versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.2 Rio de Janeiro fev. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018232.11492016
Embora o estudo sistemático do lazer seja contemporâneo, as preocupações com esta dimensão da vida humana iniciam-se, de forma mais evidente, a partir do surgimento da chamada sociedade industrial. Neste contexto, a valorização do lazer surge como uma forma de resgate e respeito ao ser humano, o qual começou a ser exposto a condições de trabalho degradantes1. O lazer, portanto, trata-se de um fenômeno complexo e interdisciplinar, que necessita de diferentes abordagens para a sua compreensão2.
No Brasil, a produção do conhecimento sobre o lazer vem ganhando novas perspectivas. Inicialmente, com discurso pautado nas ciências humanas, os estudos relacionavam-se ao campo da sociologia, educação e política. Nos últimos anos, vem se destacando a produção em outras áreas do conhecimento como a Educação Física, Psicologia e Saúde Coletiva3. Desta forma, é recorrente nos estudos com esta temática a relação com a saúde, à organização do espaço urbano para as práticas, à motivação das pessoas para a adesão às vivências do contexto do lazer, o gerenciamento do tempo livre, às barreiras para o envolvimento nas atividades, dentre outros4.
O conceito de lazer pode ser entendido sob duas vertentes1,5. A primeira diz respeito à dualidade lazer-trabalho. Assim, o lazer é definido como um conjunto de práticas nas quais ocorre o envolvimento de forma livre e desinteressada após os encargos sociais como o trabalho e a família5. Na segunda, sob o olhar da psicologia e do comportamento, o lazer é entendido como necessidade humana e cultural vivenciada no tempo disponível1. Tal necessidade pode ser satisfeita de múltiplas formas, de acordo com os valores e interesses de cada indivíduo ou grupos, em um determinado contexto histórico, social e cultural1. Neste sentido, o lazer não é tratado de forma afastada do trabalho, sendo assim, com a relação entre os dois, ambos se ressignificam6. Nesta linha de interpretação, diferentes conteúdos são elencados, no sentido de melhor contextualizar as diversas atividades no lazer como os propostos por Dumazedier7: artístico, manual, físico-esportivo, intelectual e social; Camargo8: turístico; e Schwartz9: virtual. Além desses, importantes pesquisadores da área acrescentam a esta lista o item contemplação/ócio, considerando as atividades de descanso5,6 um momento importante no tempo dedicado ao lazer.
Embora o lazer esteja relacionado a diversas dimensões do desenvolvimento da sociedade, sua importância para a saúde é bastante evidente10-13. Apesar do exposto, percebe-se, a partir da literatura, uma valorização significativa do conteúdo esportivo do lazer e uma desconsideração dos demais conteúdos. Além disso, há escassez de instrumentos validados e que considerem a amplitude dos conteúdos do lazer, bem como, do volume de envolvimento/investimento pessoal nas atividades no lazer, sobretudo quando se trata de indivíduos adultos14-17.
Alguns instrumentos foram desenvolvidos para avaliação do lazer. No entanto, a maioria destas propostas é direcionada para crianças14,15 e adolescentes16,17, e outras, são apresentadas, em idioma estrangeiro. O que representa importante desafio a ser vencido. Diante disso, torna-se relevante o desenvolvimento de um instrumento capaz de abranger as diversas dimensões relacionadas ao lazer, tomando como foco indivíduos adultos, que seja elaborado em língua portuguesa, que possua clareza e facilidade de aplicação.
Considerando o exposto, este estudo teve como objetivo propor a Escala de Práticas no Lazer (EPL) e analisar a validade de construto da EPL, no sentido de promover a identificação de preferências e envolvimento em práticas vivenciadas nos diferentes contextos do lazer em adultos.
Foram realizadas três etapas para análise da validade do instrumento, compreendendo: a) Análise de conteúdo (nível de clareza da linguagem, pertinência prática analisada por especialistas da área); b) Reprodutibilidade e c) Consistência interna (Figura 1).
