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Verificação do processo terapêutico em pacientes fissurados

Verificação do processo terapêutico em pacientes fissurados

Autores:

Ana Paula Doi Bautzer,
Zelita Caldeira Ferreira Guedes

ARTIGO ORIGINAL

CoDAS

versão On-line ISSN 2317-1782

CoDAS vol.26 no.6 São Paulo nov./dez. 2014

http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20140000099

INTRODUÇÃO

Toda criança inicia cedo seu processo de aprendizagem da fala e linguagem e qualquer fator ambiental, anatômico e/ou fisiológico pode afetá-lo. Os primeiros anos de vida e as experiências com o mundo sonoro são primordiais para o desenvolvimento e aquisição da fala e linguagem, portanto as desordens congênitas intraútero apresentam efeito deletério no aprendizado da linguagem simbólica e no desenvolvimento do padrão de fala( 1 ).

Este processo está baseado em estruturas anatômicas particulares e na capacidade do controle motor oral da fala, desfavorecendo as crianças que possuem comprometimentos anatomofisiológicos( 2 ).

De acordo com estudos recentes, cerca de 50% das crianças nascidas com fissura palatina apresentam dificuldades de fala por volta dos três anos de idade, mesmo após palatoplastia( 3 - 5 ). Diversas pesquisas em outras línguas, principalmente na inglesa, garantem que crianças com fissura palatina apresentam tanto déficits nos processos fonológicos quanto alterações fonéticas e de ressonância( 6 - 9 ).

Sabendo que toda a experiência de linguagem precoce influencia no desenvolvimento das habilidades de percepção e aquisição dos processos fonológicos, crianças com fissura palatina por si só podem apresentar alteração fonética devido às alterações da estrutura anatômica, influenciando na aprendizagem e aquisição de fala e linguagem e tornando-se um risco para déficits da consciência fonológica.

Outros fatores que podem prejudicar a aprendizagem e aquisição de fala e linguagem são os problemas otológicos, como a otite média e perda auditiva, muito comuns nessas crianças( 10 - 14 ). Existem estudos que referem que os problemas otológicos dificultam a realização de tarefas que envolvam memória verbal e compreensão de sentenças( 15 ). Além disso, o modo e o tempo do início da intervenção também podem modificar o quadro. Estudos mais recentes chamam a atenção de que quanto mais tarde ocorrer a intervenção, seja nas escolas ou com especialistas, maior será o risco das dificuldades na comunicação e na cognição. E quanto mais cedo e rigorosa forem as estratégias de intervenção, melhor será o resultado em crianças com fissura labial ou palatina( 14 ).

É muito comum a referência de que o processo terapêutico em crianças com fissura labiopalatina tenda a ser a longo prazo. Tendo conhecimento da ocorrência de compensações e das possíveis alterações que podem estar presentes nas crianças com esta malformação, e a constatação de alterações de fala e linguagem em artigos internacionais, este estudo pretende verificar a origem de um processo terapêutico mais longo ou até o seu insucesso e como modificar ou redirecionar o enfoque terapêutico, além de avaliar e comparar pacientes com fissura labiopalatina quanto à sua dificuldade de fala.

MÉTODOS

Em relação ao aspecto ético, neste estudo todos os participantes concordaram com o termo de assentimento que foi assinado por todas as crianças alfabetizadas. Seus representantes legais também o fizeram no documento referente ao Consentimento Livre e Esclarecido para que seus filhos pudessem ser submetidos a qualquer tipo de avaliação. O estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética Institucional pelo número 0170/11 e o desenho de pesquisa tem o caráter descritivo e observacional como característica principal, com estudo comparativo transversal.

Foram observadas e avaliadas crianças alfabetizadas matriculadas do quarto ao sétimo ano do ensino fundamental atendidas no ambulatório de Fonoaudiologia de um hospital público, com intervenção mínima terapêutica de seis meses e média de idade de nove anos.

As descrições dos grupos analisados são:

    • Grupo I:. 11 crianças, sendo oito do sexo masculino e três do sexo feminino, matriculadas no ensino fundamental de escolas municipais e estaduais, com fissura labiopalatina ou fissura palatina congênita e isoladas com média de idade de oito anos atendidas no ambulatório de Fonoaudiologia - Malformação craniofaciais e Síndromes Associadas de um hospital público;

    • Grupo II ou controle:. sete crianças, sendo três do sexo masculino e quatro do feminino, matriculadas no ensino fundamental de escolas municipais e estaduais, sem malformação craniofacial ou síndrome genética, com média de idade de dez anos, atendidas no ambulatório de Terapia de Fala e Linguagem da mesma instituição.

