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Variação na função pulmonar está associada com piores desfechos clínicos em indivíduos com fibrose cística

Variação na função pulmonar está associada com piores desfechos clínicos em indivíduos com fibrose cística

Autores:

João Paulo Heinzmann-Filho,
Leonardo Araujo Pinto,
Paulo José Cauduro Marostica,
Márcio Vinícius Fagundes Donadio

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Pneumologia

versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756

J. bras. pneumol. vol.41 no.6 São Paulo nov./dez. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562015000000006

INTRODUÇÃO

A fibrose cística (FC) é uma doença genética, com evolução crônica, que compromete a função normal de diversos órgãos e sistemas. É caracterizada por alterações nas secreções do trato respiratório e gastrointestinal.1 É mais frequente (na proporção de 1/3.500 nascidos vivos) na população branca.2,3 É uma condição progressiva em que a doença pulmonar é o principal determinante de morbidade e mortalidade.4

Em razão dos avanços no tratamento e compreensão da FC, houve um aumento significativo da expectativa de vida dos indivíduos que sofrem da doença. Na Europa, a sobrevida dos pacientes com FC atingiu uma idade média de aproximadamente 35 anos.3,5 Estimativas mostram que pacientes nascidos após 2000 terão um expectativa de vida de mais de 50 anos de idade.2,5 Porém, o declínio progressivo da função pulmonar ao longo do tempo parece ser uma característica inevitável da doença em quase todos os casos.4 Portanto, o comprometimento da função pulmonar, quantificado pela medição do VEF1, expresso em porcentagem do previsto, é um dos principais marcadores que afetam a tomada de decisão clínica quanto à alteração ou intensificação dos esquemas terapêuticos empregados em pacientes com FC.6,7

Nas últimas décadas, tem-se estudado o VEF1 de pacientes com FC para se obter uma melhor compreensão da progressão da doença pulmonar associada e identificar grupos de risco nos quais seja indicado tratamento mais agressivo.7-9 Há relatos de declínio do VEF1 como um marcador de maior risco de hospitalização e morte em pacientes com doenças pulmonares obstrutivas crônicas,6,10 sendo esse declínio também considerado a melhor indicação isolada de transplante pulmonar. Achados anteriores mostraram que 80% das mortes relacionadas a FC estão direta ou indiretamente associadas a redução da função pulmonar.11

Os fatores de risco mais frequentemente associados ao declínio progressivo do VEF1 entre pacientes com FC incluem idade avançada, sexo feminino, uma mutação ΔF508 no regulador da condutância transmembrana da FC, presença de genes modificadores, insuficiência pancreática, baixo estado nutricional, diabetes mellitus e colonização do trato respiratório por Pseudomonas aeruginosa ou Burkholderia cepacia . Além disso, a produção diária de expectoração, a sibilância e o número de exacerbações pulmonares tratadas com antibióticos intravenosos também parecem estar relacionados a declínio da função pulmonar entre pacientes com FC.7,12,13 A importância e magnitude dos efeitos desses fatores parecem depender da idade do paciente.13 Ademais, achados recentes sugerem que a redução da distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos (DTC6) está associada a maior gravidade da doença pulmonar.14 Embora estudos tenham demonstrado que exacerbações agudas em pacientes com FC não modificam o coeficiente de variação para a função pulmonar medida ao longo do mesmo dia,15 outros estudos mostraram que tais exacerbações reduzem significativamente os valores espirométricos se os mesmos forem medidos ao longo de um ano.16 Porém, ainda há pouca informação sobre como a variação da função pulmonar em um ano pode influenciar o declínio pulmonar e funcional associado à doença nos anos subsequentes.

