versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170073
Hipervolemia crônica e distúrbios ventriculares esquerdos são sinais característicos de doença renal terminal (DRT). As duas intercorrências levam a uma elevada prevalência de congestão pulmonar em pacientes com DRT em hemodiálise (HD). Estima-se que 60% dos pacientes em HD de manutenção apresentam congestão pulmonar.1 Além da hipervolemia e da insuficiência cardíaca, níveis elevados de inflamação em pacientes com DRT contribuem para o surgimento de congestão pulmonar devido a doença microvascular pulmonar, provocando extravasamento capilar.2,3
A congestão pulmonar é um forte marcador prognóstico de eventos cardíacos e óbito entre pacientes com DRT submetidos a HD. Pacientes em HD com congestão grave têm risco de óbito 4,2 vezes maior e risco de acometimento cardíaco na forma de eventos tais como infarto do miocárdio, angina, insuficiência cardíaca ou arritmia 3,2 vezes maior.1
A avaliação clínica e a análise por bioimpedância são utilizadas diariamente nos centros de diálise para estimar a superidratação de pacientes em HD de forma a controlar a congestão pulmonar. Contudo, a volemia extracelular avaliada por bioimpedância tem fraca associação com água nos pulmões.4 Água extracelular e nos pulmões foram comparadas em função de seu valor preditivo para eventos adversos. A conclusão foi que a água nos pulmões, e não a extracelular, é de longe o preditor mais importante.4
Assim, como podemos detectar a água nos pulmões? Apesar de extremamente invasiva, a pressão capilar pulmonar em cunha é o método mais confiável para estimar a água extracelular nos pulmões. Recentemente a ultrassonografia surgiu como um método seguro, acessível e confiável para medir a congestão pulmonar.5 Apesar de sua simplicidade, a ultrassonografia torácica ainda não foi incorporada na avaliação clínica de rotina. Na prática diária, a congestão pulmonar costuma ser avaliada primeiramente perguntando-se ao pacientes sobre sintomas, como tosse seca, falta de ar e dispneia.
Contudo, mesmo os pacientes com congestão pulmonar de moderada a grave são, em sua maioria, assintomáticos.1 Em segundo lugar, a água nos pulmões é estimada pela avaliação da hipervolemia por bioimpedância. Porém, como dito acima, a água extracelular total pode não se correlacionar com água nos pulmões. Assim, a prescrição da ultrafiltração orientada pela estimativa da superidratação pode não controlar a congestão pulmonar.
Além disso, as complicações de se tentar produzir um estado de euvolemia na HD convencional são bem conhecidas: episódios de hipotensão, perda da função renal residual e fibrose miocárdica por episódios repetidos de isquemia miocárdica.6,7 Em resumo, a ultrafiltração baseada na superidratação pode não controlar a congestão pulmonar e acrescenta riscos bem conhecidos para os pacientes em HD.
Alguns autores argumentam a favor de um certo nível de “hipervolemia permissiva” de modo a evitar os riscos de tentar atingir a euvolemia.8 Acreditamos que tal “hipervolemia permissiva” seria a quantidade de água extracelular sem congestão pulmonar. Contudo, a questão é como saber se a congestão pulmonar está presente ou não. Uma vez que a ultrassonografia torácica ainda não é amplamente utilizada em centros de diálise, imaginamos que seria de valia utilizarmos preditores confiáveis de congestão pulmonar entre as avaliações clínicas e laboratoriais de rotina realizadas em pacientes em HD.
Pacientes diabéticos em HD compõem um grupo especial com alta taxa de mortalidade e distúrbios cardiovasculares. Esse grupo de pacientes apresenta mais desafios que outros grupos no tocante ao controle da congestão pulmonar. Assim, realizamos o presente estudo com o objetivo de identificar as variáveis associadas à congestão pulmonar entre diabéticos com DRT em HD de manutenção.
Conduzimos um estudo transversal com uma amostra selecionada entre 205 pacientes com DRT em HD em junho de 2016, tratados nos dois únicos centros de diálise numa área de 34.560 km2 (37,3 habitantes/km2) no norte do estado do Ceará. Foram incluídos pacientes com diabetes como causa primária de DRT maiores de 18 anos em HD regular há pelo menos três meses.
