versão impressa ISSN 0066-782X
Arq. Bras. Cardiol. vol.102 no.5 São Paulo maio 2014 Epub 17-Abr-2014
https://doi.org/10.5935/abc.20140050
O tratamento da insuficiência cardíaca evoluiu nas últimas décadas, sugerindo que sua sobrevida tem aumentado.
Verificar se houve melhora na sobrevida dos pacientes com insuficiência cardíaca avançada.
Comparamos retrospectivamente os dados de seguimento e tratamento de duas coortes de pacientes com insuficiência cardíaca sistólica admitidos para compensação até o ano 2000 (n = 353) e após 2000 (n = 279). Foram analisados: morte hospitalar, re-hospitalizações e morte no seguimento de 1 ano. Utilizamos os testes U de Mann-Whitney e qui-quadrado para comparação entre os grupos. Os preditores de mortalidade foram identificados pela análise de regressão por meio do método dos riscos proporcionais de Cox e análise de sobrevida pelo método de Kaplan-Meier.
Os pacientes internados até o ano 2000 eram mais jovens, tinham menor comprometimento ventricular esquerdo e receberam menor proporção de betabloqueadores na alta. A sobrevida dos pacientes hospitalizados antes de 2000 foi menor do que a dos hospitalizados após 2000 (40,1% vs. 67,4%; p < 0,001). Os preditores independentes de mortalidade na análise de regressão foram: a etiologia chagásica (hazard ratio: 1,9; intervalo de confiança de 95%: 1,3-3,0), inibidores da enzima conversora da angiotensina (hazard ratio: 0,6; intervalo de confiança de 95%: 0,4-0,9), betabloqueador (hazard ratio: 0,3; intervalo de confiança de 95%: 0,2-0,5), creatinina ≥ 1,4 mg/dL (hazard ratio: 2,0; intervalo de confiança de 95%: 1,3-3,0), sódio sérico ≤ 135 mEq/L (hazard ratio: 1,8; intervalo de confiança de 95%: 1,2-2,7).
Pacientes com insuficiência cardíaca avançada apresentaram melhora significativa na sobrevida e redução nas re-hospitalizações. O bloqueio neuro-hormonal, com inibidores da enzima conversora da angiotensina e betabloqueadores, teve papel importante no aumento da sobrevida desses pacientes com insuficiência cardíaca avançada.
Palavras-Chave: Insuficiência Cardíaca / terapia; Prognóstico; Insuficiência cardíaca / mortalidade; Doença de Chagas
The treatment of heart failure has evolved in recent decades suggesting that survival is increasing.
To verify whether there has been improvement in the survival of patients with advanced heart failure.
We retrospectively compared the treatment and follow-up data from two cohorts of patients with systolic heart failure admitted for compensation up to 2000 (n = 353) and after 2000 (n = 279). We analyzed in-hospital death, re-hospitalization and death in 1 year of follow-up. We used Mann-Whitney U test and chi-square test for comparison between groups. The predictors of mortality were identified by regression analysis through Cox proportional hazards model and survival analysis by the Kaplan-Meier survival analysis.
The patients admitted until 2000 were younger, had lower left ventricular impairment and received a lower proportion of beta-blockers at discharge. The survival of patients hospitalized before 2000 was lower than those hospitalized after 2000 (40.1% vs. 67.4%; p<0.001). The independent predictors of mortality in the regression analysis were: Chagas disease (hazard ratio: 1.9; 95% confidence interval: 1.3-3.0), angiotensin-converting-enzyme inhibitors (hazard ratio: 0.6; 95% confidence interval: 0.4-0.9), beta-blockers (hazard ratio: 0.3; 95% confidence interval: 0.2-0.5), creatinine ≥ 1.4 mg/dL (hazard ratio: 2.0; 95% confidence interval: 1.3-3.0), serum sodium ≤ 135 mEq/L (hazard ratio: 1.8; 95% confidence interval: 1.2-2.7).
Patients with advanced heart failure showed a significant improvement in survival and reduction in re-hospitalizations. The neurohormonal blockade, with angiotensin-converting-enzyme inhibitors and beta-blockers, had an important role in increasing survival of these patients with advanced heart failure.
