versão impressa ISSN 1808-8694versão On-line ISSN 1808-8686
Braz. j. otorhinolaryngol. vol.84 no.6 São Paulo nov./dez. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2017.08.007
A otite média crônica (OMC) é caracterizada por inflamação da orelha média que pode resultar em alterações por um longo período tempo ou permanentes da membrana timpânica.1 As diferentes formas de OMC incluem perfuração, atelectasia e retração da membrana timpânica, timpanosclerose e colesteatoma. O custo global estimado da OMC tem ampla variação em todo o mundo e as taxas de prevalência variam de < 1% em países de alta renda a > 4% em países de baixa renda.2 A doença pode estar associada a morbidade significante, principalmente em contextos de recursos limitados e um alto impacto na qualidade de vida dos pacientes, com um peso de mais de dois milhões de DALYs (Disability-Adjusted Life Years ou anos de vida ajustados por incapacidade).3 A medida desse impacto na qualidade de vida, especialmente após o início do tratamento dos pacientes, tem se tornado cada vez mais importante nos cuidados da saúde. As medidas de desfecho relatadas pelo paciente (patient-reported outcome measure, PROMs) são questionários padronizados que visam a capturar esse efeito na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS), inclusive medidas do status de sintomas, desempenho físico, saúde mental, desempenho social e bem-estar.4 O Questionário de Otite Média Crônica-12 (COMQ-12) é específico para a avaliação da qualidade de vida em pacientes com OMC que pode ser usado como uma PROM.5,6 Até o momento, foi traduzido e validado em dois idiomas,7,8 o que fornece uma medida transcultural comum de QVRS para estudos comparativos e multicêntricos.
O objetivo do presente estudo foi traduzir o Questionário de Otite Média Crônica-12 (COMQ-12) para a língua portuguesa e validar essa versão em um grupo de pacientes com OMC.
O COMQ-12 é um questionário de qualidade de vida relacionado à saúde desenvolvido por Phillips et al.,5 composto por 12 perguntas de autoavaliação agrupadas em quatro categorias. Cada questão precisa receber um escore em uma escala ordinal de seis pontos, de 0 (sem impacto) até 5 (impacto mais grave possível). As questões 1 a 7 estão relacionadas à gravidade dos sintomas. As questões 8 e 9 são relativas ao impacto no trabalho e no estilo de vida; as questões 10 e 11 analisam o impacto no serviço de saúde e a questão 12 é sobre o impacto geral sobre o paciente.
A versão em português do COMQ-12 foi obtida com a permissão dos autores originais e seguiu o processo padronizado para tradução de PROMs.9
A versão em inglês do COMQ-12 foi traduzida de forma independente por dois otorrinolaringologistas nativos da língua portuguesa, proficientes em inglês. Um especialista bicultural comparou os dois questionários traduzidos e produziu uma versão final. A versão em português foi então traduzida de volta para o inglês por um nativo da língua inglesa. Não houve diferenças conceituais na retrotradução em comparação com a versão original. A versão final em português do COMQ-12 foi então aprovada em formato e conteúdo (disponível na seção de informações suplementares).
A aprovação do comitê de ética (nº 1.887.778) foi obtida para este estudo de acordo com a Declaração de Helsinque e o consentimento livre e informado foi obtido de todos os participantes.
Pacientes nativos da língua portuguesa com histórico de OMC ativa foram convidados a completar a versão em português do COMQ-12. Os critérios de inclusão exigiram que os pacientes fossem maiores de 12 anos e tivessem um histórico de OMC ativa de mais de seis meses. O questionário foi completado por 100 pacientes com diferentes tipos de OMC. Além disso, informações clínicas e demográficas foram coletadas.
Para estimar a consistência interna da versão em português do COMQ-12, calculou-se o coeficiente α de Cronbach. Esse índice é usado para medir a confiabilidade do questionário. A consistência interna é considerada satisfatória se o α de Cronbach atingir 0,7, mas um valor ≥ 0,8 é recomendado.
Também analisamos a validade do questionário com o método de validade dos grupos conhecidos. A validade dos grupos conhecidos consiste em demonstrar que o instrumento pode diferenciar entre grupos de pacientes com diferentes estágios ou manifestações da doença, nesse caso entre pacientes com OMC curada (isto é, orelha seca: membrana timpânica intacta, neotímpano, timpanosclerose) e pacientes com colesteatoma ou pacientes com OMC ativa (perfuração timpânica úmida).
Os dados foram analisados com o software STATA®, versão v13.0 (StataCorp LP, EUA).
Foram incluídos no estudo 100 pacientes; 49 mulheres e 51 homens, com média de 39 anos (variação 12-77, mediana de 40). As características epidemiológicas da população do estudo são mostradas na tabela 1. Viviam em São Paulo (metrópole) 72 pacientes, 27 fora da metrópole e apenas um vivia fora do Estado de São Paulo. O tempo necessário para completar esse questionário foi de aproximadamente 10 minutos.
Características | Valor |
---|---|
Idade (anos) | |
Média | 39 |
DP | 17 |
Mediana | 40 |
Variação | 12-77 |
Sexo, n (%) | |
Feminino | 49% |
Masculino | 51% |
Nível de escolaridade | |
Nenhum | 3% |
Ensino Fundamental (incompleto) | 26% |
Ensino Fundamental (completo) | 36% |
Ensino Médio | 33% |
Ensino Superior | 2% |
DP, desvio padrão.
Os participantes apresentaram diferentes formas de OMC, como mostrado na tabela 2.