Os critérios de exclusão foram amputação de extremidades (impossibilitando a análise de bioimpedância) e instabilidade clínica com hospitalização. Todos estavam sendo submetidos a HD convencional (três sessões de quatro horas por semana) com dialisadores de polissulfona (número máximo de reusos = 12). Foi obtido consentimento informado de todos os participantes, e o estudo foi aprovado pelo comitê de ética da Universidade Estadual Vale do Acaraú, à qual o hospital está ligado.
A congestão pulmonar foi avaliada pela contagem do número de linhas B por meio de ultrassonografia torácica. As linhas B foram reconhecidas como um feixe hiperecogênico, coerente, com base estreita espalhando-se do transdutor para a borda mais distante da tela, como descrito por Bedetti et al.9
As linhas B são a expressão ultrassonográfica dos septos pulmonares interlobulares espessados pelo edema. A ultrassonografia torácica foi realizada por dois observadores de nosso grupo de pesquisa de estudantes de medicina, treinados por um experiente radiologista. Caso a diferença no número de linhas B fosse inferior a 10% entre os dois observadores, a média dos dois valores seria considerada. Nos casos de diferença superior a 10%, uma nova ultrassonografia torácica seria executada por um terceiro observador. Em apenas um caso a diferença foi superior a 10% entre os dois observadores.
A ultrassonografia torácica foi realizada pouco antes do procedimento de bioimpedância e antes da primeira sessão de HD da semana (na segunda-feira para os pacientes com HD marcada para segundas, quartas e sextas; ou na terça-feira para pacientes com HD marcada para terças, quintas e sábados). Os pacientes foram examinados na posição supina. As regiões torácicas esquerda e direita foram examinadas.
Os observadores identificaram e quantificaram as linhas B posicionando o transdutor de 3,0 MHz em 28 posições: do segundo ao quinto espaço intercostal do hemitórax direito; do segundo ao quarto espaço intercostal do hemitórax esquerdo; e em cada espaço intercostal em quatro posições: paraesternal, linhas clavicular média, anterior e axilar média.
O estado de hidratação dos pacientes foi avaliado por meio da análise de bioimpedância por meio da técnica espectroscópica, com um dispositivo Body Composition Monitor® (Fresenius Medical Care, Bad Homburg, Alemanha). Os pacientes foram submetidos a análise de bioimpedância logo antes da primeira sessão de HD após o final de semana, o intervalo mais longo entre sessões de diálise, após a realização da ultrassonografia torácica.
O procedimento de bioimpedância foi conduzido segundo o manual do fabricante pelo pessoal de enfermagem do centro de diálise, todos treinados a utilizar o Body Composition Monitor®. Caso fosse detectada alguma medição errônea pelo BCM com base em algum indicador de qualidade, a respectiva medida seria repetida pelo pessoal de enfermagem.
Três variáveis foram avaliadas: 1-água extracelular (AEC) em litros = volume de água corporal fora das células (água intersticial mais água plasmática e água transcelular); 2-hipervolemia (HV) em litros = o excesso de líquido armazenado quase que exclusivamente no volume extracelular do paciente, portanto parte da AEC; e 3-hipervolemia relativa (HVr), calculada em função percentual como se segue: HV/AEC x 100. Hipervolemia foi identificada quando HVr > 15%.
O exame ecocardiográfico foi realizado por um cardiologista treinado em ecocardiografia que avaliou as seguintes variáveis, segundo as recomendações da American Society of Echocardiography:10 volume atrial esquerdo (mm), espessura diastólica do septo interventricular (mm), espessura diastólica da parede posterior (mm), diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo (mm), diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo (mm) e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (%). A ecocardiografia foi realizada na mesma semana da ultrassonografia torácica e da análise de bioimpedância.
O mesmo operador da ecocardiografia conduziu o procedimento ultrassonográfico para medir o diâmetro (cm) da veia cava inferior (VCI) pela rota subcostal. O diâmetro foi medido após expiração forçada e durante a inspiração. O índice de colabamento da VCI foi calculado da seguinte forma: diâmetro em cm após expiração forçada dividido pelo diâmetro em cm durante a inspiração.