Key words: Heart Failure / therapy; Prognosis; Heart Failure / mortality; Chagas Disease
A Insuficiência Cardíaca (IC) é uma síndrome clínica que reconhecidamente evolui com altas morbidade e mortalidade1 , 2. Em estudos epidemiológicos, os portadores de IC tiveram redução importante da Qualidade de Vida e evolução pior que muitos tipos de câncer3.
O tratamento com bloqueadores neuro-hormonais vem modificando essa história, reduzindo a alta mortalidade, a taxa de re-hospitalizações e melhorando a Qualidade de Vida dos portadores dessa síndrome4. Tal melhora foi bem demonstrada nos ensaios clínicos e estudos controlados, mas não sabemos o quanto essa melhora também é observada no mundo real, nos pacientes das instituições, dos ambulatórios e dos consultórios e, em especial, não temos dados do Brasil4.
Trabalhando em um hospital terciário de São Paulo, temos acompanhado a evolução dos pacientes com IC nas últimas duas décadas e observamos que a população que atendemos, nesses anos, não mudou substancialmente de características, uma vez que os critérios de internação não se modificaram. Esse fato permitiu que comparássemos a evolução dos pacientes, considerando dois períodos: antes e após o ano 2000.
Neste estudo procuramos verificar se a evolução dos pacientes com IC se modificou na comparação dos dois períodos e verificar, dentre as variáveis estudadas, quais estiveram associadas ao prognóstico dessa síndrome.
Foram estudados prospectivamente 632 pacientes internados em um hospital terciário de São Paulo, todos com IC avançada, disfunção sistólica com fração de ejeção < 40%, em classe funcional III/IV da New York Heart Association (NYHA). Os pacientes desse hospital eram provenientes do pronto-socorro e foram para lá transferidos, quando não compensaram após as primeiras medidas ou por necessitarem de suporte inotrópico para compensação. Esses critérios de seleção para a internação levaram à internação de pacientes mais graves, com intensa manifestação clínica.
Todos os pacientes foram avaliados clinica e laboratorialmente, incluindo dosagem bioquímica, hemograma, ecocardiograma e exame radiológicos. Quanto à etiologia da cardiopatia, os pacientes foram divididos em três grupos: aqueles com cardiopatia chagásica, os com cardiopatia isquêmica e os com cardiopatia não isquêmica. O diagnóstico de cardiopatia chagásica foi feito pela presença de reações sorológicas positivas, e o de cardiopatia isquêmica quando da presença de história de infarto, angina ou de confirmação mediante estudo cinecoronariográfico. Na ausência dessas características, o paciente foi considerado portador de cardiopatia não isquêmica.
Esses pacientes fizeram parte de um banco de dados de estudos prospectivos de pacientes hospitalizados, no nosso serviço, por IC avançada e descompensada, todos com os mesmos critérios de inclusão citados acima2 , 5 - 8. Os pacientes foram incluídos em diferentes anos, o que nos permitiu realizar uma análise temporal com relação a evolução do prognóstico e tratamento desta síndrome. Para fim dessa análise, realizada retrospectivamente, os pacientes foram divididos em dois grupos: aqueles internados até 31 de dezembro de 2000 e aqueles internados após essa data. Os pacientes incluídos no estudo internados antes do ano 2000 fizeram parte de estudos prospectivos nos anos de 1992, 1994, 1996 e 19995 - 8. Os pacientes incluídos após o ano 2000 foram estudados em 2005 e 20062. Compararam-se as características dos dois grupos, considerando-se aspectos clínicos, laboratoriais e de evolução.
Os pacientes foram seguidos por 1 ano, sendo que o status vital dos pacientes, as passagens no pronto-socorro e a necessidade de reinternação foram determinados por contato telefônico ou pela revisão do prontuário médico eletrônico. O desfecho clínico analisado foi a mortalidade por todas as causas durante o período de seguimento.
Dentre esses pacientes, um subgrupo teve analisado o tratamento durante e após a alta e, nesse subgrupo, composto por 333 pacientes (52,7% do total), avaliaram-se os preditores de mortalidade2 , 8. Esse subgrupo foi selecionado com base na disponibilidade dos dados da terapêutica medicamentosa utilizada durante a hospitalização e pré-alta hospitalar.