As variáveis de escolaridade, idade e condições sociodemográficas para os dois grupos não foram controladas. Os dados referentes à avaliação audiológica e do processamento auditivo central nas crianças dos grupos não foram consideradas na análise geral dos resultados.

Definiu-se como critério de inclusão para o grupo I a presença da fissura congênita isolada e processo terapêutico maior a seis meses, e para o grupo II, o processo terapêutico maior que seis meses e ausência de malformação craniofacial.

Os critérios de exclusão para os dois grupos foram: alterações motoras, perda auditiva de grau moderado a grave, alterações neurológicas graves e faltas consecutivas durante os testes. Para o grupo I, o critério de exclusão foi o de qualquer criança que tivesse chegado para atendimento antes dos quatro anos de idade, e para o II, qualquer criança que apresentasse alteração do processamento auditivo central. Houve perda amostral de dez crianças no total dos dois grupos.

A coleta de dados foi realizada nos ambulatórios de Fonoaudiologia de Fenda Palatina e Síndromes Associadas e de Terapia de Linguagem de um hospital público. Foram aplicados dois testes para avaliação de fala e linguagem, e não foi utilizado nenhum teste de escrita, apenas a análise da realização das provas orais: ABFW, Teste de Linguagem Infantil na área de Fonologia; e Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial (Confias). Os testes foram aplicados pela pesquisadora sem auxílio de filmagem, mas com gravação da voz das crianças durante os procedimentos( 16 , 17 ).

O teste ABFW, de linguagem infantil na área de Fonologia, é composto por duas provas: nomeação e imitação. Para este estudo foi utilizada apenas a de nomeação, que permite avaliar quanti e qualitativamente o inventário fonético e 14 processos fonológicos: redução de sílaba, harmonia consonantal, plosivação de fricativas, posteriorização para velar, posteriorização para palatal, frontalização de velar, frontalização de palatal, simplificação de líquida, simplificação de encontro consonantal, simplificação da consoante final, sonorização de plosiva, sonorização de fricativa, ensurdecimento de plosiva e ensurdecimento de fricativa.

O objetivo da avaliação do sistema fonológico é verificar o inventário fonético da criança bem como analisar os processos fonológicos que teriam se desenvolvido. Também se verificou a presença de simplificações fonológicas e distúrbios compensatórios como golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal. O golpe de glote pode ser interpretado como a substituição do ponto articulatório dos fonemas plosivos na glote, enquanto a fricativa faríngea é produzida por fricção na região faríngea e o sigmatismo nasal ocorre com o direcionamento do ar para a cavidade nasal durante a emissão dos fonemas fricativos.

A aplicação do teste ABFW foi realizada em uma sala no ambulatório de um hospital público durante a sua rotina clínica. Um trecho da fala espontânea da criança e a aplicação da prova de nomeação foram gravados em aparelho de MP3 e, posteriormente, fizeram-se as análises fonética e dos processos fonológicos. Na prova de nomeação pediu-se para a criança dizer o nome das 34 figuras mostradas em forma de prancha que medem 20 cm por 23 cm. Caso ela não conseguisse, o examinador a nomeava e a retomava após cinco figuras subsequentes, pedindo novamente que a falasse de acordo com as instruções determinadas pelas autoras. Todas as respostas foram registradas em dois formulários: o de transcrição fonética e o de nomeação.

Em seguida foi feita a aplicação do teste Confias, um instrumento de avaliação sequencial dividido em dois níveis: da sílaba e do fonema. No primeiro são analisados nove aspectos: síntese, segmentação, identificação de sílaba inicial, identificação de rima, produção da palavra com sílaba dada, identificação de sílaba medial, produção de rima, exclusão e transposição. No do fonema verificam-se produção de palavra que inicia com som dado, identificação de fonema inicial, identificação de fonema final, exclusão, síntese, segmentação e transposição. A criança deveria responder às 16 tarefas apresentadas oralmente pelo avaliador para que fossem verificados os aspectos fonológicos da criança no nível da sílaba e do fonema. Todas as respostas foram registradas em um formulário de acertos e erros, por meio do qual foram realizados a análise da porcentagem de acertos em cada aspecto e o cálculo da porcentagem de acerto em relação ao total possível do teste, de acordo com as instruções determinadas. Não houve qualquer prova para a coleta de leitura e/ou escrita.