Participaram do estudo 936 indivíduos distribuídos em dois grupos: O grupo “A” contou com a participação de 51 adultos participantes de cursos de atualização em uma universidade da Grande Florianópolis, oriundos de diversas profissões como professores, profissionais da área da saúde e do comércio. Com estes indivíduos foi verificada a reprodutibilidade da escala. O grupo “B” foi composto por 885 trabalhadores da indústria da grande Florianópolis, os quais exercem diferentes funções. A partir da resposta dos voluntários do grupo B, verificou-se a consistência interna do instrumento. Em ambos os grupos os sujeitos apresentaram diferentes níveis de escolaridade e estratos econômicos.
Para o desenvolvimento deste instrumento, realizou-se uma revisão nos referenciais teóricos do lazer1-3,6-9,18,19. Com base nesta pesquisa bibliográfica realizada, foram desenvolvidos os itens do instrumento, considerando uma sistematização a partir do aprofundamento teórico e conceitual. Assim, os diferentes conteúdos culturais foram elencados no sentido de melhor contextualizar as diversas atividades no lazer.
O conteúdo artístico abrange as manifestações artísticas que lidam com o imaginário, as emoções e sentimentos. No intelectual tem-se o contato com o real, o racional e com as informações. No campo físico-esportivo há predomínio das modalidades esportivas e atividades físicas. As atividades manuais são caracterizadas pela manipulação e transformação de objetos e materiais. O que tange às relações no convívio social, faz parte do conteúdo social6,7. No turístico, surge o interesse por conhecer novos lugares e culturas por meio de viagens8. A utilização dos recursos tecnológicos, como jogos, internet e redes sociais insere-se no virtual9. Por fim, destaca-se a contemplação/ócio que está associada ao tempo destinado à apreciação do belo e/ou em repouso5,6.
Esta síntese foi organizada de maneira a garantir a visualização do construto em questão, e, ainda, garantir que os itens do instrumento fossem representados adequadamente, considerando as preferências e o envolvimento com as práticas no lazer sem, no entanto, recorrer a uma listagem de atividades específicas. Além disso, buscou-se superar o formato de escala Likert apresentado em outros instrumentos, propondo-se uma escala analógica visual considerando mais opções de resposta, bem como, respeitando a percepção individual de muito ou pouco envolvimento em determinadas práticas.
Vale destacar que a escala de “sempre” a “nunca”, abordada na EPL, é um critério voluntário e subjetivo de pessoa para pessoa, e de atividade para atividade. Assim, “sempre” ir à academia é diferente do “sempre” ir ao teatro. Por isso, optou-se pela utilização de uma escala de “zero” a “10”, de forma a facilitar o engajamento de cada indivíduo dentro dos contextos analisados.
Também foi meta desta construção, propor um instrumento de fácil entendimento e aplicação e que possa ser respondido por pessoas com diferentes graus de escolaridade considerando os conteúdos mais amplos do lazer e permitindo a complementação dos exemplos em cada conteúdo. Acentua-se, ainda, a necessidade de um instrumento adequado para aplicação em estudos epidemiológicos, os quais requerem escalas auto- aplicáveis e com adequada psicometria.
Uma versão preliminar da EPL foi enviada para pesquisadores doutores, especialistas das áreas de estudo do lazer, que julgaram as questões quanto à clareza da linguagem e pertinência prática a partir dos critérios de validade de conteúdo (CVC) proposto por Hernandez-Nieto20.
Nesta análise semântica do instrumento, foram propostos oito itens (conteúdos do lazer) com uma média de seis exemplos de atividades para cada um. Assim, calculou-se o coeficiente de validade de conteúdo para a clareza da linguagem (CVCcl) e o coeficiente para a pertinência prática (CVCpp) de cada conteúdo, além do coeficiente de validade de conteúdo de clareza da linguagem e pertinência prática geral (CVCt)20. Seis juízes (n=6) utilizaram uma escala de um (1) a cinco (5) pontos, para avaliação destes critérios (CVCcl e CVCpp) nos oito itens, partindo de “pouquíssima pertinência/clareza” (resposta 1) até “muitíssima pertinência/clareza” (resposta 5). Foi adotado o ponto de corte para determinar níveis satisfatórios de CVCcl e CVCpp de 0,70 para cada um dos itens, bem como para o CVCt do instrumento no geral20.