As variáveis contínuas foram apresentadas por meio de média ± desvio padrão, e as variáveis categóricas por meio de frequências e percentagens. Comparamos as características dos pacientes com relação à mortalidade ao final do seguimento. As variáveis contínuas foram analisadas pelo teste U de Mann-Whitney e as variáveis categóricas pelo teste qui-quadrado ou pelo teste exato de Fisher.
Os preditores de mortalidade foram determinados por análise uni e multivariada, utilizando-se o método dos riscos proporcionais de Cox. Foi construído um modelo de regressão para o desfecho primário ajustado para as características clínicas, laboratoriais e dos medicamentos administrados. O critério de seleção das variáveis do modelo foi apresentar o valor de p < 0,200 na análise univariada. O modelo final foi construído com um procedimento de stepwise forward. Todas as variáveis preditoras com p < 0,05 foram mantidas no modelo final. Foi apresentado hazard ratio, com o correspondente Intervalo de Confiança de 95% (IC95%) e valor de p.
Com base nos dados do seguimento, construíram-se curvas de sobrevida pelo método de Kaplan-Meier. Todas as análises estatísticas foram realizadas com o software estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS).
Valores de p apresentados são bicaudais, tendo sido adotado um nível de significância de 5%.
A idade média dos pacientes foi de 54,8 ± 15,1 anos e a maioria era do sexo masculino 435 (68,8%). A fração de ejeção média do Ventrículo Esquerdo (VE) foi de 28,2 ± 7,2% e a Pressão Arterial (PA) sistólica média foi de 104,6 ± 22,9 mmHg. A etiologia mais frequente da cardiopatia foi a não isquêmica, seguida pela chagásica e pela isquêmica.
A maioria dos pacientes apresentou insuficiência renal não dialítica.
Foram incluídos no estudo 353 pacientes hospitalizados nos anos de 1992 a 31 de dezembro de 2000, e 279 pacientes hospitalizados nos anos de 2005 e 2006.
Na Tabela 1, apresentamos a comparação das características basais entre os pacientes internados até o ano 2000 e após 2000.
Tabela 1 Comparação das características entre os grupos antes e após o ano 2000
Características | População (n = 632) | Ano de tratamento | Valor de p | |
---|---|---|---|---|
Antes 2000 (n = 353) | Após 2000 (n = 279) | |||
Idade (anos) | 54,8 ± 15,1 | 59,0 ± 14,8 | 51,5 ± 14,5 | < 0,001 |
Sexo masculino | 435 (68,8) | 255 (72,2) | 180 (64,5) | 0,037 |
Etiologia: | ||||
Isquêmica | 132 (20,9) | 56 (15,0) | 76 (27,2) | < 0,001 |
Não isquêmica (não chagásica) | 312 (49,4) | 173 (49,0) | 139 (49,8) | 0,839 |
Chagásica | 188 (29,7) | 124 (35,1) | 64 (22,9) | 0,001 |
FEVE (%) | 28,2 ± 7,2 | 30,8 ± 5,9 | 24,7 ± 7,3 | < 0,001 |
Creatinina (mg/dL) | 1,5 ± 0,7 | 1,5 ± 0,5 | 1,5 ± 0,5 | 0,239 |
Sódio (mEq/L) | 135,7 ± 5,0 | 136,7 ± 4,7 | 134,9 ± 5,1 | < 0,001 |
PAS (mmHg) | 103,6 (25,4) | 102,6 ± 21,9 | 105,0 ± 30,1 | 0,163 |
Mortalidade (1 ano) | 264 (41,8) | 200 (56,7) | 63 (22,8) | < 0,001 |
FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; PAS: pressão arterial sistólica.,
Os pacientes internados até o ano 2000 foram 7,5 anos mais jovens que aqueles internados após o ano 2000 e tiveram fração de ejeção menos comprometida e níveis de sódio plasmático mais baixos. O percentual de pacientes com doença de Chagas foi maior nas internações até o ano 2000.
A sobrevida dos pacientes hospitalizados até o ano 2000 foi de 40,1% e daqueles hospitalizados após o ano 2000 de 67,4%, com aumento de 68% na taxa de sobrevida no primeiro ano de seguimento (Figura 1).
Figura 1 Sobrevida dos pacientes hospitalizados por insuficiência cardíaca descompensada antes e após o ano 2000. A probabilidade de sobrevida em 1 ano de seguimento foi de 40,1% nos pacientes hospitalizados antes do ano 2000 e de 67,4% nos pacientes hospitalizados após o ano 2000 (p < 0,001).