Os pacientes foram classificados com base no escore da NYHA por um médico desconhecedor dos resultados obtidos na ultrassonografia torácica, ecocardiografia e ultrassonografia da veia cava. O sistema de classificação da NYHA estratifica os pacientes em quatro classes.11 A Classe I é aquela com menos sintomas relacionados a insuficiência cardíaca e a IV é a que corresponde aos sintomas mais intensos. Essa classificação é amplamente utilizada na prática clínica e já foi validada para a população de pacientes com DRT.12
Os dados demográficos, tempo com diabetes desde o diagnóstico, tempo em diálise, tipo de acesso vascular, pressão arterial, ganho ponderal interdialítico e volume da diurese por 24 horas foram obtidos dos prontuários dos dois centros de diálise. O volume de diurese foi registrado da forma como constava nos prontuários, estratificados em quatro classes: zero diurese (anúria)/24 h, até 500 ml/24 h, de 500 a 1000 ml/24 h e mais de 1000 ml/24 h.
A classe econômica foi determinada segundo os critérios do formulário emitido pela Associação Brasileira de Institutos de Pesquisa.13 Esse instrumento validado é utilizado em pesquisas de mercado e censos populacionais, servindo para separar as classes econômicas em cinco subgrupos, de A (melhor situação) a E (pior situação). Além do nível de renda, o critério inclui o nível de escolaridade do chefe da família e a posse de aparelhos domésticos. O índice de massa corporal (IMC) foi calculado em Kg/m2. Exames laboratoriais de creatinina sérica, hemoglobina, albumina, cálcio e fósforo foram realizados. A dose de diálise foi avaliada por meio de uma equação Kt/V de segunda geração de acordo com Daugirdas.14
O teste de Shapiro foi utilizado para avaliar a normalidade da distribuição das variáveis contínuas. Variáveis contínuas com distribuição normal foram expressas como média ± desvio padrão, enquanto que as sem distribuição normal foram expressas como mediana, valores máximos e mínimos. Os testes de Pearson e Spearman foram utilizados para avaliar a correlação entre o número de linhas B e variáveis contínuas, respectivamente com e sem distribuição normal.
As comparações relativas ao número de linhas B de acordo com as variáveis categóricas foram realizadas pelo teste de Mann-Whitney (entre dois grupos) e o teste de Kruskal Wallis (entre mais de dois grupos). Regressão linear multivariada foi utilizada para testar as variáveis contínuas (que se correlacionaram com o número de linhas B) e as variáveis categóricas (que diferiram no tocante ao número de linhas B) enquanto preditores independentes do número de linhas B (variável dependente). Significância estatística foi considerada para p-valor < 0,05. Todas as análises estatísticas foram realizadas no programa SPSS versão 22.0.
Dentre os 305 pacientes com DRT em HD, 87 tinham diabetes como causa primária da DRT. Um paciente foi excluído por ter menos de 18 anos, quatro por estarem em HD de manutenção há menos de três meses, seis por apresentaram amputações de extremidades, dois por estarem clinicamente instáveis e hospitalizados e um por se recusar a participar. Portanto, foram estudados 73 pacientes.
Os dados demográficos e clínicos da amostra são exibidos na Tabela 1. O estado de hidratação e os parâmetros ecocardiográficos são mostrados na Tabela 2. O único caso de discordância no número de linhas B observado pelos examinadores (58 x 65 linhas B) foi decidido como tendo 65 linhas B por um terceiro observador. O número de linhas B avaliado pela ultrassonografia torácica foi positivamente correlacionado ao diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo (r = 0,293; p = 0,030), diâmetro atrial esquerdo (r = 0,289; p = 0,036), espessura do septo (r = 0,312; p = 0,021) e espessura da parede posterior (r = 0,303; p = 0,025) conforme a avaliação ecocardiográfica e com o índice de colabamento da VCI (r = 0,355; p = 0,008) avaliado por ultrassonografia (Tabela 3).
