versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.106 no.1 São Paulo jan. 2016 Epub 08-Dez-2015
https://doi.org/10.5935/abc.20160004
O questionário Walking Estimated-Limitation Calculated by History (WELCH) foi proposto para avaliar o comprometimento da marcha em pacientes com claudicação intermitente (CI), apresentando propriedades psicométricas satisfatórias. No entanto, não há ainda uma versão disponível em português brasileiro, o que reduz seu uso em pacientes brasileiros.
Analisar as propriedades psicométricas de uma versão do WELCH traduzida para o português brasileiro em pacientes brasileiros com CI.
Oitenta e quatro pacientes com CI participaram do estudo. Após tradução e retrotradução realizadas por dois tradutores independentes, a validade de constructo do WELCH foi analisada através da correlação dos escores do questionário com a capacidade de caminhada obtida com o teste de esteira (protocolo de Gardner). Para determinar a confiabilidade do WELCH, foram calculadas a consistência interna e a confiabilidade teste–reteste com um intervalo de sete dias entre as aplicações dos dois questionários.
Foram observadas correlações positivas significativas entre o escore WELCH e a distância até início da claudicação (Figura 1A; r = 0,64, p = 0,01) e distância total de caminhada (Figura 1B; r = 0,61, p = 0,01). A consistência interna foi de 0,84, enquanto que o coeficiente de correlação intraclasse entre a avaliação dos questionários foi de 0,84. Não houve diferenças nos escores de WELCH entre as aplicações dos dois questionários.
A versão em português brasileiro do WELCH apresenta indicadores adequados de validade e confiabilidade, permitindo seu uso em pacientes brasileiros com CI.
Palavras-Chave: Questionário; Marcha; Caminhada; Claudicação Intermitente; Valor Preditivo dos Testes; Avaliação da Deficiência; Brasil
The Walking Estimated-Limitation Calculated by History (WELCH) questionnaire has been proposed to evaluate walking impairment in patients with intermittent claudication (IC), presenting satisfactory psychometric properties. However, a Brazilian Portuguese version of the questionnaire is unavailable, limiting its application in Brazilian patients.
To analyze the psychometric properties of a translated Brazilian Portuguese version of the WELCH in Brazilian patients with IC.
Eighty-four patients with IC participated in the study. After translation and back-translation, carried out by two independent translators, the concurrent validity of the WELCH was analyzed by correlating the questionnaire scores with the walking capacity assessed with the Gardner treadmill test. To determine the reliability of the WELCH, internal consistency and test–retest reliability with a seven-day interval between the two questionnaire applications were calculated.
There were significant correlations between the WELCH score and the claudication onset distance (r = 0.64, p = 0.01) and total walking distance (r = 0.61, p = 0.01). The internal consistency was 0.84 and the intraclass correlation coefficient between questionnaire evaluations was 0.84. There were no differences in WELCH scores between the two questionnaire applications.
The Brazilian Portuguese version of the WELCH presents adequate validity and reliability indicators, which support its application to Brazilian patients with IC.
Keywords: Questionnaires; Gait; Walking; Intermittent Claudication; Predictive Value of Tests; Disability Evaluation; Brazil
A doença arterial periférica (DAP) afeta aproximadamente 202 milhões de pessoas no mundo, contribuindo para a morbidade e mortalidade global geral.1 No Brasil, a DAP acomete aproximadamente 10,5% da população com idade acima dos 18 anos.2 A claudicação intermitente (CI), o principal sintoma da DAP, afeta aproximadamente um terço destes pacientes.3 A CI é descrita como uma cãibra, dor, ou cansaço que afeta os membros inferiores durante a caminhada e é aliviada com descanso por um curto período.4,5 Esses sintomas comprometem a capacidade de marcha, aptidão física6 e qualidade de vida desses pacientes.7,8
A capacidade de marcha tem sido utilizada como um desfecho clínico importante em pacientes com CI,9,10 e os testes de caminhada, incluindo o teste escalonado em esteira, têm sido considerados padrão-ouro nesta avaliação.11,12 No entanto, como os testes de caminhada são mais demorados e requerem instalações adequadas, eles não são frequentemente utilizados em situações clínicas. Portanto, o uso de métodos fáceis e rápidos, tais como questionários, tem sido proposto para avaliar a capacidade funcional em pacientes com CI.11,13-15
O Walking Estimated-Limitation Calculated by History (WELCH) foi recentemente proposto como um novo e simples questionário de quatro itens de fácil marcação para avaliar o comprometimento da marcha em pacientes com CI. Embora o questionário WELCH tenha sido validado em outros idiomas,16,17 ele ainda não foi traduzido e validado para a língua portuguesa, limitando o seu uso em pacientes brasileiros com CI. Assim, o objetivo do presente estudo foi analisar as propriedades psicométricas de uma versão em português brasileiro do questionário WELCH em pacientes com CI.