Para análise das possíveis variáveis relacionadas à sobrevida, avaliaram-se os dados de 333 pacientes (52,7% do total). Esses dados estão apresentados na Tabela 2. Nessa análise, observou-se que os inotrópicos foram necessários no período de compensação em 209 (62,8%) pacientes. Na alta, a maioria dos pacientes estava recebendo prescrição de um bloqueador do sistema renina-angiotensina (72,4%) e um betabloqueador (59,8%). Foram tratados com carvedilol 186 (55,9%) pacientes e 13 pacientes (3,9%) com o succinato de metoprolol. Na comparação dos dois grupos, os pacientes internados até o ano 2000 receberam prescrição de betabloqueador em menor percentual e prescrição de digoxina em maior proporção.
Tabela 2 Comparação dos pacientes em relação ao ano de tratamento
Características | População (n = 333) | Ano de tratamento | Valor de p | |
---|---|---|---|---|
Antes 2000 (n = 70) | Após 2000 (n = 263) | |||
Idade (anos) | 58,7 ± 15,4 | 54,2 ± 15,8 | 59,9 ± 15,1 | 0,011 |
Sexo masculino | 213 (64,0) | 48 (68,6) | 165 (62,7) | 0,366 |
Etiologia: | ||||
Isquêmica | 94 (28,2) | 18 (25,7) | 76 (28,9) | 0,599 |
Não isquêmica (não chagásica) | 163 (48,9) | 33 (47,1) | 130 (49,4) | 0,734 |
Chagásica | 76 (22,8) | 19 (27,1) | 57 (21,7) | 0,333 |
FEVE (%) | 28,0 ± 11,4 | 31,3 ± 8,4 | 27,1 ± 11,9 | < 0,001 |
Hemoglobina (g/L) | 13,2 ± 2,0 | 13,9 ± 2,1 | 13,0 ± 1,9 | 0,001 |
Ureia (mg/dL) | 74,7 ± 42,5 | 72,9 ± 35,2 | 75,1 ± 44,2 | 0,842 |
Creatinina (mg/dL) | 1,5 ± 0,7 | 1,4 ± 0,5 | 1,5 ± 0,8 | 0,699 |
Sódio (mEq/L) | 136,6 ± 4,9 | 135,9 ± 5,4 | 136,7 ± 4,7 | 0,083 |
PAS (mmHg) | 105,3 ± 23,3 | 111,7 ± 25,4 | 103,5 ± 22,4 | 0,017 |
PAD (mmHg) | 68,7 ± 18,1 | 76,7 ± 17,9 | 66,3 ± 17,5 | < 0,001 |
Medicações: | ||||
Dobutamina | 187 (57,9) | 36 (51,4) | 151 (57,4) | 0,216 |
Milrinone | 6 (1,9) | 0 (0,0) | 6 (2,3) | 0,346 |
Levosimendan | 16 (5,0) | 0 (0,0) | 16 (6,1) | 0,028 |
IECA | 241 (72,4) | 60 (85,7) | 181 (68,8) | 0,005 |
Betabloqueadores | 199 (59,8) | 8(11,4) | 191 (72,6) | < 0,001 |
Losartan | 42 (12,7) | 0 (0,0) | 42 (16,0) | < 0,001 |
Nitratos | 117 (35,2) | 39 (55,7) | 78 (29,7) | < 0,001 |
Hidralazina | 108 (32,5) | 16 (22,9) | 92 (35,0) | 0,052 |
Digoxina | 194 (58,6) | 64 (92,8) | 130 (49,4) | < 0,001 |
Espironolactona | 48 (14,5) | 0 (0,0) | 48 (18,3) | < 0,001 |
Furosemida | 261 (78,6) | 70 (100,0) | 191 (72,6) | < 0,001 |
Hidroclorotiazida | 59 (17,8) | 0 (0,0) | 59 (22,4) | < 0,001 |
Resultados clínicos: | ||||
Mortalidade Hospitalar | 37 (11,1) | 14 (20,0) | 23 (8,7) | 0,008 |
Mortalidade no seguimento (1 ano) | 106 (31,8) | 44 (62,9) | 62 (23,6) | < 0,001 |
Re-hospitalização | 109 (32,8) | 36 (51,4) | 73 (27,9) | < 0,001 |
Eventos clínicos | 168 (49,2) | 56 (80,0) | 108 (41,1) | < 0,001 |
Os dados são expressos por média ± desvio padrão ou número (porcentagem).
FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; IECA: inibidor da enzima de conversão da angiotensina. Eventos clínicos, morte ou re-hospitalização em 1 ano.
Nessa análise, os pacientes internados até o ano 2000 tiveram maior mortalidade hospitalar (20,0% vs. 8,7%; p = 0,008) e foram mais re-hospitalizados do que os internados após o ano 2000 (51,4% vs. 27,9%; p < 0,001). No seguimento de 1 ano, a mortalidade daqueles internados até o ano 2000 foi de 62,9% vs. 23,6% naqueles hospitalizados após 2000 (p < 0,001).
O tempo de internação não diferiu nos dois grupos, sendo de 28,3 ± 21,1 dias nos internados até o ano 2000 e de 25,1 ± 16,7 dias (p = 0,251) naqueles hospitalizados após o ano 2000.
Nas Tabelas 3 e 4, apresentamos a comparação das características dos pacientes, com relação à mortalidade, no seguimento de 1 ano e a análise de regressão univariada e multivariada dos preditores de morte nesse período. Foram preditores de maior mortalidade a etiologia chagásica, a presença de disfunção renal (níveis de ureia e creatinina mais elevados), nível de sódio mais baixo e utilização de nitratos. As variáveis associadas com redução da mortalidade foram a prescrição de Inibidor da Enzima de Conversão da Angiotensina (IECA) e betabloqueadores. Na análise de regressão multivariada, cinco variáveis foram identificadas como preditores independentes de mortalidade, sendo três associadas à piora do prognóstico (etiologia chagásica, creatinina ≥ 1,4 mg/dL e sódio ≤ 135 mEq/L) e duas associadas à melhora do prognóstico: a prescrição de IECA e de betabloqueadores. As Figuras de 2 e 3 apresentam as curvas de sobrevida estratificadas para IECA e betabloqueadores. Na Figura 4, a curva de sobrevida foi estratificada para o uso combinado de IECA e betabloqueadores, demonstrando melhora na sobrevida dos pacientes que fizeram uso combinado das duas medicações.
Tabela 3 Comparação dos pacientes em relação a mortalidade em 1 ano
Características | Morte em 1 ano | Valor de p | |
---|---|---|---|
Sim (n = 106) | Não (n = 227) | ||
Idade (anos) | 58,2 ± 17,3 | 58,9 ± 14,5 | 0,928 |
Sexo masculino | 63 (59,4) | 150 (66,1) | 0,239 |
Etiologia: | |||
Isquêmica | 27 (25,5) | 67 (29,5) | 0,445 |
Não isquêmica (não chagásica) | 44 (41,5) | 119 (52,4) | 0,063 |
Chagásica | 35 (33,0) | 41 (18,1) | 0,002 |
FEVE (%) | 28,9 ± 9,5 | 27,6 ± 12,1 | 0,116 |
Hemoglobina (g/L) | 13,3 ± 2,2 | 13,1 ± 1,8 | 0,311 |
Ureia (mg/dL) | 80,8 ± 42,8 | 71,8 ± 42,1 | 0,016 |
Creatinina (mg/dL) | 1,5 ± 0,5 | 1,5 ± 0,8 | 0,043 |
Sódio (mEq/L) | 135,3 ± 4,9 | 137,1 ± 4,8 | 0,001 |
PAS (mmHg) | 103,1 ± 20,7 | 106,4 ± 24,5 | 0,505 |
PAD (mmHg) | 69,3 ± 15,3 | 68,4 ± 19,3 | 0,503 |
Medicações | |||
Inotrópicos | 75 (71,4) | 127 (57,5) | 0,015 |
IECA | 69 (65,1) | 172 (75,8) | 0,042 |
Betabloqueador | 36 (34,0) | 163 (71,8) | < 0,001 |
Losartan | 12 (11,3) | 30 (13,2) | 0,649 |
Nitratos | 47 (44,3) | 70 (30,8) | 0,014 |
Hidralazina | 38 (35,8) | 70 (30,8) | 0,333 |
Digoxina | 76 (71,7) | 118 (52,0) | < 0,001 |
Espironolactona | 11 (10,4) | 37 (16,3) | 0,161 |
Furosemida | 90 (84,9) | 171 (75,3) | 0,032 |
Hidroclorotiazida | 18 (17,0) | 41 (18,1) | 0,839 |
Os dados são expressos por média ± desvio padrão ou número (porcentagem).
FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; PAS: pressão arterial sistólica; PAD: pressão arterial diastólica; IECA: inibidor da enzima de conversão da angiotensina.
Tabela 4 Análise de regressão univariada e multivariada (Cox) dos preditores de morte
Preditor (análise univariada) | Hazard ratio | Intervalo de confiança de 95% | Valor de p |
---|---|---|---|
Idade > 60 anos | 1,0 | 0,7 - 1,5 | 0,998 |
Sexo masculino | 0,8 | 0,5 - 1,2 | 0,247 |
Etiologia: | |||
Isquêmica | 0,8 | 0,5 - 1,3 | 0,389 |
Não isquêmica (não chagásica) | 0,7 | 0,5 - 1,1 | 0,124 |
Chagásica | 1,8 | 1,2 - 2,7 | 0,008 |
FEVE < 0,25 | 0,8 | 0,6 - 1,3 | 0,382 |
Anemia | 1,0 | 0,7 - 1,6 | 0,939 |
Ureia ≥ 60 mg/dL | 1,7 | 1,1 - 2,5 | 0,013 |
Creatinina ≥ 1,4 mg/dL | 1,6 | 1,1 - 2,4 | 0,013 |
Sódio ≤ 135 mEq/L | 1,8 | 1,2 - 2,6 | 0,004 |
PAS < 90 mmHg | 0,9 | 0,5 - 1,5 | 0,640 |
Medicações | |||
Inotrópicos | 1,7 | 1,1 - 2,7 | 0,008 |
IECA | 0,6 | 0,4 - 0,9 | 0,020 |
Betabloqueador | 0,3 | 0,2 - 0,5 | <0,001 |
Losartan | 1,1 | 0,6 - 2,0 | 0,788 |
Nitrato | 1,6 | 1,1 - 2,4 | 0,017 |
Hidralazina | 1,4 | 0,9 - 2,1 | 0,097 |
Digoxina | 1,4 | 0,9 - 2,2 | 0,106 |
Espironolactona | 0,7 | 0,4 - 1,3 | 0,274 |
Hidroclorotiazida | 1,2 | 0,7 - 2,0 | 0,483 |
Furosemida | 1,4 | 0,8 - 2,4 | 0,205 |
Preditor (análise multivariada) | Hazard ratio | Intervalo de confiança de 95% | Valor de p |
Creatinina ≥ 1,4 mg/dL | 2,0 | 1,3 - 3,0 | 0,002 |
Etiologia chagásica | 1,9 | 1,3 - 3,0 | 0,002 |
IECA | 0,6 | 0,4 - 0,9 | 0,040 |
Betabloqueador | 0,3 | 0,2 - 0,5 | < 0,001 |
Sódio ≤ 135 mEq/L | 1,8 | 1,2 - 2,7 | 0,003 |
FEVE: fração de ejeção do ventrículo esquerdo; PAS: pressão arterial sistólica; ECA: enzima de conversão da angiotensina.
Figura 2 Sobrevida em 1 ano de seguimento dos pacientes hospitalizados por insuficiência cardíaca descompensada, segundo o uso de betabloqueadores: 73,9% vs. 35,0% (p < 0,001).
Figura 3 Sobrevida em 1 ano de seguimento dos pacientes hospitalizados por insuficiência cardíaca descompensada segundo o uso de inibidores da enzima de conversão da angiotensina: 59,5% vs. 41,8% (p = 0,018).
Figura 4 Sobrevida em 1 ano de seguimento dos pacientes hospitalizados por insuficiência cardíaca, segundo o uso combinado de betabloqueadores (Betabloq) e inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA). Os pacientes foram estratificados em quatro grupos segundo o uso do Betabloq/IECA: sim/sim, sim/não, não/sim, não/não. A probabilidade de sobrevida foi respectivamente de: 78,7%, 58,5%, 38,9% e 25,5% (p < 0,001).
