versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.103 no.6 São Paulo dez. 2014 Epub 28-Out-2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140162
O ângulo QRS-T mostra correlação com prognóstico em pacientes com insuficiência cardíaca e doença coronariana, traduzido por um aumento na mortalidade proporcional ao aumento na diferença entre os eixos do complexo QRS e da onda T no plano frontal. Até hoje, nenhuma informação a este respeito foi obtida em pacientes com cardiopatia chagásica.
Correlacionar o ângulo QRS-T com a indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular (TV / FV) em chagásicos durante estudo eletrofisiológico (EEF).
Estudo caso-controle em centro terciário. Pacientes sem indução de TV / FV ao EEF foram utilizados como controles. O ângulo QRS-T foi categorizado como normal (0-105º), limítrofe (105-135º) e anormal (135-180º). As diferenças entre os grupos foram analisadas pelo teste t ou teste de Mann-Whitney para variáveis contínuas, e teste exato de Fisher ou qui-quadrado para variáveis categóricas. Valores de p < 0,05 foram considerados significativos.
De 116 pacientes submetidos ao EEF, 37,9% foram excluídos por estarem com dados incompletos / prontuários inativos ou pela impossibilidade de se calcular corretamente o ângulo QRS-T (presença de bloqueio de ramo esquerdo e fibrilação atrial). De 72 pacientes incluídos, 31 induziram TV / FV ao EEF. Destes, o ângulo QRS-T se encontrava normal em 41,9%, limítrofe em 12,9% e anormal em 45,2%. No grupo de pacientes sem indução de TV / FV, o ângulo QRS-T se encontrava normal em 63,4%, limítrofe em 14,6% e anormal em 17,1% (p = 0,04). Quando comparados aos pacientes com ângulo QRS-T normal, o risco de indução de TV / FV nos pacientes com ângulo anormal foi quatro vezes maior [odds ratio (OR) 4; intervalo de confiança (IC) 1,298-12,325; p = 0,028). Após ajuste para outras variáveis como idade, fração de ejeção (FE) e tamanho do QRS, houve tendência do ângulo QRS-T anormal em identificar pacientes com maior risco de indução de TV / FV (OR 3,95; IC 0,99-15,82; p = 0,052). A FE também se evidenciou como preditora de indução de TV / FV: um ponto de aumento na FE reduziu em 4% a taxa de indução de arritmia ventricular sustentada ao EEF.
Alterações no ângulo QRS-T e redução na FE estiveram associadas a um aumento no risco de indução de TV / FV ao EEF.
Palavras-Chave: Taquicardia Ventricular; Arritmias Cardíacas; Doença de Chagas; Eletrocardiografia; Estudos de Casos e Controles
The QRS-T angle correlates with prognosis in patients with heart failure and coronary artery disease, reflected by an increase in mortality proportional to an increase in the difference between the axes of the QRS complex and T wave in the frontal plane. The value of this correlation in patients with Chagas heart disease is currently unknown.
Determine the correlation of the QRS-T angle and the risk of induction of ventricular tachycardia / ventricular fibrillation (VT / VF) during electrophysiological study (EPS) in patients with Chagas disease.
Case-control study at a tertiary center. Patients without induction of VT / VF on EPS were used as controls. The QRS-T angle was categorized as normal (0-105º), borderline (105-135º) or abnormal (135-180º). Differences between groups for continuous variables were analyzed with the t test or Mann-Whitney test, and for categorical variables with Fisher's exact test. P values < 0.05 were considered significant.
Of 116 patients undergoing EPS, 37.9% were excluded due to incomplete information / inactive records or due to the impossibility to correctly calculate the QRS-T angle (presence of left bundle branch block and atrial fibrillation). Of 72 patients included in the study, 31 induced VT / VF on EPS. Of these, the QRS-T angle was normal in 41.9%, borderline in 12.9% and abnormal in 45.2%. Among patients without induction of VT / VF on EPS, the QRS-T angle was normal in 63.4%, borderline in 14.6% and abnormal in 17.1% (p = 0.04). When compared with patients with normal QRS-T angle, those with abnormal angle had a fourfold higher risk of inducing ventricular tachycardia / ventricular fibrillation on EPS [odds ratio (OR) 4; confidence interval (CI) 1.298-12.325; p = 0.028]. After adjustment for other variables such as age, ejection fraction (EF) and QRS size, there was a trend for the abnormal QRS-T angle to identify patients with increased risk of inducing VT / VF during EPS (OR 3.95; CI 0.99-15.82; p = 0.052). The EF also emerged as a predictor of induction of VT / VF: for each point increase in EF, there was a 4% reduction in the rate of sustained ventricular arrhythmia on EPS.