Seria útil identificar fatores adicionais que possam ajudar a prever o declínio da função pulmonar nos estágios iniciais da FC, já que, em muitos casos, o VEF1 torna-se anormal apenas nos estágios avançados da doença. Portanto, o objetivo do presente estudo foi determinar se a variação da função pulmonar ao longo de um ano está associada a piores desfechos clínicos e declínio da função pulmonar nos anos subsequentes.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo de coorte retrospectivo realizado por meio da revisão de um banco de dados secundários. Foram incluídos pacientes com diagnóstico de FC, confirmado por dosagem de cloro no suor ou teste genético, entre 4-19 anos de idade, atendidos no Ambulatório de Fibrose Cística do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), localizado na cidade de Porto Alegre (RS). Durante o período em estudo, aproximadamente 80 pacientes com FC estavam em acompanhamento no Ambulatório de Fibrose Cística. A cada três meses, cada paciente era submetido a avaliação clínica e testes de função pulmonar, ocasião na qual eram coletadas amostras (swab de orofaringe ou amostras de escarro) para cultura. O principal critério para inclusão foi ter sido submetido a testes de função pulmonar (espirometria) ao menos três vezes no primeiro ano (cada conjunto de testes tendo sido realizado com pelo menos três meses de intervalo) e a pelo menos um teste em cada um dos dois anos subsequentes. Além disso, incluímos apenas indivíduos com valores espirométricos aceitáveis e reprodutíveis de acordo com diretrizes internacionais, incluindo aqueles estabelecidos para pré-escolares. 17 A variação do VEF1 (ΔVEF1) no primeiro ano foi calculada pela seguinte fórmula:

ΔFEV1 = (hiFEV1 − loFEV1) / hiFEV1

onde maVEF 1 é o maior VEF1 (% do previsto) e meVEF 1 é o menor VEF1 (% do previsto). Se um paciente foi submetido a testes de função pulmonar mais de uma vez no segundo ou terceiro ano, selecionamos o melhor resultado espirométrico obtido, ou seja, o maior VEF1 (em porcentagem do previsto), em cada ano avaliado. Foram excluídos pacientes com dados incompletos no banco de dados. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS, sob o protocolo n. 08/04102.

Para cada paciente, foram coletados dados demográficos (idade, sexo e raça) e dados antropométricos, assim como informações relativas a infecção crônica por P. aeruginosa , número de dias de uso de antibióticos (orais, intravenosos ou ambos) e hospitalização. Considerou-se como infecção crônica por P. aeruginosa a infecção persistente por P. aeruginosa por pelo menos seis meses consecutivos (três testes consecutivos), determinada por cultura de swab de orofaringe ou de amostras de escarro (dependendo da idade ou estado clínico). Para facilitar análises posteriores, o uso de antibióticos e a hospitalização foram avaliados como variáveis dicotômicas (uso de antibióticos, sim/não; hospitalização, sim/não). Além disso, foram coletados dados sobre resultados de testes de função pulmonar (espirometria) e a DTC6. Ademais, a taxa de declínio do VEF1 foi determinada subtraindo-se o melhor VEF1 do terceiro ano do melhor VEF1 do primeiro ano. Os resultados finais estão expressos como porcentagens dos valores previstos. Os dados foram inseridos em um banco de dados, estratificados por ano (primeiro, segundo e terceiro ano).

Os testes de função pulmonar foram realizados com um espirômetro Koko (PDS Instrumentation, Inc., Louisville, CO, EUA). Os parâmetros espirométricos avaliados incluíram CVF, VEF1 e FEF25-75%. Todos os procedimentos foram realizados de acordo com os critérios estabelecidos pela American Thoracic Society . 17 Os dados espirométricos foram apresentados em porcentagens do previsto.18 Consideraram-se como normais os valores de VEF1 ≥ 80% do previsto.