Segundo os resultados deste estudo observacional, constatamos que, neste novo século, a sobrevida dos pacientes com IC avançada melhorou significativamente, bem como as taxas de re-hospitalizações. Esteve associado a esse aumento da sobrevida o tratamento com bloqueadores neuro-hormonais, especialmente os IECA e os betabloqueadores.
A IC, na forma avançada, é uma doença maligna com mortalidade superior a alguns tipos de câncer3. Mesmo com o tratamento atual, ela pode ser alta nas formas mais graves, uma vez que a mortalidade guarda uma relação com a intensidade da cardiopatia e de suas manifestações clínicas9. Para nossa instituição, um hospital terciário de São Paulo, são encaminhados os pacientes com a forma avançada da doença, o que resulta em mortalidade mais alta do que a observada em outras instituições. Nossa mortalidade hospitalar atual é de aproximadamente 8% e pudemos constatar que cerca de um quarto dos pacientes que tiveram alta morreram no primeiro ano de seguimento2. Embora essa mortalidade seja ainda elevada, quando comparamos com os dados dos pacientes hospitalizados até o ano 2000, constatamos importante redução. Deve-se salientar que, quando comparamos as características da população estudada nos dois períodos, antes e após o ano 2000, observamos que elas são bastante semelhantes, mas a população internada, após o ano 2000 apresenta alterações que indicam manifestações clínicas mais acentuadas, como nível de ureia e creatinina na admissão mais elevadas e fração de ejeção do VE menor. Apesar desses sinais de maior gravidade, comparando-se os dois períodos, observa-se importante redução na mortalidade, que passou de 20% para os atuais 8,8%2. Essa redução se deveu provavelmente à conduta mais agressiva no tratamento da descompensação cardíaca e à maior proporção de pacientes tratados com IECA e betabloqueadores na atualidade10 , 11.
Em nossa instituição, IECA e betabloqueadores não são sistematicamente suspensos quando da hospitalização por descompensação cardíaca12. O IECA tem, em geral, sua dose aumentada, uma vez que, na descompensação cardíaca, a vasoconstrição é a principal alteração fisiopatológica. O betabloqueador é mantido e, nos casos em que são necessários inotrópicos, a dose do betabloqueador é reduzida pela metade, o que resulta que muitos pacientes persistem tomando 6,25 mg ou 12,5 mg do carvedilol duas vezes ao dia. Na análise multivariada, a prescrição do IECA e do betabloqueador foi associada à redução de mortalidade. Dessa forma, o bloqueio neuro-hormonal mais intenso teve participação importante nesse aumento da sobrevida intra-hospitalar. Assim, embora a mortalidade hospitalar continue elevada, ela está diminuindo, quando se consideram os dados dos dois períodos de nossa instituição. É importante ressaltar que os dados do Sistema Único de Saúde (SUS) não mostram a ocorrência de redução que observamos, havendo, em verdade, de 1992 para 2002, um aumento na mortalidade (5,41% para 6,97%), quando se analisam todas as internações por IC no Brasil2.
Quando comparamos os nossos índices com os dados da Europa e dos Estados Unidos em diferentes registros de IC, de modo geral, a mortalidade em nosso hospital é maior. Mas, muito dessa mortalidade elevada decorre, provavelmente, da maior gravidade dos pacientes internados em nosso serviço. Quando comparamos as características dos pacientes internados, observa-se essa maior gravidade entre os brasileiros. Por exemplo, quando comparamos nossos dados com os do registro norte-americano ADHERE, é possível constatar que 74,9% dos pacientes hospitalizados em nosso hospital tinham PA sistólica < 115 mmHg, enquanto no registro ADHERE apenas 18,5% eram hipotensos9. PA baixa é um importante marcador prognóstico em vários estudos, incluindo o ADHERE. Um dado importante a se observar é que, apesar da maior mortalidade geral de nossos pacientes, quando se analisou o total dos pacientes de maior gravidade (BUN > 43 mg/Dl, PA < 115 mmHg e creatinina > 2,75 mg/Dl), a mortalidade não diferiu substancialmente, tendo sido a dos nossos pacientes numericamente menor do que a do estudo americano (14,0% vs. 15,3%), o que sugere que nosso tratamento, além de correto, têm reduzido a mortalidade de população tão grave9.