Changes in the QRS-T angle and decreases in EF were associated with an increased risk of induction of VT / VF on EPS.
Key words: Tachycardia, Ventricular; Arrhythmias, Cardiac; Chagas Disease; Electrocardiography; Case-Control Studies
A doença de Chagas é um problema prevalente de saúde pública no Brasil e na América Latina. A doença tem ganhado importância em países desenvolvidos em virtude da intensa migração de indivíduos de localidades historicamente consideradas como reservatórios da doença1. É causada pelo parasito Trypanosoma cruzi transmitido por via vetorial através de picada de insetos triatomíneos, por transmissão gestante-feto, por via oral ou através de transfusão de sangue contaminado2.
Na fisiopatologia da doença de Chagas há inflamação, destruição tissular e fibrose das células cardíacas causando disautonomia, alterações microcirculatórias e danos à musculatura cardíaca e ao sistema nervoso intramural1. A doença se apresenta nas formas indeterminada, não cardíaca e cardíaca, esta última ainda subdividida em formas com e sem disfunção ventricular. Mesmo com fração de ejeção preservada, os pacientes com cardiomiopatia chagásica podem evoluir com diversos distúrbios de condução e arritmias ventriculares graves que se mostram importantes preditores prognósticos.
A mortalidade do portador de cardiomiopatia chagásica tem como causas cardiovasculares mais comuns as taquiarritmias (taquicardia e fibrilação ventriculares) e a insuficiência cardíaca1,3,4. As taquiarritmias podem ser precedidas por sintomas típicos ou evoluir com morte súbita sem sinais premonitórios, o que pode acometer também indivíduos com corações estruturalmente normais. Considerando a prevalência da doença e o aumento da expectativa de vida de seus portadores, a estratificação de risco para morte súbita e taquiarritmias é de suma importância para a saúde pública.
O ângulo QRS-T é uma variável eletrocardiográfica que determina as direções de despolarização e repolarização do coração no eixo frontal. Em condições normais, tais processos apresentam a mesma orientação espacial, embora em sentidos opostos. Diferenças entre ambos indicam anormalidades elétricas cardíacas que sinalizam alterações estruturais miocárdicas que afetam a despolarização ou alterações regionais na sequência de repolarização. Estudos demonstram que uma ferramenta simples - o eletrocardiograma - fornece dados para estratificação de risco baseada na análise do ângulo QRS-T. Nenhum estudo, entretanto, avaliou a importância desta variável e sua relação com indução de arritmias ventriculares malignas durante a estimulação ventricular programada em pacientes com cardiomiopatia chagásica.
O objetivo deste estudo foi determinar se o ângulo QRS-T obtido no plano frontal durante o eletrocardiograma de repouso de 12 derivações está associado com risco maior de indução de arritmias ventriculares durante estudo eletrofisiológico (EEF) em pacientes portadores de doença de Chagas.
Este é um estudo retrospectivo que incluiu pacientes portadores de doença de Chagas submetidos nos últimos 3 anos a EEF no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Os pacientes foram divididos em dois grupos com base na indução ou não de arritmias ventriculares malignas (taquicardia ventricular sustentada, fibrilação ventricular ou flutter ventricular) durante o protocolo de estimulação ventricular do EEF. O grupo de pacientes sem indução de tais arritmias foi utilizado como controle. As informações coletadas incluíram dados demográficos (idade, sexo, antecedentes de hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, dislipidemia, doença arterial coronariana, acidente vascular cerebral, síncope, medicamentos concomitantes), eletrocardiográficos (ritmo, presença de bloqueio atrioventricular e intraventricular, intervalo QRS e ângulo QRS-T), ecocardiográficos (fração de ejeção, disfunção diastólica de ventrículo esquerdo, disfunção de ventrículo direito, presença de trombos ou aneurismas) e de Holter de 24 horas (quantificação de extrassístoles ventriculares, taquicardia ventricular não sustentada e sustentada). Estas informações foram obtidas de prontuários, registradas em formulários projetados especialmente para o estudo e correlacionadas com os achados do EEF. Não houve seguimento clínico e a coleta de dados foi realizada por meio de registros, exames e anotações em prontuário.