Tabela 1 Características demográficas e clínicas
Variáveis | |
---|---|
Sexo, n (%) Masculino | 45 (62,5) |
Idade, média ± DP | 60,6 ± 15,8 |
Classe econômica, n (%) | |
A | 1 (1,3) |
B | 3 (4,1) |
C | 29 (39,7) |
D | 35 (48,0) |
E | 5 (6,9) |
Tempo com diabetes (anos), mediana [mín-máx] | 15 [1,5 - 47] |
Tempo em diálise (meses), mediana [mín-máx] | 23 [3 - 122] |
Tipo de acesso vascular, n (%) | |
Fístula nativa | 54 (75,0) |
Catéter de duplo lúmen | 18 (25,0) |
Ganho ponderal interdialítico (kg), média ± DP | 3,4 ± 1,7 |
Diurese por 24 horas, n (%) | |
0 | 9 (12,5) |
< 500 ml | 46 (63,9) |
500-1000 ml | 13 (18,0) |
> 1000 ml | 4 (5,6) |
Pressão arterial sistólica (mmHg), média ± DP | 162,1 ± 27,7 |
Pressão arterial diastólica (mmHg), média ± DP | 77,3 ± 15,3 |
Índice de massa corporal (kg/m2), mediana [mín-máx] | 26.1 [17.7 - 47.0] |
Classe NYHA, n (%) | |
I | 38 (52,8) |
II | 28 (38,9) |
III | 4 (5,5) |
IV | 2 (2,8) |
Glicemia pré-diálise (mg/dL), mediana [mín-máx] | 190 [80-390] |
Creatinina (mg/dL), mediana [mín-máx] | 5 [2,4-12,6] |
Hemoglobina (g/dL), média ± DP | 8,3 ± 1,4 |
Albumina (g/dL), mediana [mín-máx] | 4,1 [2,0-4,9] |
Cálcio (mg/dL), média ± DP | 8,7 ± 0,9 |
Fósforo (mg/dL), média ± DP | 4,7 ± 1,4 |
Produto cálcio-fósforo (mg2/dL2), média ± DP | 42,4 ± 14,3 |
Índice Kt/V, média ± DP | 1,8 ± 0,6 |
Tabela 2 Estado de hidratação e parâmetros ecocardiográficos
Água extracelular (L), média ± DP | 16,2 ± 3,0 |
---|---|
Hipervolemia (L), mediana [mín-máx] | 2,2 [-7,5-5,6] |
Hipervolemia relativa (%), média ± DP | 12,5 ± 10,0 |
Hipervolemia, n (%) | |
Sim | 30 (41,7) |
Não | 42 (58,3) |
Diâmetro da veia cava inferior (cm), média ± DP | 1,6 ± 0,3 |
Índice de colabamento da veia cava inferior | 0,4 [0,07-1,0] |
Fração de ejeção do ventrículo esquerdo (%), mediana [mín-máx] | 59,3 [33,6-66,0] |
Diâmetro atrial esquerdo (mm), mediana [mín-máx] | 37 [20,0-69,0] |
Espessura do septo (mm), mediana [mín-máx] | 12 [9-16] |
Espessura da parede posterior (mm), mediana [mín-máx] | 12 [9-16] |
Diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo (mm), média ± DP | 51,0 ± 5,4 |
Diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo (mm), mediana [mín-máx] | 32,0 [19,0-49,0] |
Tabela 3 Correlações entre variáveis contínuas e número de linhas B
Variável | r (coeficiente de correlação) | p |
---|---|---|
Idade do paciente | -0,198 | 0,140 |
Tempo com diabetes | 0,107 | 0,433 |
Tempo em diálise | 0,036 | 0,791 |
Ganho ponderal interdialítico | -0,106 | 0,470 |
Pressão arterial sistólica | 0,139 | 0,306 |
Pressão arterial diastólica | 0,028 | 0,837 |
Índice Kt/V | -0,050 | 0,718 |
Albumina | 0,003 | 0,983 |
Fósforo | -0,052 | 0,730 |
Produto cálcio-fósforo | -0,027 | 0,859 |
Água extracelular | 0,047 | 0,731 |
Hipervolemia | 0,131 | 0,335 |
Diâmetro da veia cava inferior | 0,223 | 0,102 |
Índice de colabamento da veia cava inferior | 0,355 | 0,008 |
Fração de ejeção | -0,132 | 0,337 |
Diâmetro atrial esquerdo | 0,289 | 0,036 |
Espessura do septo | 0,312 | 0,021 |
Espessura da parede posterior | 0,303 | 0,025 |
Diâmetro diastólico do ventrículo esquerdo | 0,203 | 0,137 |
Diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo | 0,293 | 0,030 |
Na comparação do número de linhas B de acordo com as variáveis categóricas, encontramos uma diferença no número de linhas B segundo as classes da NYHA: medianas de 10 na classe I, 19 na classe II, 30 na classe III e 65,5 na classe IV (p = 0,042) (Tabela 4). Na análise multivariada, apenas o índice de colabamento da VCI (b = 45,038; p < 0,001) e as classes da NYHA (b = 13,995; p = 0,006) foram preditores independentes do número de linhas B (Tabela 5).