No total, 100 pacientes de ambos os sexos com sintomas de CI foram recrutados por amostragem de conveniência a partir da Unidade Vascular do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Os critérios de inclusão foram: (a) idade ≥ 50 anos; (b) DAP estágio II em um ou ambos os membros inferiores, de acordo com a classificação de Fontaine18; c) habilidade de caminhar em uma esteira por pelo menos dois minutos a 3,2 km/h e 0% de inclinação; d) limitações ao teste da esteira devido a sintomas de CI. Pacientes com índice tornozelo-braquial (ITB) > 1,30 e/ou artérias não-compressíveis em ambos os lados foram excluídos. Oitenta e quatro pacientes reuniram todos os critérios de inclusão e participaram do estudo.
O Conselho de Revisão Institucional (processo: 1973‑14) aprovou este estudo, que foi realizado de acordo com princípios internacionais de ética em conformidade com a Declaração de Helsinki. Todos os pacientes forneceram consentimento por escrito para participar do estudo.
Após os procedimentos de tradução e retrotradução, a versão do questionário em português brasileiro foi testada em todos os pacientes com CI. Foram obtidos ainda a história clínica, o ITB19 e a capacidade de caminhada avaliada com o teste escalonado em esteira de Gardner-Skinner.20 A fim de analisar a confiabilidade do teste–reteste do questionário WELCH em português, uma subamostra de 17 pacientes foi reavaliada com um intervalo de sete dias, usando os mesmos procedimentos da primeira avaliação.
A tradução do questionário foi realizada por um profissional qualificado especialista em traduções cujo idioma nativo é o português brasileiro, e que possui fluência em inglês e experiência na tradução de manuscritos na área médica. O tradutor foi informado do propósito do estudo e da população-alvo à qual o questionário seria aplicado. Além disso, o tradutor foi aconselhado a realizar uma tradução semântica e não apenas literal, bem como a utilizar palavras que causariam o mesmo impacto em nosso contexto cultural, visando a reprodução da mesma resposta emocional.
Após tradução do questionário, a fase de teste foi realizada, avaliando a compreensão do questionário por indivíduos com CI. Para isso, foi selecionada uma amostra adicional de 30 pacientes com CI (que não haviam participado no processo de determinação da validade e confiabilidade). Nesta fase, os indivíduos com CI foram solicitados a comentar sobre as perguntas do questionário, apontar dificuldades e sugerir termos mais fáceis de serem entendidos. Com base nos comentários dos pacientes, o questionário foi então reanalisado por um profissional da área de saúde que introduziu pequenas alterações para melhorar a sua compreensão. Posteriormente, o questionário foi submetido à retrotradução para o inglês por um outro tradutor bilíngue que, da mesma maneira que o primeiro, também era um profissional especialista qualificado em traduções cujo idioma nativo era o português brasileiro, e que também era fluente em inglês e tinha experiência na tradução de manuscritos na área médica, tanto para o português quanto para o inglês. É importante mencionar que o tradutor responsável pela retrotradução estava cego para a versão original do WELCH em inglês.
Os autores então avaliaram as versões traduzidas e retrotraduzidas através de comparações com o texto original para correção de discrepâncias e criação de uma versão de consenso. Para criação dessa versão, foi tomado cuidado quanto à preservação das equivalências semânticas (palavras com o mesmo significado) e idiomáticas (gírias e expressões coloquiais equivalentes), para apresentação de um vocabulário simples e direto.
As respostas do questionário WELCH foram preenchidas através de entrevistas e atribuídas escores como descrito previamente.21 Sucintamente, cada uma das oito respostas aos três primeiros itens do questionário tem um valor que varia de 0 a 7, e cada uma das cinco respostas propostas para o último item que diz respeito à velocidade habitual de caminhada tem um coeficiente que varia de 1 a 5. O escore é calculado através da soma dos valores para os três primeiros itens do questionário menos um, multiplicado pelo coeficiente do item final do questionário (velocidade de caminhada). O escore do WELCH varia de 0 a 100, com zero indicando um paciente que pode deambular por 30 segundos quando caminha lentamente e que geralmente caminha muito mais lentamente do que seus parentes, amigos, ou pessoas da mesma idade. Um escore de 100 indica um paciente que pode caminhar por três horas ou mais, mesmo quando caminhando rápido, e que geralmente caminha mais rápido do que seus parentes, amigos, ou pessoas da mesma idade.
Todas as análises foram realizadas com SPSS versão 17 (IBM, Chicago, IL). A distribuição Gaussiana e a homogeneidade da variância dos dados foram analisadas usando os testes de Shapiro-Wilk e Levene. A validade foi determinada pela medida da validade de constructo. Como uma distribuição não-Gaussiana foi observada, a relação entre o escore de WELCH e o comprometimento da marcha (distância até o início da claudicação e distância total de caminhada) no teste da esteira foi analisada com o coeficiente de correlação de Spearman. A consistência interna, medida com o alfa de Cronbach, e a confiabilidade teste‑reteste, estimada com o coeficiente de correlação intraclasse e com os limites de concordância de Bland‑Altman, foram calculados para determinar a confiabilidade do WELCH. Os valores são apresentados como média ± desvio padrão para variáveis quantitativas e como frequência para variáveis categóricas. O nível de significância para todas as análises inferenciais foi fixado em p < 0,05.