O estudo incluiu todos os pacientes com pelo menos duas sorologias positivas para doença de Chagas e submetidos a EEF nos últimos 3 anos. Dados obtidos da amostra incluíram antecedentes médicos e uso de medicamentos. Pacientes com pressão arterial ≥ 140 / 90 mmHg5 ou em uso de medicamentos anti-hipertensivos foram classificados como hipertensos. O encontro de glicemia de jejum acima de 126 mg / dL em duas ocasiões, ou uso de hipoglicemiantes orais ou insulina foi estabelecido como diabetes mellitus. Foram excluídos da análise os indivíduos com cardiomiopatia de outras etiologias (doença arterial coronariana, hipertensão, ou outras), fibrilação atrial, bloqueio de ramo esquerdo e portadores de marcapasso com ritmo determinado pelo próprio marcapasso. O diagnóstico de doença arterial coronariana foi definido pela presença à angiocoronarianografia de estenose mínima de 70% no vaso acometido.
Taquicardia ventricular sustentada foi definida como a presença de taquicardia originada no ventrículo com frequência superior a 100 bpm e duração acima de 30 segundos ou associada a instabilidade clínica ou hemodinâmica. Uma atividade ventricular rápida, desordenada e ineficaz caracterizou a fibrilação ventricular.
O eixo do complexo QRS e das ondas T no plano frontal foi calculado com base na análise do eletrocardiograma de repouso (12 derivações) gravado a 25 mm / s e com 10 mm / mV de amplitude. Em ambos os casos, o eixo estava localizado na derivação que apresentava complexos QRS e ondas T de maior amplitude. A diferença entre os ângulos do complexo QRS e da onda T foi calculada pela diferença absoluta entre os ângulos, com valores resultantes entre 0º e 180º. Tais determinações foram obtidas por dois revisores independentes. Em caso de discordância, um terceiro revisor foi requisitado. O ângulo QRS-T foi dividido em três grupos: normal (0-105º), limítrofe (105-135º) e anormal (135-180º).
A monitorização de 24 horas pelo sistema Holter ofereceu informações sobre a presença de extrassístoles ventriculares e taquicardia ventricular. Extrassístole ventricular foi definida como a ocorrência de batimentos isolados ou acoplados originados no ventrículo. A presença de pelo menos três batimentos ventriculares consecutivos com frequência cardíaca acima de 100 bpm foi definida como taquicardia ventricular não sustentada e, quando a duração era maior do que 30 segundos, como taquicardia ventricular sustentada.
Todos os pacientes foram submetidos ao EEF de acordo com o protocolo padrão utilizado de rotina na instituição. O protocolo consiste na estimulação ventricular programada com uso de dois ciclos básicos (600 e 500 ms) com até três extra-estímulos no ápice e na via de saída do ventrículo direito, além de estimulação rápida (até 250 ms) nos mesmos sítios. O primeiro extra-estímulo, acoplado com o último QRS do "trem" de pulsos e 50 ms mais rápido que o período refratário ventricular, é introduzido na diástole tardia. O acoplamento é reduzido a cada 10 ms até que o período refratário ventricular seja atingido. O segundo e terceiro extra-estímulos são introduzidos na sequência de maneira semelhante ao primeiro extra-estímulo. Em caso de indução de taquicardia ventricular, procede-se à reversão ao ritmo sinusal por meio de estimulação ventricular rápida ou, no caso de colapso hemodinâmico, cardioversão elétrica.
As avaliações ecocardiográficas incluíram medidas do diâmetro do átrio esquerdo, diâmetros sistólico e diastólico do ventrículo esquerdo, fração de ejeção ventricular esquerda, e determinação da presença de disfunção diastólica, disfunção de ventrículo direito, trombo ou aneurisma em ventrículo esquerdo.
Variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão, e intervalos interquartis quando apropriado. Variáveis categóricas foram apresentadas como frequências relativa e absoluta. Diferenças entre os grupos quanto à indução e não indução de arritmias ventriculares foram analisadas pelo teste t ou Mann-Whitney para variáveis contínuas e teste exato de Fisher para variáveis categóricas. Para verificar quais fatores influenciaram conjuntamente os grupos, modelos de regressão logística foram utilizados. A seleção das variáveis foi realizada pelo método Backward com alfa de saída de 5%. Valores de p inferiores a 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. Os dados foram analisados pelos programas Microsoft Excel e R for Windows.