O teste de caminhada de seis minutes (TC6) foi realizado de acordo com as diretrizes da American Thoracic Society .19 Os parâmetros avaliados no teste incluíram frequência cardíaca; SpO2, medida com um oxímetro de pulso (PalmSAT 2500; Nonin Medical, Plymouth, MN, EUA); pressão arterial, medida com um esfigmomanômetro (Tycos CE0050; Welch Allyn, Skaneateles Falls, NY, EUA); frequência respiratória, contada pela observação das excursões da parede torácica por minuto; e a pontuação da escala modificada de Borg, para quantificar a intensidade da percepção de dispneia. Os pacientes foram instruídos a caminhar o mais rápido possível durante seis minutos em um corredor de 30 m. A DTC6 foi calculada pela contagem do número total de voltas executadas durante o teste e foi expressa em metros. A normalização da DTC6 foi realizada utilizando-se uma equação de referência.20 Assim como o VEF1, a DTC6 foi considerada normal se ≥ 80% do previsto.

O tamanho da amostra foi estimado com base no comportamento das principais variáveis de interesse (VEF1 e DTC6). Adotando-se um nível de significância de p = 0,05, um poder de 80% e uma correlação mínima de 0,40, estimou-se o tamanho mínimo da amostra em aproximadamente 32 pacientes.

A normalidade dos dados foi testada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. Os dados com distribuição normal foram expressos em médias e desvios-padrão. A ΔVEF1 no primeiro ano foi calculada conforme descrito acima. Como a ΔVEF1 no primeiro ano apresentou distribuição assimétrica, foi efetuada a transformação raiz quadrada dos dados. As variáveis categóricas foram apresentadas em frequências absolutas e relativas. Para analisar diferenças na ΔVEF1 no primeiro ano em relação aos principais desfechos clínicos avaliados nos dois anos subsequentes (taxa de declínio do VEF1, hospitalização, DTC6, VEF1 absoluto e uso de antibióticos), utilizou-se o teste t de Student para amostras independentes. As correlações entre as variáveis foram avaliadas utilizando-se o teste de correlação de Pearson. Também foi utilizado um modelo de regressão linear múltipla stepwise para avaliar a influência de potenciais variáveis preditoras (idade, sexo, índice de massa corporal, infecção crônica por P. aeruginosa , VEF1 absoluto basal e ΔVEF1 no primeiro ano) sobre a taxa de declínio do VEF1. Os dados foram processados e analisados utilizando-se o pacote estatístico IBM SPSS, versão 18.0 (IBM Corporation, Armonk, NY, EUA). Em todos os testes, valores de p < 0,05 foram considerados estatisticamente significativos.

RESULTADOS

Um total de 38 pacientes com FC foi selecionado para inclusão. Para três pacientes, os dados do banco de dados estavam incompletos, e esses pacientes foram, portanto, excluídos. Consequentemente, a amostra final do estudo foi composta por 35 pacientes, dos quais 19 (54,2%) eram do sexo masculino. A idade média foi de 11,3 ? 3,8 anos. A maioria dos pacientes apresentava valores antropométricos dentro dos limites de normalidade. Em geral, a amostra apresentava comprometimento leve da função pulmonar. As características demográficas, antropométricas e clínicas da amostra são apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1 Características basais da amostra estudada.a 

Características (N = 35)
Idade (anos) 11,3 ? 3,8 (4,74-19,7)
Sexo masculino, n (%) 19 (54,2)
Raça branca, n (%) 31 (88,5)
Peso (kg) 39,3 ? 13,4 (19,4-63,7)
Altura (cm) 142,2 ? 19,3 (104,0-178,5)
IMC (kg/m2)
Absoluto 18,9 ? 2,6 (15,0-24,6)
Percentil 57,5 ? 31,5 (9,0-99,0)
Função pulmonar
VEF1 (L) 1,9 ? 0,8 (0,72-4,28)
VEF1 (% do previsto) 84,7 ? 22,1 (40,6-121,0)
CVF (L) 2,4 ? 1,0 (0,99-4,47)
CVF (% do previsto) 93,4 ? 17,7 (55,0-125,6)
FEF25-75% (L) 1,8 ? 1,0 (0,33-5,80)
FEF25-75% (% do previsto) 70,7 ? 35,2 (14,8-150,2)
Infecção bacteriana crônica
Pseudomonas aeruginosa, n (%) 12 (34,2)
Burkholderia cepacia, n (%) 2 (5,7)
Staphylococcus aureus, n (%) 17 (48,5)
Genótipo com pelo menos um alelo ΔF508, n (%) 13 (81,2)b
Insuficiência pancreática, n (%) 30 (85,7)

IMC: índice de massa corpórea. aResultados apresentados em média ? desvio-padrão (variação), exceto onde indicado. bDados genotípicos disponíveis apenas para 16 pacientes.