Neste estudo foi fixado nível de significância de 5% (p<0,05). Para o cálculo deste índice, utilizou-se o programa PASW Statistics. O valor de p foi calculado em função do n amostral coletado (n=15).

Foi aplicado o Teste do χ2 nos valores observados das distribuições do inventário fonético, da presença ou ausência dos processos fonológicos, da porcentagem da ausência de omissão, golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal da aplicação do teste ABFW nos dois grupos.

Para comparar as distribuições das respostas nos aspectos no Confias nos dois grupos foi aplicado o teste de Kruskal-Wallis. Adotou-se o mesmo procedimento para comparar as distribuições das respostas no ABFW em ambos os grupos. Quando necessário, o procedimento de Bonferroni foi considerado para localizar as diferenças entre eles( 18 ).

Na elaboração das figuras descritas a seguir estabeleceu-se uma cor para cada paciente, facilitando, assim, a análise das dificuldades de forma individual e em grupo.

RESULTADOS

Teste ABFW

Na Tabela 1 as médias das variáveis do inventário fonético de palavras são muito próximas. Pode-se, então, concluir que os grupos estudados apresentaram erros semelhantes e não existem erros específicos para cada um deles.

Tabela 1. Quantidade de acertos do inventário fonético realizada pelas crianças dos dois grupos. 

Variável n Média±DP Mín–Máx Amplitude Valor de p*
Inventário fonético
I 11 45,8±31,1 6–94 88
II 7 58,9±19,0 38–94 56
Total 18 52,4± 6–94 88 0,199

*p<0,05; DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

Na análise da Figura 1 foram verificados os valores individuais do teste ABFW em uma concentração da porcentagem semelhante de acertos fonéticos e da ausência dos processos fonológicos.

Figura 1. Processos fonológicos no teste ABFW 

Na continuidade da análise do teste ABFW, a Tabela 2 indica que para o processo fonológico de frontalização palatal foi encontrado valor de p com nível de significância 5% (p=0,013). Em outros aspectos, o grupo I apresentou porcentagens maiores que o grupo II, com exceção nas variáveis "simplificação de encontro consonantal" e "ensurdecimento de plosiva".

Tabela 2. Demonstração da porcentagem de acertos nos processos fonológicos do ABFW em cada grupo 

Variável n Média±DP Mín–Máx Mediana Amplitude Valor de p
Frontalização de palatal
I 11 100,0±0,0 100–100 100 0
II 7 77,1±35,5 0–100 80 100
Total 25 92,8±20,7 0–100 100 100 0,013*
Simplificaçãode líquida
I 11 91,8±10,2 73–100 100 27
II 7 88,4±11,3 73–100 82 27
Total 25 91,0±12,2 55–100 100 45 0,565
Simplificação de encontro consonantal
I 11 25,5±38,9 0–100 2 100
II 7 50,0±47,9 0–100 25 100
Total 25 37,7±41,5 0–100 25 100 0,364
Simplificação da consoante final
I 11 70,9±25,9 20–100 80 80
II 7 82,9±21,4 60–100 100 40
Total 25 79,2±23,4 20–100 80 80 0,269
Sonorização da fricativa
I 11 99,4±2,1 93–100 100 7
II 7 96,0±6,8 86–100 100 14
Total 25 98,6±4,0 86–100 100 14 0,219
Ensurdecimento de plosiva
I 11 98,7±2,8 93–100 100 7
II 7 100,0±0,0 100–100 100 0
Total 25 98,9±3,3 86–100 100 14 0,526
Ensurdecimento de fricativa
I 11 100,0±0,0 100–100 100 0
II 7 100,0±0,0 100–100 100 0
Total 25 99,4±2,8 86–100 100 14 >0,999

*p<0,05; DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

Na Figura 2 encontraram-se os valores das porcentagens da não ocorrência de omissão dos fonemas e a presença dos distúrbios articulatórios compensatórios (golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal) nos dois grupos. Foi verificado valor de p com nível de significância de 5% (p<0,05) para a variável omissão e fricativa faríngea. O grupo I apresentou menor porcentagem em todas as variáveis devido à sua patologia de base, com exceção da variável "omissão". Já o grupo II não apresentou a ocorrência de distúrbios articulatórios compensatórios, mantendo as expectativas, pois não mostrava fissura labiopalatina ou palatina e não era esperada a ocorrência destas.