Entre janeiro e julho de 2013, foram selecionados 116 prontuários de pacientes chagásicos submetidos a EEF. Destes, 44 (37,9%) foram excluídos pelos seguintes motivos: 18 (15,5%) por dados incompletos, 6 (5,2%) por prontuários inativos e 19 (16,4%) por impossibilidade de se calcular corretamente o ângulo QRS-T. Dentre os motivos que impossibilitaram o cálculo do ângulo QRS-T estão a presença de bloqueio de ramo esquerdo em 16 (13,8%) e fibrilação atrial em 3 (2,6%). A análise final, portanto, incluiu 72 pacientes.
A média de idade foi de 59,3 ± 10,6 anos e 35 pacientes (48,6%) eram do sexo masculino. A média da fração de ejeção foi 49,8 ± 16,1% e mais da metade dos pacientes (51,4%) apresentava classe funcional I. Bloqueio de ramo direito e bloqueio divisional ântero-superior esquerdo foram observados em 41 (56,9%) e 47 (65,3%) pacientes, respectivamente. Aproximadamente 80% dos pacientes utilizavam inibidores da enzima conversora de angiotensina / bloqueadores do receptor de angiotensina II, 54,2% faziam uso de amiodarona e 47,2% recebiam betabloqueadores. O ângulo QRS-T estava normal em 39 pacientes (54,2%), anormal em 21 (29,2%) e limítrofe em 10 (13,9%).
As características clínicas, eletrocardiográficas, ecocardiográficas e os achados de Holter dos 72 pacientes incluídos na análise estão descritos na Tabela 1.
Tabela 1 Características clínicas, eletrocardiográficas, ecocardiográficas e achados de Holter de 72 pacientes com doença de Chagas
Características | N (%) |
---|---|
Características clínicas | |
Idade em anos (média ± desvio padrão) | 59,3 ± 10,6 |
Sexo masculino | 35 (48,6) |
Dislipidemia | 27 (37,5) |
Síncope | 43 (59,7) |
Tabagismo | 5 (6,9) |
AVC OU AIT | 7 (9,7) |
Hipertensão arterial sistêmica | 55 (76,4) |
Diabetes mellitus | 10 (13,9) |
Cardiodesfibrilador implantável | 2(2,8) |
Marcapasso | 2(2,8) |
Classe funcional | |
I | 37 (51,4) |
II | 30 (41,7) |
III | 5(6,9) |
IV | 0(0,0) |
Medicações concomitantes | |
Betabloqueador | 34 (47,2) |
Amiodarona | 39 (54,2) |
IECA/BRA | 57 (79,2) |
Furosemida | 18 (25,0) |
Estatinas | 21 (29,2) |
AAS | 30 (41,7) |
Anticoagulante oral | 2 (2,8) |
Espironolactona | 19 (26,4) |
Características eletrocardiográficas | |
BAV de primeiro grau | 22 (30,6) |
Bloqueio de ramo direito | 41 (56,9) |
Bloqueio divisional ântero-superior esquerdo | 47 (65,3) |
QRS < 120 ms | 24 (33,3) |
QRS > 120 ms | 48 (66,7) |
Ângulo QRS-T normal | 39 (54,2) |
Ângulo QRS-T anormal | 21 (29,2) |
Ângulo QRS-T limítrofe | 10 (13,9) |
Características ecocardiográficas | |
Fração de ejeção (média ± desvio padrão) | 49,8 ± 16,1% |
Disfunção diastólica | 42 (58,3) |
Disfunção sistólica | 3 (4,2) |
Trombo intracardíaco | 1 (1,4) |
Aneurisma de ventrículo esquerdo | 3(4,2) |
Achados de Holter | |
0-10 extrassístoles ventriculares / hora | 12 (16,7) |
11-30 extrassístoles ventriculares / hora | 10 (13,9) |
>31 extrassístoles ventriculares / hora | 43 (59,7) |
Taquicardia ventricular não sustentada | 37 (51,4) |
AVC: acidente vascular cerebral; AIT: acidente isquêmico transitório; lECA: inibidor da enzima conversora de angiotensina; BRA: bloqueador do receptor de angiotensina II; AAS: ácido acetilsalicílico, BAV: bloqueio atrioventricular.
Não houve diferenças entre os grupos quanto às características basais, exceto quanto à idade. Estes achados estão representados na Tabela 2.