Além disso, foram elaboradas quatro questões considerando sua apresentação, objetivos do instrumento e adequação à população brasileira de 18 a 60 anos. Para cada questão os especialistas tinham como resposta “sim”, “em partes” e “não”.
A reprodutibilidade da EPL foi analisada por meio do índice de correlação intraclasse (ICC). A coleta de dados para avaliação da reprodutibilidade foi conduzida em duas etapas: a) Aplicação da EPL; e b) Reaplicação (teste-reteste), com intervalo de sete e 10 dias entre as duas avaliações. Esta fase, contou com a participação do grupo A. Os índices de correlação intraclasse acima de 0,50 são considerados aceitáveis pela literatura21. Valores entre 0,50 a 0,69 são aceitáveis, de 0,70 a 0,79 são considerados bons, de 0,80 a 0,89 ótimos e acima de 0,9 são considerados excelentes21.
Para a análise da consistência interna do instrumento, participaram do estudo 885 trabalhadores da indústria da região da Grande Florianópolis-SC (grupo B). Nesta fase, avaliou-se o quanto todos os itens do instrumento convergem a um mesmo construto. Os valores relativos à consistência interna da EPL foram estimados por meio do coeficiente Alpha de Cronbach.
A análise semântica do conteúdo foi realizada pelo coeficiente de validade de conteúdo (CVC) proposto por Hernandez-Nieto20. Já a reprodutibilidade pelo coeficiente de correlação intraclasse (CCI) com um intervalo de sete a 10 dias para observar a concordância entre as medidas, e, a consistência interna foi analisada por meio do Alpha de Cronbach. Foram considerados adequados os valores de CVC ≥ 0,7020, reprodutibilidade ≥ 0,5122 e consistência interna ≥ 0,7023. As análises foram realizadas no software The Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 20.0. Adotou-se nível de significância de 5%.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina. Todos os participantes mencionados foram convidados a participar do estudo de maneira voluntária e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Na Tabela 1 foram apresentadas as características sociodemográficas dos participantes das amostras “A” e “B”. Com o grupo “A” foi avaliada a reprodutibilidade da EPL em teste-reteste em um intervalo de 7 a 10 dias entre as avaliações. Esta amostra foi composta por 51 indivíduos com média de idade de 28,9 anos. Observa-se neste grupo maior predomínio de homens com ensino médio completo. Já no grupo “B”, foi avaliada a consistência interna do instrumento. Participaram neste processo 885 trabalhadores industriários com média de idade de 31,1 anos. Assim como no grupo “A” a maioria dos participantes possuía o ensino médio completo, no entanto, nesta fase de avaliação da EPL houve maior representatividade entre as mulheres.
Tabela 1 Caracterizaçao da amostra nos estágios de avaliaçao da reprodutibilidade e consistência interna.
Variáveis | Índices | ||
---|---|---|---|
Reprodutibilidade Grupo A | Consistência interna Grupo B | ||
Participantes, n | 51 | 885 | |
Idade, anos | 28,9(9,2) | 31,1(8,5) | |
Sexo, % | |||
Feminino | 31,4 | 58,2 | |
Masculino | 68,6 | 41,8 | |
Escolaridade, % | |||
Ensino fundamental | - | 9,8 | |
Ensino médio | 78,4 | 57,7 | |
Superior | 15,7 | 22,0 | |
Pós-graduaçao | 5,9 | 10,4 |
n: frequência absoluta; %: frequência relativa.
Na Tabela 2 foram apresentadas as médias da avaliação dos especialistas quanto ao conteúdo do construto. Nesta avaliação cada conteúdo do instrumento foi avaliado em relação à clareza da linguagem e pertinência prática (CVC). Os especialistas da área realizaram a avaliação julgando cada item em uma escala Likert de cinco pontos. A avaliação do instrumento foi considerada positiva pelos pares da área, chegando próximo à pontuação máxima em todos os itens.
Tabela 2 Análise do coeficiente de validade de conteúdo realizada por especialistas em lazer.