Tabela 4 Comparison between the number of B lines according to categorical variable
Variável | Número de linhas B (mediana) | p |
---|---|---|
Sexo | 0,163 | |
Masculino | 12 | |
Feminino | 21,5 | |
Diurese | ||
0 | 9 | 0,492 |
< 500 ml | 14 | |
500-1000 ml | 21,5 | |
>1000 ml | 19 | |
Tipo de acesso vascular | 0,868 | |
Fístula | 13,5 | |
Catéter | 14 | |
Classes NYHA | ||
I | 10 | 0,042 |
II | 19 | |
III | 30 | |
IV | 65,5 | |
Hipervolemia | 0,231 | |
Sim | 15 | |
Não | 10,5 |
Tabela 5 Regressão linear multivariada para testar preditores de número de linhas B
Variável | b (coeficiente de regressão) | p |
---|---|---|
Índice de colabamento da veia cava inferior | 45,038 | < 0,001 |
Classe NYHA | 13,995 | 0,006 |
Diâmetro atrial esquerdo | 0,275 | 0,493 |
Espessura do septo | 0,074 | 0,992 |
Espessura da parede posterior | 1,438 | 0,851 |
Diâmetro sistólico do ventrículo esquerdo | 0,899 | 0,204 |
Como em outros estudos,4,15 demonstramos uma ausência de associação entre congestão pulmonar e estado de hidratação avaliado por bioimpedância. Esse resultado traz implicações práticas, uma vez que a água extracelular avaliada por bioimpedância é normalmente a referência para a prescrição da ultrafiltração para pacientes em HD. Assim, o controle da volemia baseado na água extracelular não garante o controle da água nos pulmões.
Contudo, o benefício do controle volêmico é evitar acometimento cardíaco e principalmente a congestão pulmonar. Água nos pulmões é o principal marcador de morbidade e mortalidade cardiovascular, não a água extracelular total. Além disso, ter como alvo o peso seco baseado na superidratação impõe riscos de episódios de hipotensão, a maioria assintomáticos. Episódios repetidos de hipotensão devidos a ultrafiltração excessiva, especialmente entre pacientes com grande ganho ponderal interdialítico, pode levar a atordoamento miocárdico, que pode causar remodelamento miocárdico e fibrose.6,7
Além disso, não identificamos correlações entre agua nos pulmões e função cardíaca. Nenhuma das diferenças encontradas na análise univariada relativas aos parâmetros da ecocardiografia foi significativa na análise multivariada. A ausência de correlação entre função cardíaca e congestão pulmonar pode se dever às características da amostra.
Comparando os estudos de Mallamaci et al.16 e Siripidol et al.,4 observamos que a função cardíaca se correlacionou com água nos pulmões apenas no primeiro. Supomos que a divergência relativa à correlação entre função cardíaca e congestão pulmonar seja parcialmente explicada pelas características da amostra. Nossa amostra, como a amostra estudada por Siripidol et al.,4 apresentava boa função cardíaca e um intervalo reduzido de valores de fração de ejeção: 59,3 % (33,6% a 66%) na nossa e 61,5% ± 7,7% no outro estudo.4
Em ambos estudos, não houve correlação entre função cardíaca e água extracelular nos pulmões. Por outro lado, no estudo de Mallamaci et al.,16 os autores encontraram uma correlação entre função cardíaca e água nos pulmões, provavelmente porque sua amostra apresentava uma maior variação nos valores de fração de ejeção, de 15% a 70%; e pior função cardíaca entre os pacientes com congestão pulmonar, com fração de ejeção de 49%.