Tabela 2 Comparação entre os grupos quanto às características clínicas
Características clínicas | Indução de taquicardia ventricular/fibrilação ventricular | ||
---|---|---|---|
Não 41 (56,4%) | Sim 31 (43,1%) | Valor de p | |
Idade (anos) | 61,98 | 55,77 | 0,01 |
Sexo masculino | 16 (39) | 19 (61,3) | 0,09 |
Dislipidemia | 16 (39) | 11 (35,5) | 0,81 |
Síncope | 24 (58,5) | 19 (61,3) | 1,00 |
Tabagismo | 3 (7,3) | 2 (6,5) | 1,00 |
AVC/AIT prévio | 5 (12,2) | 2 (6,5) | 0,69 |
Hipertensão arterial sistêmica | 30 (73,2) | 25 (80,6) | 0,58 |
Diabetes mellitus | 6 (14,6) | 4 (12,9) | 1,00 |
AVC: acidente vascular cerebral; AIT: acidente isquêmico transitório.
Estatinas e AAS foram as medicações mais frequentemente prescritas no grupo sem indução de arritmias ventriculares malignas. Apesar do maior uso de betabloqueadores e espironolactona no grupo com indução de arritmias, esta diferença não atingiu significância estatística (Tabela 3).
Tabela 3 Comparação entre os grupos quanto ao uso de medicações concomitantes
Medicamentos concomitantes | Indução de taquicardia ventricular/fibrilação ventricular | ||
---|---|---|---|
Não 41 (56,4%) | Sim 31 (43,1%) | Valor de p | |
Betabloqueador | 15 (36,6) | 19 (61,3) | 0,06 |
Amiodarona | 22 (53,7) | 17 (54,8) | 1,00 |
IECA / BRA | 33 (80,5) | 24 (77,4) | 0,78 |
Furosemida | 10 (24,4) | 8 (25,8) | 1,00 |
Estatinas | 16 (39,0) | 5 (16,1) | 0,04 |
AAS | 22 (53,7) | 8 (25,8) | 0,03 |
ACO | 2 (4,9) | 0 (0,0) | 0,50 |
Espironolactona | 8 (19,5) | 11 (35,5) | 0,18 |
IECA: inibidor da enzima conversora de angiotensina; BRA: bloqueador do receptor de angiotensina II; AAS: ácido acetilsalicílico; ACO: anticoagulante oral.
Complexos QRS com duração inferior a 120 ms foram observados mais frequentemente nos pacientes sem indução de arritmias ventriculares sustentadas. Dentre os pacientes nos quais houve indução de arritmias ventriculares no EEF, o ângulo QRS-T encontrava-se normal em 13 (41,9%), limítrofe em 4 (12,9%) e anormal em 14 (45,2%). No grupo de pacientes sem indução de arritmia ventricular, o ângulo QRS-T estava normal em 26 (63,4%), limítrofe em 6 (14,6%) e anormal em 7 (17,1%; p = 0,04). Já a frequência de extrassístoles ventriculares ao Holter de 24 horas foi maior nos indivíduos que não induziram arritmias complexas no EEF (70,3% vs. 60,7%), porém, este achado não apresentou significância estatística (p = 0,71).
Em relação à fração de ejeção do ventrículo esquerdo, o valor médio no grupo com indução de arritmia ventricular foi de 42,6% comparado a 55,1% no grupo sem indução de arritmias (p = 0,003; Tabelas 4 e 5).
Tabela 4 Comparação de achados eletrocardiográficos entre os grupos
Achados eletrocardiográficos | Indução de taquicardia ventricular/fibrilação ventricular | |||
---|---|---|---|---|
Não 41 (56,4%) | Sim 31 (43,1%) | Valor de p | ||
BAV de primeiro grau | 12 (29,3) | 10 (32,3) | 0,80 | |
Bloqueio de ramo direito | 25 (61,0) | 16 (51,6) | 0,48 | |
Bloqueio divisional ântero-superior esquerdo | 29 (70,7) | 18 (58,1) | 0,32 | |
QRS < 120 ms | 16 (39,0) | 8 (25,8) | ||
QRS > 120 ms | 25 (61,0) | 23 (74,2) | 0,88 | |
Ângulo QRS-T | ||||
Normal | 26 (63,4) | 13 (41,9) | 0,04 | |
Limítrofe | 6 (14,6) | 4 (12,9) | ||
Anormal | 7 (17,1) | 14 (45,2) |
BAV: bloqueio atrioventricular.