Conteúdos do lazer | Validade de conteúdo | |||
---|---|---|---|---|
Clareza de linguagem | Pertinência prática | |||
Mcl | CVCcl | Mpp | CVCpp | |
Artísticos | 4,33(0,82) | 0,867 | 4,66(0,51) | 0,933 |
Manuais | 4,40(0,90) | 0,733 | 4,40(1,32) | 0,733 |
Físico/esportivos | 4,80(0,44) | 0,800 | 4,80(0,45) | 0,800 |
Intelectuais | 4,80(0,44) | 0,800 | 4,83(0,41) | 0,967 |
Sociais | 4,83(0,40) | 0,967 | 4,83(0,41) | 0,967 |
Turísticos | 5,00(0,00) | 1,0 | 5,00(0,00) | 0,833 |
Virtuais | 4,83(0,41) | 0,967 | 4,83(0,41) | 0,967 |
Contemplação/ócio | 4,66(0,51) | 0,933 | 4,16(1,32) | 0,833 |
CVCt | - | 0,883 | - | 0,879 |
Mcl - média da avaliaçao dos especialistas quanto à clareza de linguagem; Mpp - média da avaliação dos especialistas quanto à pertinência prática; CVCcl - coeficiente de validaçao de conteúdo de clareza e linguagem; CVCpp - coeficiente de validação de conteúdo de pertinência prática; CVCt - Coeficiente de validaçao de conteúdo total.
A partir da média da avaliação quanto à clareza da linguagem e pertinência prática, calculou- se o coeficiente de validade de conteúdo (CVC). Com relação à clareza da linguagem, observou-se que o instrumento apresentou CVCt = 0,883. Na pertinência prática, o coeficiente foi de 0,879.
As frequências relativas das respostas gerais do instrumento foram expressas no Tabela 3. A questão que apresentou unanimidade de respostas diz respeito aos conteúdos do lazer contemplados no instrumento. A questão que trata dos exemplos das atividades apresentou maior percentual da resposta “em partes”. A única questão que apresentou “não” como resposta fazia referência ao cabeçalho do instrumento. Vale destacar que todas as sugestões dos especialistas que assinalaram “em partes” ou “não” foram reavaliadas e devidamente adequadas ao instrumento.
Tabela 3 Avaliação dos especialistas quanto a Escala de Práticas no Lazer (EPL).
Questão | Sim | Em partes | Não |
---|---|---|---|
1. Na sua percepção o instrumento apresentado se constitui em indicativo válido em nossa língua e cultura para a investigação dos Conteúdos do lazer de adultos com idade de 18 a 60 anos? | 83,3% | 16,7% | - |
2. Na sua percepção os conteúdos do lazer estão claros e pertinentes com o objetivo da pesquisa? | 100% | - | - |
3. Na sua percepção os exemplos de atividades no lazer estão claros e representam os conteúdos abordados? | 33,3% | 66,7% | - |
4. Na sua percepção o cabeçalho proposto para o questionário está adequado? | 83,3% | - | 16,7% |
Os resultados da análise de reprodutibilidade e consistência interna foram apresentados na Tabela 4. Os coeficientes de variação (teste-reteste) indicaram valores de reprodutibilidade aceitáveis, não havendo diferenças significativas entre a primeira e segunda avaliação em todos os itens. Além disso, esta avaliação do instrumento indicou que a escala possui fácil entendimento, nao existindo dúvidas, por parte da amostra, com relação ao seu preenchimento. Nos resultados da análise da consistência interna, o Alpha de Cronbach apresentou valor de 0,72.
Tabela 4 Análise do coeficiente de correlação intraclasse (CCI).