Na amostra total, a ΔVEF1 média no primeiro ano foi de 0,39 ? 0,13%. Como se pode observar na Figura 1A, essa variação foi significativamente maior entre pacientes que necessitaram de hospitalização do que entre aqueles que não necessitaram de hospitalização no terceiro ano (p = 0,03). A Figura 1B mostra que a ΔVEF1 média no primeiro ano também foi significativamente maior entre pacientes com DTC6 abaixo do normal do que entre aqueles com DTC6 normal no terceiro ano (p = 0,02). Além disso, a ΔVEF1 média no primeiro ano foi significativamente maior entre os pacientes que apresentaram valores menores de VEF1 no terceiro ano (p = 0,03; Figura 1C). Porém, com relação ao uso de antibioticoterapia (Figura 1D), a ΔVEF1 média no primeiro ano não diferiu significativamente entre os pacientes tratados com antibióticos no terceiro ano e aqueles que não o foram (p = 0,44).

Figura 1 Variação do VEF1 (ΔVEF1) no primeiro ano, em relação às seguintes variáveis no terceiro ano: hospitalização (A); distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos (B); VEF1 em porcentagem do previsto (C); e uso de antibióticos (D). DTC6: distância percorrida no teste de caminhada de seis minutos; e ATB: antibióticos. *p < 0,05. 

Entre os pacientes que apresentaram ΔVEF1 no primeiro ano ≥ 10%, a taxa de declínio do VEF1 ao longo dos dois anos seguintes foi significativamente maior do que entre aqueles que não apresentaram tal variação (p = 0,04; Figura 2). Além disso, foi identificada uma correlação negativa significativa entre a ΔVEF1 no primeiro ano e o VEF1 absoluto (% do previsto) no terceiro ano (r = −0,340, p = 0,04), demonstrando que quanto maior a variação da função pulmonar no primeiro ano, menor o VEF1 no terceiro ano (Figura 3A). Da mesma forma, houve uma correlação negativa significativa entre a ΔVEF1 no primeiro ano e a taxa de declínio do VEF1 ao longo dos dois anos seguintes (r = −0,52, p = 0,001; Figura 3B).

Figura 2 Comparação da taxa de declínio do VEF1 entre pacientes com baixa e alta variação do VEF1 (ΔVEF1) no primeiro ano. *p = 0,04. 

Figura 3 Variação do VEF1 (ΔVEF1) no primeiro ano, correlacionada com o VEF1 (% do previsto) no terceiro ano (A) e com a taxa de declínio do VEF1 (B). 

O modelo de regressão linear múltipla passo a passo, que incluiu idade, sexo, índice de massa corporal, infecção crônica por P. aeruginosa , VEF1 basal (% do previsto) e ΔVEF1 no primeiro ano (Tabela 2), revelou que a ΔVEF1 no primeiro ano foi o único preditor significativo da taxa de declínio do VEF1 ao longo dos dois anos seguintes (p = 0,001). O modelo mostrou que a ΔVEF1 no primeiro ano explicou 27% da subsequente taxa de declínio do VEF1.

Tabela 2 Regressão linear múltipla da taxa de declínio do VEF1 ao longo de dois anos (o segundo e terceiro anos do período de estudo). 

Parâmetros B Erro padrão de B IC95% p R2
Mínimo Máximo
Constante 12,014 6,415 −1,036 25,065
Variação do VEF1 no primeiro ano (%) −53,494 15,323 −84,668 −22,319 0,001 0,27

B: coeficiente não padronizado; e R2: coeficiente de determinação.