Tabela 5 Comparação de achados ecocardiográficos e de Holter de 24h entre os grupos
Achados de ecocardiograma e Holter | Indução de taquicardia ventricular/fibrilação ventricular | ||
---|---|---|---|
Não 41 (56,4%) | Sim 31 (43,1%) | Valor de p | |
Disfunção diastólica de ventrículo esquerdo | 26 (63,4) | 16 (51,6) | 0,47 |
Disfunção de ventrículo direito | 1 (2,4) | 2 (6,5) | 0,57 |
Trombo de ventrículo esquerdo | 0 (0,0) | 1 (3,2) | 0,42 |
Fração de ejeção média | 55,12 | 42,57 | 0,03 |
0-10 extrassístoles ventriculares/hora | 6 (14,6) | 6 (19,4) | 0,71 |
11-30 extrassístoles ventriculares / hora | 5 (12,2) | 5 (16,1) | |
>31 extrassístoles ventriculares / hora | 26 (63,4) | 17 (54,8) |
A Figura 1 mostra os achados de um paciente com ângulo QRS-T anormal que induziu taquicardia ventricular sustentada durante o EEF.
Figura 1 À esquerda, eletrocardiograma demonstrando ângulo QRS-T anormal (SÂQRS= -70º; SÂT = +100º; QRS-T ângulo de 170º). À direita, taquicardia ventricular sustentada monomórfica induzida no estudo eletrofisiológico do mesmo paciente.
Na análise de regressão logística, a fração de ejeção se mostrou um forte preditor de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular nesta amostra. A cada ponto de aumento na fração de ejeção, observou-se redução em cerca de 4% na taxa de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular ao EEF. Quando comparado a pacientes com ângulo QRS-T normal, o risco de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular foi quatro vezes maior em pacientes com ângulo anormal [odds ratio (OR) 4; intervalo de confiança (IC) 1,298-12,325; p = 0,028). Após ajuste para outras variáveis como idade, fração de ejeção e tamanho do QRS, houve uma tendência do ângulo QRS-T anormal em identificar pacientes com maior risco de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular (OR 3,95; IC 0,99-15,82; p=0,052; Tabela 6).
Tabela 6 Análise multivariada em pacientes com indução de taquiarritmias ventriculares ao EEF
Indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular | ||||
---|---|---|---|---|
OR | Valor de p | Intervalo de confiança | ||
Idade > 65anos | 0,25 | 0,04 | 0,06 - 0,97 | |
Fração de ejeção < 35% | 4,84 | 0,02 | 1,23 - 19,09 | |
Uso de betabloqueador | 1,30 | 0,64 | 0,39 - 4,33 | |
QRS > 120 ms | 1,35 | 0,65 | 0,37 - 4,90 | |
Ângulo QRS-T | ||||
Normal | ||||
Limítrofe | 1,23 | 0,80 | 0,24 - 6,14 | |
Anormal | 3,95 | 0,052 | 0,99 - 15,82 |
Os resultados deste estudo mostram que cardiopatas chagásicos que apresentam ângulo QRS-T anormal no plano frontal tendem a apresentar maior risco de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular durante estimulação ventricular programada ao EEF. Este achado indica que uma variável eletrocardiográfica pode auxiliar o médico clínico a estabelecer o prognóstico de eventos arrítmicos futuros nesta população.
Sabe-se que as anormalidades na repolarização ventricular se associam a uma maior suscetibilidade a arritmias complexas6. Rassi e cols.7 demonstraram que o ECG alterado em associação à sintomatologia de insuficiência cardíaca - classe funcional III ou IV - confere ao paciente chagásico alto risco de mortalidade. Esta observação possibilita a orientação de terapias específicas direcionadas a este subgrupo de pacientes. Além disto, diversos estudos clínicos mostram que a análise da amplitude, duração e eixos espacial e frontal do ângulo QRS-T também são preditores fortes e independentes de mortalidade em pacientes idosos8,9, em portadores de HIV em tratamento antirretroviral10, em pacientes com doença arterial coronariana11 e em situações como a síndrome coronariana aguda12, no pós-infarto agudo do miocárdio13, na insuficiência cardíaca14 e na cardiomiopatia não isquêmica15.