Conteúdos do lazer | Coeficiente de correlação intraclasse (CCI) | |||
---|---|---|---|---|
R | Classificação | IC95% | p-valor** | |
Artísticos | 0,78 | Bom | 0,64-0,87 | < 0,001 |
Manuais | 0,77 | Bom | 0,63-0,86 | < 0,001 |
Físico/esportivos | 0,95 | Excelente | 0,92-0,97 | < 0,001 |
Intelectuais | 0,72 | Bom | 0,55-0,83 | < 0,001 |
Sociais | 0,89 | Ótimo | 0,82-0,94 | < 0,001 |
Turísticas | 0,70 | Bom | 0,51-0,81 | < 0,001 |
Virtuais | 0,84 | Ótimo | 0,74-0,91 | < 0,001 |
Contemplação/ócio | 0,57 | Aceitável | 0,35-0,73 | < 0,001 |
*p-valor do Alpha de Cronbach
**p-valor do teste de correlação intraclasse.
O estudo sobre a temática do lazer no Brasil vem crescendo de maneira exponencial, sobretudo com a criação de grupos de pesquisa especializados nesta área24. Contudo, as práticas de atividades físicas no lazer ganham maior evidência e limitam a magnitude do lazer, merecendo assim, novos redimensionamentos2. Além disso, é indispensável compreender o lazer não simplesmente sob o olhar da diversão, de práticas consumistas e de entretenimento, mas sim, deve-se atribuí-lo a um direito social estabelecido na constituição federal, como a educação, a saúde, o trabalho e a moradia6. Assim, a avaliação consensual dos especialistas acerca dos objetivos e conteúdos do instrumento justifica a relevância desta pesquisa, no sentido de amplificar esse fenômeno cultural e o entendimento desta emergente demanda para a área.
O distanciamento das pesquisas do campo do lazer com a área da psicometria pode ser oriundo de um processo inicial de legitimação do lazer como campo de estudos científicos, que, em termos gerais, foi consolidado, em princípio, na área da sociologia. Denominada “sociologia do lazer”5, os primeiros estudos foram realizados a partir da necessidade de conhecimento e controle social do tempo livre dos trabalhadores nos países industrializados. Esta raiz científica, fez com que os estudos do lazer se centrassem no campo das ciências sociais e humanas. Entretanto, estudos recentes defendem o caráter interdisciplinar no campo do lazer, e o consideram como um fenômeno que pode ser estudado em diversas áreas, como, por exemplo, na área da saúde coletiva (lazer e qualidade de vida)13, na administração (políticas públicas, espaços e instalações para vivências de atividades no lazer)25 e na psicologia (motivação, barreiras e aderência à prática)26.
Outro aspecto a ser analisado é que, no Brasil, em termos de produção científica, muitos estudos sobre o lazer ainda não alcançaram o nível de amadurecimento, consistência e profundidade com que outras áreas abordam determinadas questões. Segundo Alves et al.27, a maioria dos estudos deste campo se restringe a relatos de experiências, sem necessariamente apresentar uma fundamentação teórica aprofundada. Além disso, as pesquisas, mesmo apresentando uma discussão consistente sobre o lazer, não apontam caminhos para promover um avanço quali-quantitativo neste campo.
Há de se reconhecer a dificuldade de classificação das atividades nos diferentes conteúdos do lazer. De forma geral, é com base no objetivo da prática, que se pode tentar classificá-las. Além disso, esta tarefa se torna ainda mais complexa, pois os interesses no lazer são estabelecidos por escolhas subjetivas6. Desta forma, o significado de cada atividade no lazer varia de pessoa para pessoa.
Apesar disso, os conteúdos culturais no lazer foram divididos, de forma preponderante, de acordo com algumas características em comum das atividades que as contemplam, muito embora esta estratificação seja difícil de ser realizada, pois uma atividade pode transitar em dois ou mais conteúdos. Na prática de uma atividade física coletiva, por exemplo, há de se considerar que o conteúdo social também está inserido neste contexto.
De acordo com atividades exemplificadas em cada conteúdo do instrumento, foram verificados os critérios de autenticidade científica da EPL, considerando sua objetividade, fidedignidade e validade de conteúdo. Os coeficientes de validade de conteúdo CVCt de clareza da linguagem = 0,883 e CVCt de pertinência prática = 0,879, a consistência interna (Alpha-Cronbach) e a reprodutibilidade (coeficiente de variação temporal), calculados neste estudo estão de acordo com os critérios admitidos pela literatura23. Esses resultados reforçam a interpretação geral de que os itens são adequados e pertinentes. Além disso, na análise semântica de conteúdo, adequações importantes foram inseridas ao instrumento final.