DISCUSSÃO

Os resultados do presente estudo sugerem que, em crianças e adolescentes com FC, maiores ΔVEF1 ao longo de um ano estão associadas a declínio mais acentuado da função pulmonar e piores desfechos clínicos ao longo dos anos subsequentes. Além disso, embora os pacientes aqui avaliados tenham apresentado apenas comprometimento leve da função pulmonar e estado nutricional preservado, a ΔVEF1 mostrou ser um preditor de declínio pulmonar progressivo, indicando que, mesmo nos estágios iniciais de progressão da FC, a quantificação desse parâmetro pode facilitar a detecção clínica do distúrbio.

A função pulmonar reduzida, identificada pela medição do VEF1, parece estar associada a maior mortalidade em pacientes com FC.12,21 Porém, em muitos casos, a função pulmonar diminui apenas nos estágios avançados da doença. Os achados do presente estudo demonstram que os pacientes que apresentaram maior variação do VEF1 ao longo de um ano tiveram maior declínio da função pulmonar ao longo dos dois anos subsequentes de acompanhamento. Porém, a correlação não foi forte, o que pode ser explicado pelo fato de a amostra estudada ser composta por pacientes jovens com estado nutricional preservado e comprometimento pulmonar leve. Além disso, nossos achados mostram que houve correlação moderada entre a ΔVEF1 no primeiro ano e a taxa de declínio do VEF1 ao longo dos dois anos seguintes, indicando que quanto maior a variação da função pulmonar ao longo de um ano, maior a taxa de declínio da função pulmonar nos anos subsequentes. Em um estudo anterior,8 variações do VEF1 ≥ 13% mostraram ser preditivas de progressão clínica mais rápida do comprometimento pulmonar em pacientes com FC, e alterações menores foram atribuídas a flutuações normais no teste. Porém, outros estudos sugeriram que melhor função pulmonar está associada a maior variabilidade no teste.22

Os pacientes com maior ΔVEF1 no primeiro ano apresentaram redução da função pulmonar ao longo dos dois anos subsequentes de acompanhamento. Esse achado demonstra que, embora a determinação do VEF1 seja considerada uma ferramenta útil para o acompanhamento da progressão do comprometimento pulmonar em pacientes com FC, o cálculo da ΔVEF1 pode ser uma ferramenta complementar de acompanhamento, pois pode ser utilizada mais precocemente do que a determinação do VEF1 em um único momento, já que, em muitos casos, essa última determinação está associada a maior mortalidade apenas nos estágios avançados da doença.12,21 No presente estudo, os pacientes com ΔVEF1 ≥ 10% no primeiro ano apresentaram declínio mais acentuado do VEF1 ao longo dos dois anos seguintes.

Como mencionado anteriormente, o modelo de regressão linear múltipla mostrou que 27% da taxa de declínio do VEF1 ao longo dos dois anos subsequentes de acompanhamento podem ser explicados pela ΔVEF1 durante o primeiro ano. Esse resultado enfatiza a importância de se avaliar a variação da função pulmonar ao longo de um período de tempo relativamente curto, dada a diminuição da função pulmonar observada depois desse período. Portanto, acreditamos que essa avaliação possa representar uma ferramenta adicional útil para o acompanhamento da progressão da doença em pacientes com FC, pois a redução isolada do VEF1 é frequentemente vista apenas nos estágios avançados da doença. Entretanto, ao analisarmos os dados sobre variabilidade, constatamos que aproximadamente 46% dos nossos pacientes apresentaram VEF1 basal baixo, com consequente aumento do VEF1 ao longo do primeiro ano, mostrando que esse parâmetro indica a variabilidade da função pulmonar em geral, e não especificamente o declínio progressivo esperado em pacientes com FC.