Estudos prévios descreveram a importância do ângulo QRS-T como preditor independente de mortalidade em pacientes chagásicos16-18. Porém, não havia até agora relatos em pacientes chagásicos sobre a associação entre o valor do ângulo QRS-T e indução de arritmias ventriculares malignas, o que refletiria uma maior probabilidade de eventos arrítmicos de alto risco nesta população. Neste estudo, a comparação direta entre o ângulo QRS-T anormal e normal mostrou que o primeiro esteve associado a um risco quatro vezes maior de indução de arritmias ventriculares, assinalando a importância desta variável eletrocardiográfica simples na estratificação de risco de uma população portadora desta grave cardiopatia.
O método ideal para determinação do ângulo QRS-T é motivo de discussão. O cálculo do ângulo pode ser obtido através de determinação espacial ou através da simples diferença entre os ângulos do complexo QRS e da onda T no plano frontal. No primeiro caso, as derivações de Frank (X, Y, Z) são necessárias para o cálculo. Porém, estas derivações nem sempre são disponíveis nos eletrocardiógrafos convencionais. Este fato torna a utilização desta variável menos prática. Já a simples determinação da diferença entre os ângulos no plano frontal, como empregada neste estudo, é mais prática, e de fácil alcance e interpretação, portanto mais útil na prática clínica. Zhang e cols. demonstraram que a determinação do ângulo QRS-T no plano frontal apresenta boa correlação com os achados obtidos pela determinação espacial11. Entretanto, Brown e Schlegel19, após comparar a média do ângulo espacial QRS-T com ângulos planares frontais de QRS-T por meio de eletrocardiograma convencional e vetocardiograma em 370 pacientes com doença cardíaca comprovada por exames de imagem (doença arterial coronariana, cardiomiopatia hipertrófica e disfunção sistólica ventricular) e de 210 indivíduos aparentemente saudáveis, identificaram uma diferença estatisticamente significativa a favor de maior poder diagnóstico através do método espacial. Os autores tomaram este resultado como decisivo para sugerir o não uso do ângulo QRS-T no plano frontal como substituto do ângulo espacial QRS-T. Por outro lado, um estudo recente publicado por Aro e cols.20 utilizando a determinação do ângulo QRS-T no plano frontal demonstrou que 2% de uma população de 10.957 indivíduos apresentavam diferença >100º e maior taxa de mortalidade súbita de causa arrítmica e de mortalidade total em comparação aos indivíduos com o ângulo QRS-T normal. Estes dados e também os de Zhang e cols. dão sustentação à utilização da simples diferença entre os eixos do complexo QRS e da onda T no plano frontal como igualmente útil na determinação de indução de taquicardia ventricular / fibrilação ventricular em pacientes com doença de chagas submetidos ao EEF.
A presença de áreas fibróticas ou de tecidos com baixa capacidade de condução elétrica pode alterar o processo cardíaco de despolarização e repolarização, formando uma região na qual há um circuito reentrante. Anormalidades na ativação e na recuperação da ativação elétrica, obtidas por meio da diferença entre os ângulos dos complexos QRS e ondas T no plano frontal, podem sugerir a presença deste circuito. Foi provavelmente por esta razão que estas anormalidades estiveram associadas à maior probabilidade de indução de taquicardia ventricular nesta população de chagásicos.
Por fim, deve-se ressaltar que a disfunção sistólica ventricular esquerda esteve associada a uma frequência maior de indução de arritmias ventriculares malignas na população estudada. Estes resultados corroboram dados recentemente publicados por nosso grupo e refletem a importância prognóstica de circuitos arritmogênicos secundários a áreas de fibrose entremeadas com tecido de condução normal21.
As limitações deste estudo incluem sua natureza observacional retrospectiva, o número amostral pequeno e a coleta de dados apenas a partir de prontuários. O protocolo de estimulação ventricular foi semelhante em todos os pacientes avaliados, visto que segue uma metodologia proposta pelo serviço que vem sendo aplicada rotineiramente há vários anos.
Alterações no ângulo QRS-T e disfunção ventricular estiveram associadas à indução de arritmias ventriculares graves - taquicardia e fibrilação ventriculares - ao EEF na amostra estudada. A presença de extrassístoles ventriculares ou taquicardia ventricular não sustentada em monitorização Holter de 24 horas, assim como fatores clínicos como sexo masculino e história de síncope, não se mostraram preditores para indução de tal desfecho.