O instrumento (Quadro 1) pode ser utilizado para pesquisas em diferentes populações com a faixa etária de 18 a 60 anos, visto que atualmente a questão da temporalidade está mais relacionada com outras questões sociais, como renda e condições de vida, do que com a própria idade do indivíduo. Os avanços no acesso aos serviços de saúde e desenvolvimento econômico do país têm permitido o crescimento da expectativa de vida da população em geral. Desta forma, atividades que até há pouco tempo eram restritas a pessoas com idades mais avançadas, hoje se tornam atemporais, como as atividades manuais de pintura e artesanato, por exemplo. Porém, para melhor compreensão e aplicação em populações acima de 60 anos, sugere-se a avaliação semântica para as atividades exemplificadas.
Quadro 1 Escala de Práticas no Lazer (EPL) para adultos.Marque com um X o número mais adequado ao seu envolvimento nas práticas em seus momentos no lazer, considerando: “0” para quando você “NUNCA” realiza a atividade e “10” para quando você “SEMPRE” realiza a atividade.
Artísticos: este conteúdo inclui atividades como: ir ao cinema, teatro, shows musicais, participar de grupos de coral, frequentar exposições de arte e centros culturais, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Manuais: este conteúdo inclui atividades como: jardinagem, cozinhar, pintar, fazer artesanato e marcenaria, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Físico/esportivos: este conteúdo inclui atividades como: ir à academia, jogar bola, caminhadas, corridas, ciclismo e lutas, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Intelectuais: este conteúdo inclui atividades como: participar de cursos, ler, ouvir/compor músicas, ver documentários, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Sociais: este conteúdo inclui atividades como: sair com os amigos, ir a festas, visitar familiares, ir à igreja, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Turísticas: este conteúdo inclui atividades como: viajar, participar de excursões e passeios, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Virtuais: este conteúdo inclui atividades como: navegar na internet e/ou em redes sociais, jogar vídeo game ou jogos virtuais, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Contemplação/ócio: este conteúdo inclui atividades como: apreciar a natureza, o pôr-do-sol, a lua, as estrelas e belas paisagens. Desligar-se das tarefas relaxando e refletindo, dentre outras. | Nunca | 0 | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 | 9 | 10 | Sempre |
Segundo Requixa18, as práticas no lazer têm como objetivo principal o descanso, divertimento e desenvolvimento pessoal e social. Neste sentido, Marcellino6 afirma ser fundamental o envolvimento em diferentes contextos e grupos de interesse. Portanto, para que se possam atingir aos objetivos do lazer, torna-se importante o trâmite em seus diferentes conteúdos, ora realizando atividades virtuais, como em redes sociais, ora participando de compromissos sociais, como reunião familiar, por exemplo.
Destaca-se ainda que as vivências no lazer não devam restringir-se a um único conteúdo. Assim, o somatório da pontuação obtida com o instrumento indica maior ou menor envolvimento de cada indivíduo ou grupo em determinadas práticas no lazer. Podendo ser estabelecidas estratégias individuais ou coletivas para a contemplação de conteúdos menos relatados.
A área de Saúde Coletiva se volta à compreensão dos processos de saúde na dimensão social, sendo que, entre outros elementos, ela se preocupa com questões do âmbito social e com as práticas coletivas de proteção e promoção da saúde28. Esta área também desenvolve estudos com intuito de conhecer a realidade social e implementar novas ações e práticas coletivas de proteção à saúde29,30. Neste sentido, podem-se perceber as interfaces desta Ciência com os Estudos do Lazer.
O lazer é um fenômeno sociocultural que possui olhar interdisciplinar, sendo apreciado em pesquisas desenvolvidas em diferentes campos de conhecimento6. Por ser um fenômeno abrangente e complexo, engloba, inclusive, os conhecimentos acerca de seus conteúdos culturais em suas interfaces com o bem-estar social, a saúde e a qualidade de vida, os quais também são focos de atenção na área da Saúde Coletiva.