Descrição | Total (n) |
---|---|
OMC inativa em mucosa (perfuração seca) | 36 |
OMC ativa em mucosa (perfuração úmida) | 26 |
OMC inativa em epitélio escamoso (retração, atelectasia, epidermose) | 16 |
OMC ativa em epitélio escamoso (colesteatoma) | 20 |
OMC curada (MT intacta, neotímpano, timpanosclerose) | 26 |
O escore médio do COMQ-12 foi de 29 (DP = 12,8), variação de 6 a 56, de um escore máximo de 60. A estatística descritiva para cada pergunta está descrita na tabela 3. O resultado do coeficiente α de Cronbach para a versão em português do COMQ- 12 foi de 0,85, indicou que a consistência interna do questionário foi alta.
Questão | Q1 | Q2 | Q3 | Q4 | Q5 | Q6 | Q7 | Q8 | Q9 | Q10 | Q11 | Q12 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média | 2,92 | 2,89 | 2,66 | 2,70 | 2,54 | 1,97 | 2,34 | 1,83 | 2,47 | 1,56 | 1,92 | 3,31 |
Mediana | 3 | 3 | 3 | 3 | 3 | 1,5 | 2 | 1 | 2,5 | 2 | 2 | 3 |
DP | 1,61 | 1,70 | 1,51 | 1,51 | 1,65 | 1,85 | 1,75 | 2,02 | 2,29 | 1,23 | 1,92 | 1,63 |
Variância | 2,57 | 2,89 | 2,29 | 2,29 | 2,72 | 3,42 | 3,05 | 4,08 | 5,24 | 1,52 | 3,67 | 2,66 |
A validade do conteúdo do questionário foi assegurada pela forma como a versão original foi desenvolvida, através de revisão da literatura e discussão com otorrinolaringologistas experientes. Todo esse processo teve como objetivo garantir que o objetivo prático desse instrumento fosse mantido.
A validade dos grupos conhecidos foi usada para comparar os escores do questionário com as manifestações clínicas de OMC (fig. 1). Quase todos os domínios do questionário COMQ-12 foram capazes de diferenciar entre pacientes com OMC curada e pacientes com colesteatoma ou perfuração úmida. As duas últimas condições foram associadas a uma piora na audição, mau cheiro na orelha, desconforto na orelha, otorreia, maior frequência de consultas médicas e necessidade de medicação.
O presente estudo, traduzido para o português, demonstrou a validade do COMQ-12 em pacientes com história de OMC. Não foram encontradas dificuldades significativas na tradução ou na adaptação cultural do questionário. No entanto, as questões não foram muito facilmente compreendidas pelos pacientes, foram auxiliados pela equipe clínica quando necessário. A maioria dos pacientes que preencheram o questionário (65%) não tinha ensino médio e apenas 2% haviam frequentado a universidade. Portanto, a principal preocupação ao aplicar o questionário a essa população foi garantir que eles pudessem entender o que era solicitado. Por esse motivo, já existe um estudo em curso em nosso centro que compara diferentes formas de aplicar o COMQ-12 aos nossos pacientes na rotina diária. Esse será um desafio metodológico que exploraremos em breve e poderá fornecer mais informações sobre como o COMQ-12 deve ser usado como uma ferramenta de PROM.6
A validade interna do nosso estudo foi muito boa, com o escore α de Cronbach de 0,85. Esse resultado está de acordo com a versão original em inglês5 e um recente estudo de validação holandês.7
Como esperado, os pacientes que não tinham orelha seca, ou seja, aqueles com colesteatoma ou com perfuração timpânica úmida, apresentaram escores significativamente maiores no COMQ-12 em relação aos pacientes com OMC curada. Além disso, entre os pacientes com OMC curada, a mediana do escore do COMQ-12 foi de 2 e o escore modal foi de 0 para 50% dos pacientes, o que é semelhante aos achados de Kosyakov et al.8 e confirma nossos resultados. Demonstrar que pacientes com OMC curada têm uma melhor qualidade de vida medida pelo COMQ-12 é o primeiro passo para garantir sua validação. O próximo passo será usá-lo rotineiramente em pacientes submetidos à cirurgia para OMC e avaliar a qualidade de vida após o tratamento.
Os problemas específicos da orelha mais preocupantes foram tonturas e zumbido; no entanto, apresentar limitações na vida diária mostrou escores ainda mais baixos do que os problemas específicos da orelha relatados, o que demonstra a verdadeira extensão da incapacidade nesses pacientes.
Finalmente, aplicamos o questionário em pacientes com mais de 12 anos. Embora o estudo original tenha usado uma amostra de indivíduos adultos, o COMQ-12 tem sido gradualmente aplicado em pacientes mais jovens.7,8 Como não encontramos diferenças entre pacientes mais jovens e maiores de 18 anos (dados não apresentados, disponíveis mediante solicitação), essa informação pode ser uma evidência adicional para a possibilidade do uso do questionário em pacientes mais jovens. Além disso, nos pacientes mais jovens o questionário foi completado na presença e com a ajuda dos seus responsáveis legais.
Este estudo apresenta algumas limitações. Em primeiro lugar, recrutamos uma amostra de pacientes de conveniência. No entanto, acreditamos que essa amostra representa adequadamente a população de interesse para a aplicação do COMQ-12. Em segundo lugar, não relatamos a confiabilidade teste-reteste ou as respostas dos pacientes às mudanças ao longo do tratamento.
A versão em português do COMQ-12 mostrou alta confiabilidade para seu uso clínico na avaliação da qualidade de vida (QVRS) em pacientes com OMC.