Figura 2. Distribuição dos distúrbios articulatórios compensatórios de fala 

Na Tabela 3 observou-se que, para o processo de omissão, a criança com fissura palatina dificilmente omite as vibrantes como ocorreu no grupo II. As crianças com fissura realizaram mais trocas do que omissões, preservando o "espaço" do fonema.

Tabela 3. Descrição da não ocorrência de omissão e presença dos mecanismos compensatórios (golpe de glote, fricativa faríngea e sigmatismo nasal) nos dois grupos 

Variável n Média±DP Mín–Máx Amplitude Valor de p
Omissão
I 11 100±0 100–100 0
II 7 98,6±1,9 96–100 4
Total 18 99,3± 96–100 4 <0,055*
Golpe de glote
I 11 87,9±9,4 73–100 27
II 7 100±0 100–100 0
Total 18 93,9± 73–100 27 0,124
Fricativa faríngea
I 11 95,5±4,9 86–100 14
II 7 100±0 100–100 0
Total 18 97,75± 86–100 14 0,016*
Sigmatismo Nasal
I 11 99,4±1,4 96–100 4
II 7 100±0 100–100 0
Total 18 99,7± 96–100 4 0,266

*p<0,05; DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

Confias

A análise do teste Confias no nível de sílaba (Tabela 4) teve como objetivo localizar as diferenças entre os grupos. As distribuições de porcentagem nos grupos I e II (p>0,088) não apresentaram nível de significância.

Tabela 4. Descrição das porcentagens de acertos nos aspectos do Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível de sílaba em cada grupo 

n Média±DP Mín–Máx Amplitude Valor de p
Sílaba
I 11 85,9±17,1 37–97 60
II 7 82,3±9,8 70–95 25
Total 18 84,1± 37–97 60 0,094
Síntese
I 11 95,5±15,1 50–100 50
II 7 89,3±19,7 50–100 50
Total 18 92,4± 50–100 50 0,609
Segmentação
I 11 97,7±7,5 75–100 25
II 7 89,3±19,7 50–100 50
Total 18 93,5± 50–100 50 0,558
Identicação de sílaba inicial
I 11 95,5±15,1 50–100 50
II 7 89,3±19,7 50–100 50
Total 18 92,4± 50–100 50 0,609
Identificação de rima
I 11 90,9±23,1 25–100 75
II 7 85,7±13,4 75–100 25
Total 18 88,3± 25–100 75 0,347
Sílaba dada
I 11 97,7±7,5 75–100 25
II 7 85,7±13,4 75–100 25
Total 18 91,7± 75–100 25 0,088
Sílaba medial
I 11 86,4±30,3 25–100 75
II 7 89,3±13,4 75–100 25
Total 18 87,8± 25–100 75 0,255
Produção de rima
I 11 65,9±25,7 25–100 75
II 7 71,4±22,5 50–100 50
Total 18 68,7± 25–100 75 0,747
Exclusão
I 11 72,5±27,9 12–100 88
II 7 82,0±17,7 62–100 38
Total 18 77,3± 12–100 88 0,435
Transposição
I 11 86,4±30,3 0–100 100
II 7 82,1±18,9 50–100 50
Total 18 84,3± 0–100 50 0,242

DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

As porcentagens do grupo I (Figura 3) tendem a ser maiores que as do grupo II, com exceção das tarefas "sílaba medial", "produção de rima" e "exclusão".

Figura 3. Distribuição de porcentagens Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial em nível da sílaba 

Na análise do teste Confias, o nível do fonema, de acordo com a Tabela 5, indica que não há diferença significativa entre as distribuições das porcentagens de acertos nos dois grupos. As dificuldades na execução de tarefas voltam a ser semelhantes.