Buscar por indicadores avaliativos e monitoramento de ações que promovam a proteção da saúde é outro dos desígnios da área de Saúde Coletiva. Da mesma forma, as atividades do contexto do lazer favorecem a promoção da saúde, haja visto que o envolvimento humano com atividades hedonistas, escolhidas por livre opção, com base na afinidade ou nas habilidades e competências pessoais, reforçam a perspectiva de desenvolvimentos no âmbito pessoal ou social, impactando a saúde e a qualidade de vida6,13,19.
Assim como na Saúde Coletiva existe o foco na promoção da saúde, em que tomam parte a identificação, a análise e a intervenção nos determinantes dos processos de saúde e qualidade de vida, bem como, a produção de estratégias envolvendo os âmbitos cultural, artístico em uma forma educativa, ações correlatas são também desenvolvidas no campo do lazer. Neste campo, também são utilizadas formas de incentivo e cuidado com a saúde e com a qualidade de vida, oferecendo oportunidade e ratificando ao sujeito social a oportunidade de exercer seu direito ao lazer, desenvolvendo uma cultura e uma educação em saúde diretamente relacionadas às questões do bem-estar social.
Outra perspectiva dentro da Saúde Coletiva é a necessidade de conhecer a realidade social, para auxiliar o desenvolvimento de ações que conduzam a novos hábitos. Sendo assim, este instrumento proposto para a sondagem acerca das condutas no lazer busca, de forma efetiva, auxiliar no desenvolvimento de um levantamento, para mapear e conhecer a realidade social do comportamento e hábitos no lazer. Esta iniciativa poderá, inclusive, subsidiar novas ações na Educação em saúde, assim como, no campo de Gestão e Políticas Públicas de saúde, por ser abrangente e de fácil aplicação. Sua contribuição também poderáter ressonâncias na análise das práticas em saúde e nas articulações com as demais práticas sociais.
Não foi foco desta pesquisa analisar as atividades isoladamente e o poder explicativo em cada item. Além disso, não está em questão, neste estudo, a qualidade da vivência em si, bem como, os fatores associados a cada prática. Por isso, no sentido de avançar no estudo do lazer em diferentes populações, estas sugestões poderão ser resultados de pesquisas futuras. Além disso, cabe ressaltar que, pelo fato de o Brasil ser um país com dimensões continentais e com uma pluralidade sociocultural muito grande, as atividades exemplificadas nos itens da escala para cada conteúdo do lazer, poderão ser ajustadas, levando-se em consideração as características regionais de cada população a ser investigada. Com isso, será possível a classificação das atividades vivenciadas no lazer nos seus diferentes conteúdos em populações específicas.
A partir dos procedimentos de validação verificou-se que os itens da EPL, propostos para analisar as preferências e o envolvimento dos adultos nos diferentes conteúdos do lazer são adequados, apresentam qualidade psicométrica e valores aceitáveis em sua estrutura, podendo ser utilizados em pesquisas acerca dos conteúdos no lazer de adultos brasileiros, incluindo análises epidemiológicas. Destaca-se que o valor de Alpha encontrado para a escala total revela um escore desejável da consistência interna do instrumento completo. Trata-se de um importante preditor da confiabilidade e precisão desses resultados. Tais informações são importantes para que novas pesquisas sejam realizadas norteando os interesses no lazer de diferentes populações e adensando as reflexões em diferentes áreas do conhecimento.
Notou-se, por meio da literatura consultada, um distanciamento dos estudos do lazer com a área da psicometria. Este instrumento contribui para suprir uma importante demanda neste campo de estudos. O mapeamento sobre o lazer permitirá compreender como a sociedade identifica suas expectativas, denotando suas necessidades e hábitos que reverberam na qualidade de vida e na saúde coletiva. Esta busca de explicações poderá nortear novas tomadas de decisões para o enfrentamento de problemas e lacunas que forem identificados, de forma a ampliar as proposições das políticas e dos cuidados primários com a saúde, fomentando o aprofundamento das reflexões no campo do lazer. Apesar disso, é necessária a aplicação da escala em diferentes populações e contextos, no sentido de confirmar os valores psicométricos.