Com base em uma recente revisão da literatura, acreditamos que este seja o primeiro estudo a mostrar que a variação de curto prazo da função pulmonar está associada a piores desfechos clínicos ao longo do tempo em pacientes com FC. Nossos achados demonstram que os pacientes que apresentaram maior ΔVEF1 no primeiro ano foram mais propensos a necessitar de hospitalização no terceiro ano. Esses achados corroboram os de estudos anteriores, que mostraram que exacerbações pulmonares causam declínio da função pulmonar ao longo do tempo e que o declínio do VEF1 está associado à gravidade das exacerbações pulmonares, havendo necessidade de hospitalização e administração intravenosa de antibióticos.7,23,24 Além disso, a diminuição do VEF1 parece ser um preditor de hospitalização e mortalidade em pacientes com FC,6,13 e constatamos que a ΔVEF1 ao longo de um ano apresentou relação semelhante com desfechos da FC no presente estudo.

Estudos anteriores constataram uma associação entre o uso de antibióticos e o declínio da função pulmonar em pacientes com FC.7,24 No presente estudo, não foi encontrada nenhuma correlação significativa entre a ΔVEF1 no primeiro ano e o uso de antibióticos. Isso pode ser atribuído ao pequeno tamanho de nossa amostra e ao curto período do estudo. Outros autores mostraram que o uso de antibióticos intravenosos para o tratamento de exacerbações pulmonares é um fator de risco para o declínio da função pulmonar ao longo do tempo em pacientes com FC.23,25 Além disso, sugeriu-se que exacerbações consecutivas ao longo de um curto período de tempo contribuem para a progressão da doença pulmonar. Ademais, um estudo anterior demonstrou que a ocorrência de três exacerbações pulmonares por ano aumenta o risco de declínio do VEF1 em aproximadamente 5%.26

O TC6 é caracterizado como uma ferramenta importante para a avaliação funcional de respostas individuais ao exercício, proporcionando uma análise abrangente da função cardiovascular e pulmonar, na população em geral assim como em indivíduos com FC.19,27 O comprometimento da função pulmonar, a desnutrição e a fraqueza muscular foram descritos como de grande importância na determinação do desempenho físico de pacientes com FC. Além disso, o aumento da frequência respiratória, com ventilação com baixo volume corrente e hipoxemia, também parece limitar a capacidade física.27,28 Estudos recentes mostraram que existe uma correlação significativa entre a DTC6 e outros importantes desfechos clínicos, tais como VEF1, CVF e gravidade da doença, em pacientes com FC.14,29,30 Em nosso estudo, os pacientes com maior ΔVEF1 no primeiro ano também apresentaram DTC6 abaixo do normal no terceiro ano, indicando que o cálculo da ΔVEF1 pode ser uma ferramenta importante para a previsão de piora funcional em pacientes com FC. Embora duas equações tenham sido desenvolvidas para a padronização dos valores da DTC6 no Brasil,31,32 optamos por utilizar valores de referência internacionais,20 pois estes últimos incluem toda a faixa etária representada em nossa amostra e foram gerados a partir de indivíduos brancos, o que é relevante já que a maioria dos pacientes de nossa amostra era branca.

Nosso estudo apresenta certas limitações, principalmente as inerentes a utilização de um desenho retrospectivo e coleta de dados baseada em pesquisas em bancos de dados secundários. Além disso, nossa amostra era bastante homogênea em termos de função pulmonar e estado nutricional.

Em resumo, nossos achados sugerem que a variação da função pulmonar ao longo de um ano está associada a maior taxa de declínio do VEF1 e piores desfechos clínicos nos anos subsequentes. A avaliação da ΔVEF1 ao longo de um período de tempo relativamente curto pode, em conjunto com o acompanhamento rotineiro do VEF1, contribuir para a previsão de progressão da doença. Portanto, o cálculo desse parâmetro pode se tornar uma ferramenta adicional para o acompanhamento mais cuidadoso da progressão clínica da doença pulmonar em pacientes com FC.

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