Assim, imaginamos que em amostras com melhor função sistólica a água nos pulmões possa estar dissociada da água extracelular nos pulmões. A boa função cardíaca de nossa amostra pode ser explicada pela bem conhecida seleção de sobreviventes: diabéticos com condição cardiovascular pior sem seguimento clínico adequado em áreas menos desenvolvidas frequentemente vão a óbito por complicações cardiovasculares antes de iniciar a HD.
Os preditores tradicionais de hipervolemia não foram validados como variáveis associadas a congestão pulmonar em nosso estudo, assim como índices de massa corporal mais baixos,17,18 menor diurese residual18 e pressão arterial sistólica mais elevada.18,19 Em nosso estudo, o resultado da classificação NYHA (um escore simples baseado na avaliação clínica) e o índice de colabamento da VCI (um conhecido marcador de hipervolemia) foram associados a congestão pulmonar.
Acreditamos firmemente que em curto tempo a avaliação de rotina da congestão pulmonar por ultrassonografia torácica será incorporada pelos centros de diálise e substituirá amplamente a bioimpedância como principal referência da prescrição da ultrafiltração. Enquanto isso, e segundo nossos resultados, como podem a classificação da NYHA e o índice de colabamento da VCI ser úteis? Sugerimos que a classificação NYHA seja utilizada por médicos e enfermeiras de forma sistemática e avaliada semanalmente.
Uma vez que a medida da VCI não é realizada na ecocardiografia de rotina dos pacientes em HD, propomos que a informação sobre o diâmetro da VCI e seu índice de colabamento sejam acrescentadas aos registros ecocardiográficos. Melhor ainda seria uma avaliação regular da VCI pelas próprias equipes dos centros de diálise, como forma de ajudar a definir o peso seco dos pacientes. Finalmente, nenhum desses parâmetros substitui a anamnese periódica e o exame físico.
Apesar da ultrassonografia torácica ser um método extremamente prático de avaliar a congestão pulmonar, segundo a literatura o seguimento dos pacientes em HD por ultrassonografia torácica e as intervenções baseadas em seus resultados não modificam os desfechos dos pacientes. Nossa experiência no presente estudo mostrou que a curva de aprendizado para a execução da ultrassonografia torácica para os fins em questão por não especialistas é bastante rápida. Contudo, o método é totalmente operador-dependente. Assim, a contagem de linhas B depende da habilidade do operador.
Estamos cientes das várias limitações de nosso estudo. Primeiramente, o estudo tem delineamento transversal e a maioria das variáveis é dinâmica. Contudo, devido à exclusão de pacientes com menos de três meses de HD e indivíduos hospitalizados, estudamos apenas pacientes estáveis. Pacientes estáveis não apresentam grandes mudanças em sua função cardíaca ou no padrão de ganho ponderal interdialítico no curto prazo. Em segundo lugar, como citado na introdução, a inflamação provavelmente atua como mediadora do extravasamento capilar pulmonar, predispondo o aparecimento de água extracelular nos pulmões.
Assim, teria sido melhor ter colhido dados sobre marcadores de inflamação, como proteína C-reativa e citocinas pró-inflamatórias. Além disso, biomarcadores cardíacos (dímero D, troponina T, peptídeo natriurético) tornariam o painel de variáveis mais completo. Tínhamos albumina em nosso estudo, um marcador de síndrome da desnutrição e inflamação. Contudo, baixos níveis de albumina aparecem apenas nos estágios mais avançados da síndrome. Finalmente, apesar de ser um subgrupo de pacientes com elevado risco cardiovascular, nossa amostra apresentou função cardíaca relativamente boa. Portanto, nossos resultados não podem ser extrapolados para amostras mais típicas de diabéticos com função cardíaca mais comprometida.
Avaliações clínicas baseadas no escore da NYHA e no índice de colabamento da VCI avaliado por ultrassonografia apresentam associação com congestão pulmonar. O uso rotineiro dessas variáveis pode ajudar a estabelecer uma meta de ultrafiltração segura capaz de controlar e evitar a congestão pulmonar sem maiores riscos cardiovasculares. Em nossa opinião, tais avaliações indiretas que utilizam preditores de congestão pulmonar em breve serão substituídas pela incorporação da ultrassonografia torácica na avaliação de rotina direta da água nos pulmões.