Mesmo em relação aos hospitais do Brasil, embora os dados sejam escassos, pudemos observar que a mortalidade em nosso hospital, apesar da maior gravidade dos nossos casos, foi menor que a apresentada nessas outras instituições. No Rio de Janeiro, entre os pacientes atendidos no pronto-socorro de uma instituição privada, a mortalidade foi de 10,6% e, em Porto Alegre, num hospital escola como o nosso, foi de 11%13 , 14. Essas diferenças na mortalidade provavelmente decorreram do critério de seleção para internação e do período de coleta dos dados, mas os números são muito semelhantes aos nossos.
Mais significante foi, entretanto, a redução de mortalidade no seguimento dos pacientes. Observamos redução da mortalidade no primeiro ano de seguimento, tendo ela passado de mais de 50% para os atuais 23,6%, redução esta relativa de cerca de 50%. Esse resultado foi semelhante ao observado na Espanha, onde a mortalidade no período de 1991 a 1996 era de 24% tendo passado para 16% em 2000 e 200115. Melhora do prognóstico também foi descrita em Baltimore e na Suécia, e, nesses estudos, os autores referiram que essa melhora ocorreu após o estabelecimento do tratamento com IECA e betabloqueadores, mas não analisaram especificamente o papel de sua prescrição, no que diferiram do nosso estudo16 , 17.
O ano 2000 pode ser considerado um divisor de águas para o tratamento da IC crônica, pois, em 1999, foram publicados dois estudos importantes sobre betabloqueadores na IC, o estudo MERIT-HF e o CIBIS-II, que alicerçaram a indicação dos betabloqueadores para o tratamento da IC crônica18 , 19. Pudemos constatar esse aumento de prescrição em nosso hospital, pois, até 2000, no ambulatório, a prescrição de betabloqueador atingiu cerca de 10% dos pacientes, passando para 70% na avaliação em 200420. Essa maior prescrição do betabloqueador, sem dúvida, teve papel fundamental na melhora do prognóstico da IC em nosso hospital.
Na análise univariada de fatores preditores da mortalidade, observa-se que a prescrição de IECA e de betabloqueadores esteve associada à melhora no prognóstico. Foram associados à piora os marcadores de maior comprometimento cardíaco e sistêmico, usualmente identificados nos estudos que avaliaram prognóstico (funções renal e ventricular), bem como a etiologia chagásica. Na análise multivariada, persistiram como marcadores os IECA e os betabloqueadores, tendo este um impacto maior.
Ao lado da documentação do valor do bloqueio neuro-hormonal promovendo o aumento da sobrevida, também nesse estudo a cardiopatia chagásica foi acompanhada de pior prognóstico, confirmando os achados de outros estudos brasileiros21 , 22.
Apesar dos grupos analisados (antes e após 2000) não serem homogêneos (Tabela 2), devido à natureza deste estudo (observacional e retrospectivo), o que mais chamou a atenção foi que, embora os pacientes do grupo, após 2000, eram mais graves (idade média maior, menor FEVE e menor PAS média), esse grupo − de maior gravidade − foi o que justamente apresentou os melhores resultados clínicos no seguimento, com menor mortalidade e menores taxas de re-hospitalização. Devemos levar em consideração que esses resultados são observacionais e que outros fatores, como melhora na aderência ao tratamento e cointervenções (por exemplo: cirurgia cardíaca e procedimentos intervencionistas), após a alta hospitalar, não foram quantificados e podem ter influenciado na melhora do prognóstico, além da maior taxa de prescrição dos bloqueadores neuro-hormonais, em especial os betabloqueadores. Deve-se observar que um possível viés de seleção foi o fato ter termos realizado as análises de sobrevida em pouco mais de 50% dos pacientes do estudo, dos quais tínhamos disponíveis os dados com relação a terapêutica utilizada. Ainda com relação à terapêutica, fizemos a análise qualitativa, enquanto que a análise quantitativa da dose, na alta e no seguimento, seriam importantes para avaliarmos a influência da dose otimizada dessas medicações no prognóstico dos pacientes. Entretanto, essas questões poderão ser analisadas em futuros estudos.
Este estudo apresentou indícios de que, no mundo real, a sobrevida de portadores de Insuficiência Cardíaca tem aumentado e de que a otimização do tratamento com bloqueadores neuro-hormonais tem papel importante nessa melhora do prognóstico.