Tabela 5. Descrição das porcentagens de acertos nos aspectos do Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível de fonema em cada grupo 

n Média±DP Mín–Máx Amplitude Valor de p
Fonema
I 11 77,2±8,5 63–96 33
II 7 77,6±12,8 60–94 34
Total 18 77,4± 60–96 34 0,747
Inicia com som dado
I 11 100,0±0,0 100–100 0
II 7 96,4±9,4 75–100 25
Total 18 98,2± 75–100 25 0,609
Identificação do fonema inicial
I 11 100,0±0,0 100–100 0
II 7 100,0±0,0 100–100 0
Total 18 100,0±0,0 100–100 0 >0,999
Identificação do fonema final
I 11 84,1±20,2 50–100 50
II 7 85,7±13,4 75–100 25
Total 18 84,9± 50–100 50 0,375
Exclusão
I 11 74,0±20,3 50–100 50
II 7 68,7±22,5 33–100 67
Total 18 71,4± 33–100 67 0,134
Síntese
I 11 72,7±13,5 50–100 50
II 7 71,4±17,3 50–100 50
Total 18 72,1± 50–100 50 0,845
Segmentação
I 11 75,0±25,0 25–100 75
II 7 60,7±24,4 25–100 75
Total 18 67,9± 25–100 75 0,431
Transposição
I 11 38,6±20,5 0–100 75
II 7 64,3±28,3 25–100 75
Total 18 51,5± 0–100 75 0,118

DP: desvio padrão; Mín: mínimo; Máx: máximo.

No prosseguimento da análise, observado na Figura 4, verificou-se que os valores da porcentagem de acertos no fonema no grupo II tendem a ser maior do que no grupo I, porém, nas tarefas específicas de iniciar com som dado, exclusão, síntese e segmentação, o grupo I apresenta porcentagem de acerto maior que o grupo II. Contudo, não há diferença significativa entre as distribuições da porcentagem nos grupos I e II (p>0,118).

Figura 4. Distribuição de porcentagens Consciência Fonológica: Instrumento de Avaliação Sequencial no nível do fonema 

DISCUSSÃO

Pelo fato de os grupos estudados apresentarem erros semelhantes no aspecto fonético, e não haver diferença significante, conclui-se que não existe erro padrão ou específico para cada grupo, o que corrobora estudos anteriores( 15 - 17 ).

Todas as crianças passaram por intervenção terapêutica de no mínimo seis meses, e um dos aspectos trabalhados em terapia para a produção fonética com crianças com fissura labiopalatina foi a realização do fluxo aéreo associado a estímulos sensoriais como sensações tátil, visual e auditiva. Desta forma, acredita-se que para a produção de uma consoante fricativa palatal, a criança com fissura se beneficia na introdução e aquisição do fonema mais do que a criança sem malformação do grupo II, em que geralmente se usa apenas a técnica de demonstração do ponto e modo articulatório, favorecendo a realização de fricativa alveolar no lugar da fricativa palatal.

Estudos anteriores relatam que crianças com fissura realizam mais trocas do que omissões, o que também foi observado neste estudo, levando a pensar que a criança com fissura ouve o fonema, porém tem dificuldade para discriminá-lo e produzi-lo( 19 - 21 ).

Desde a década de 1960 já se especulava, por meio de evidências, que as crianças nascidas com malformação poderiam ser afetadas na execução de tarefas verbais e não verbais, que modificariam as modalidades expressivas. Nos estudos também há relatos de que estas crianças apresentavam atrasos nos aspectos de comportamento verbal antes da idade escolar( 22 , 23 ). Naquela época essas diferenças poderiam ser consideradas dificuldade nas discriminações auditivas, afetando, assim, as tarefas verbais e o comportamento verbal.

Sabendo que a discriminação auditiva é uma capacidade de percepção distinta da de apenas receber os estímulos auditivos, e também por ser considerada a habilidade de diferenciar um som do outro e distinguir pequenas diferenças neles, cogita-se que a criança aprende a associar um som com a fonte que o produziu, e que uma criança com alteração na discriminação confunde e troca os fonemas no momento de sua enunciação( 11 , 12 ).

Os processos de atenção e escuta atuam em conjunto ao desenvolvimento da capacidade das crianças em conseguir lidar com os sons recebidos (input). Crianças com esta alteração podem variar o desenvolvimento das habilidades auditivas e de fala e, consequentemente, apresentar atraso no desenvolvimento, o que pode levar ao surgimento de um transtorno fonológico( 7 , 10 , 12 ).

Nossa hipótese inicial era que o grupo I apresentaria mais dificuldades nas aquisições de fala e linguagem, como perceber o som sem identificá-lo ou conseguir construir palavras que iniciem com o este. A alteração que ocorre nestas crianças, aparentemente fica no descompasso do processamento fonológico.

