais socioeducativos pode ser fundamental para o letramento em saúde, o que pode ter impacto no alívio da dor30.
Os profissionais entrevistados atribuíram 100% de acurácia científica ao material avaliado. Esse escore inspira confiança para a adoção imediata do material por outros profissionais na prática clínica. Profissionais cuidadosos têm incertezas frente ao reforço de crenças errôneas comumente encontradas em sites e materiais instrutivos não embasados em ciência. Devido à característica multifatorial da DC e às informações disponíveis na internet, o enfrentamento do problema tem sido um desafio para os profissionais de saúde9. O conhecimento sobre a dor com embasamento científico surge como uma estratégia coadjuvante ao tratamento de pessoas com DC. Programas de educação em dor utilizam abordagens que permitem transmitir informações sobre etiologia, nosologia e fisiopatologia da dor. Esse tipo de abordagem possibilita instrumentalizar pacientes para maior consciência dos diferentes fatores causais e agravantes. O simples conhecimento atua nas representações sociais e nas experiências da doença, facilitando sua recuperação31.
A facilidade de leitura e a impressão foram os itens mais bem avaliados, tanto por profissionais como por pacientes. Esse resultado demonstra que é necessário um cuidado com o material impresso para que ele tenha durabilidade suficiente para ser consultado diversas vezes e cumpra sua finalidade8. Uma revisão sistemática32 apontou que programas socioeducativos têm influência na melhora da dor, do movimento, além de promover diminuição de incapacidades e de utilização de serviços de saúde. O reconhecimento da qualidade da cartilha "EducaDor" pode indicar que essa ferramenta pode ser um auxílio no tratamento da DC no Brasil, devido aos aspectos biopsicossociais envolvidos14.
A elaboração de material educativo impresso é um meio de comunicação entre profissional e paciente que requer, além da clara identificação do público alvo, uma forma direta e intuitiva para transmitir o conteúdo abordado. Para despertar e manter o interesse do leitor devem ser considerados a linguagem, o layout e a ilustração. É a ilustração, no entanto, que vai, em grande parte, garantir a legibilidade e a compreensão de um texto33. No domínio do questionário intitulado como "conteúdo", pacientes e profissionais foram indagados sobre a clareza do objetivo da cartilha, à compreensão do texto, ordem dos textos e necessidade de informações. Cerca de 87% dos pacientes e 92% profissionais julgaram o conteúdo como satisfatório. No entanto, a ilustração revelou o menor escore na visão dos pacientes (84%). Ainda que seja um nível bastante satisfatório, edições futuras devem considerar a possibilidade de aperfeiçoamento das ilustrações. Limitar o número de ilustrações, trazê-las de forma simples e representativa, enfatizando pontos importantes na descrição do texto, elencando eventos da vida real, são estratégias que facilitam na transmissão do conteúdo ao leitor. Sendo assim, pessoas com baixa escolaridade podem se beneficiar por meio desses materiais e tipos de linguagem33.
A "EducaDor" buscou abranger de forma clara e detalhada o conceito de dor, abordando a dor aguda e crônica, suas características e diferenças, processamento, formas de enfrentamento e crenças errôneas que pacientes e cuidadores têm acerca da dor. Até o momento não foram encontradas cartilhas educativas validadas para pacientes com DC no Brasil. Entretanto, diversos materiais educativos estão disponíveis em sites para essa população. Além de abordar conceitos, esses materiais também discorrem sobre a qualidade do sono, ansiedade e tratamentos farmacológicos ou não. Evidências crescentes mostram que conhecer a neurofisiologia da dor faz com que o paciente com DC diminua a incapacidade e a catastrofização, aumentando os movimentos físicos e a adesão a terapêuticas variadas34. Apesar da "Educador" não abordar os tratamentos para a DC, os assuntos são discorridos a partir de histórias, dúvidas e medos relatados por essa população. O texto apresenta relatos de experiências de sujeitos que convivem com a dor, fazendo com que o leitor se identifique com o conteúdo exposto.
Como limitação, pode-se citar a realização dessa validação em apenas um centro de referência em dor, situado em Salvador, Bahia, que apresenta características socioculturais específicas. Além disso, o reduzido número de profissionais de saúde entrevistados pode não expressar o que especialistas de outras regiões considerariam como relevante. Sugere-se que a cartilha EducaDor seja validada em outros centros de dor de outras regiões brasileiras e que o efeito sobre a intensidade e outros fenômenos relacionados à DC sejam testados em um ensaio clínico randomizado.
A cartilha EducaDor foi considerada válida pela confiabilidade reconhecida por pacientes que sofrem com dor crônica e por profissionais especializados no seu tratamento, quanto ao seu conteúdo, incluindo a linguagem adotada, os temas abordados e as ilustrações.