Acredita-se na hipótese de que a criança nascida com malformação identifica corretamente o fonema (input correto), mas devido às alterações anatômicas, histórico de otite, capacidade inferior de controle motor oral da fala e alteração na aquisição e desenvolvimento da fala e linguagem, acaba produzindo o output em local incorreto com compensação, e o próprio feedback reforça esta produção, em que a criança imagina estar realizando a produção do fonema corretamente( 6 , 7 ). Quando se é exigida uma tarefa de construção de palavras a partir de um fonema ou sílaba, ela não possui o registro deste som, que soa como um novo som( 13 ).

Os resultados do teste Confias indicam que não há diferença significativa entre as distribuições das porcentagens de acertos nos dois grupos, porém o grupo I apresenta, nos aspectos relacionados ao fonema, dificuldades em tarefas fonológicas. Como o paciente com fissura labiopalatina respeita o espaço do fonema, porém não o identifica, nas tarefas em que é exigida a discriminação, ele apresenta mais dificuldades.

Nos aspectos que não foram os objetivos trabalhados em terapia, o grupo com malformação apresentou dificuldades na sua execução, confirmando a suspeita de que nos aspectos em que apresenta porcentagens melhores a conduta terapêutica pode ter auxiliado, já que a concentração de porcentagem é muito semelhante à do grupo II.

Estudos realizados entre os anos de 2005 e 2010 relataram que a linguagem precoce influencia no desenvolvimento das habilidades de percepção e processos fonológicos, que crianças com histórico de otite média se diferem nas tarefas de memória e compreensão de sentenças, e que crianças nascidas com fissura são significantemente piores na leitura, memória fonológica e fluência da leitura( 13 , 14 ).

Sabendo que condições físicas ou de inabilidades e incompetências interferem nos déficits funcionais, verificou-se que a criança com malformação também apresentou manifestação de déficit de consciência fonológica não maiores que o grupo controle.

Tal constatação explica os fatos que ocorrem na experiência terapêutica, em que a criança com fissura palatina e/ou fissura labiopalatina, independente da idade, apresenta, na fase de automatização, um período maior e mais trabalhoso, caso não sejam trabalhados aspectos fonológicos. Entretanto, nas fases de conscientização, produção e correção do fonema, período em que são utilizadas técnicas terapêuticas sensoriais para facilitar a sua percepção, as crianças não demonstram grandes dificuldades.

Com o relato de vários autores, sabe-se que a linguagem falada e o reconhecimento do código são precursores da leitura, que o conhecimento ortográfico influencia nas tarefas de consciência fonológica, as alterações de fala estão correlacionadas com a consciência fonológica e que esta afeta no reconhecimento da palavra e na fala( 15 - 17 ). Provavelmente o grupo I apresentará maiores riscos para a ocorrência dos transtornos de leitura e escrita.

Acredita-se, portanto, que seria interessante o aspecto fonológico sempre ser levado em consideração na intervenção fonoaudiológica em todas as crianças com fissura. Pelo fato dessas crianças não terem em seus planos de intervenção terapêutica a preocupação da análise e tratamento dos aspectos fonológicos, acredita-se que estes são um dos motivos do processo mais prolongado.

Neste estudo não foram avaliados os transtornos de leitura e escrita dos grupos I e II. Uma pesquisa futura dessas alterações poderá definir o quanto as manifestações de déficits da consciência fonológica vão interferir nesta função.

CONCLUSÕES

Com as revelações de déficits da consciência fonológica a partir da análise dos resultados obtidos no presente estudo, principalmente ao nível do fonema, conclui-se que as crianças nascidas com fissura isoladas (grupo I) terão risco para adquirir a habilidade de analisar palavras em relação a fonemas e sílabas, explicando o motivo da dificuldade de fala nesses pacientes.

Como não eram conhecidos déficits anteriormente, o enfoque terapêutico foi incompleto. Portanto, o processo terapêutico acabou sendo mais longo que o necessário.

As diferenças encontradas entre os grupos I e II, apesar de não significativas estatisticamente, podem sugerir que a presença da malformação dificulte a aquisição e o desenvolvimento da fala e linguagem, e, como dissemos anteriormente, prolongue o processo terapêutico se não realizadas intervenções diretivas, como a inclusão da terapia de consciência fonológica na intervenção fonoaudiológica.

REFERÊNCIAS

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2. Kemp-Fincham SI, Kuehn DP, Trost-Cardamone JE. Speech development and timing of primary veloplasty. In: Bardach J, Morris HL, editors. Multidisciplinary Management of Cleft Lip and Palate. Philadelphia: WB Saunders, 1990. p. 736-45.
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