As características principais dos pacientes estão mostradas na Tabela 1. Eles eram em sua maioria idosos (64,8 ± 8,8 anos), homens (77%) e hipertensos (86%).
Tabela 1 Características dos pacientes
Variável | |
---|---|
Idade (anos) | 64,8 ± 8,8 |
Homens (%) | 77,0 |
Peso (kg) | 72,8 ± 10,5 |
Índice de massa corporal (kg/m2) | 25,9 ± 3,3 |
Índice tornozelo-braquial | 0,61 ± 0,13 |
Fatores de risco | |
Tabagismo prévio (%) | 69 |
Tabagismo atual (%) | 22 |
Hipertensão (%) | 86 |
Diabetes mellitus (%) | 40 |
Dislipidemia (%) | 87 |
Obesidade (%) | 13 |
Capacidade de caminhada | |
Distância até início da claudicação | 156 ± 113 |
Distância total de caminhada | 397 ± 210 |
Questionário | |
Escore WELCH | 24 ± 21 |
Os valores são apresentados como média ± desvio-padrão e frequência.
O escore WELCH médio foi de 24 ± 21. A distância média até início da claudicação e a distância total de caminhada foram de 156 ± 113 m e 397 ± 210 m, respectivamente. Houve uma correlação positiva significativa entre o escore WELCH e a distância até o início da claudicação (Figura 1A; r = 0,64, p = 0,01) e distância total de caminhada (Figura 1B; r = 0,61, p = 0,01).
Figura 1 Gráficos de dispersão do escore WELCH versus a distância até início da claudicação (A) e o escore WELCH versus a distância total de caminhada (B).
A consistência interna para o escore WELCH total foi de 0,84, mostrando homogeneidade suficiente. A análise de teste‑reteste indicou um coeficiente de correlação intraclasse de 0,84 e uma concordância satisfatória (viés = -3,11 ± 6,23 n.u; limites de concordância de 95%: -22,92 a 16,69), com apenas 4,7% dos indivíduos fora dos limites de concordância (Figura 2).
O principal achado deste estudo foi que a versão do WELCH em português brasileiro apresentou indicadores adequados de validade e confiabilidade em uma amostra de pacientes brasileiros. Este achado sugere que a versão em português brasileiro do questionário WELCH poderia ser útil para avaliar o comprometimento da marcha em pacientes brasileiros com CI.
Embora vários questionários têm sido desenvolvidos para avaliar o comprometimento da marcha em pacientes com CI, o WELCH tem sido demonstrado ser mais simples e de fácil marcação em comparação aos outros questionários.21,22 Para validade de constructo (escore WELCH em comparação ao teste de esteira) o escore WELCH em português brasileiro correlacionou significativamente com a distância até o início da claudicação (r = 0,64) e distância total de caminhada (r = 0,61) obtidos a partir de um teste escalonado em esteira. Estes coeficientes são maiores do que os reportados previamente para o questionário PAVK-86,23 subescala de funcionamento físico do questionário SF-36 (r = 0,31)24 e três domínios (distância, velocidade e escadas) da versão em português brasileiro do Walking Impairment Questionnaire (WIQ) (r = 0,30–0,43), validados em pacientes brasileiros com CI.13
A correlação positiva moderada observada entre o escore de WELCH em português brasileiro e os resultados da capacidade de caminhada medidos objetivamente foram semelhantes aos coeficientes observados nas versões francesas originais (r = 0,61)21 que realizaram um protocolo de esteira diferente com carga constante (carga constante 3,2 km/h e gradiente de 10% por 15 minutos) e na versão inglesa do questionário WELCH (r = 0,59),17 na qual foi realizado o mesmo protocolo de esteira (Gardner-Skinner) deste estudo. Sendo assim, o escore de WELCH parece apresentar uma associação moderada com uma variedade de testes de caminhada, fornecendo informação sobre padrões diferentes de deambulação. Porém, deve-se ressaltar que na versão do WELCH em inglês, Tew et al.17 encontraram uma forte correlação positiva (r = 0,82) entre o escore WELCH e o desempenho no teste de caminhada de seis minutos, indicando que o questionário WELCH deve correlacionar melhor com testes que simulam atividades físicas da vida diária.
Para determinar a confiabilidade do WELCH neste estudo, a consistência interna e a confiabilidade teste‑reteste foram calculadas. Primeiro, a consistência interna foi de 0,84 para o escore WELCH em português brasileiro, indicando que o questionário tem homogeneidade suficiente. Segundo, a confiabilidade teste‑reteste analisada pelo coeficiente de correlação intraclasse do escore WELCH em português brasileiro foi de 0,84. Além do coeficiente de correlação intraclasse, nós aplicamos em nosso estudo os limites de concordância do método de Bland-Altman. Encontramos nesta análise uma concordância satisfatória (viés = -3,11 ± 6,23 n.u; limite de concordância de 95%: -22,92 a 16,69), com apenas 4,7% dos indivíduos fora dos limites de concordância. Considerando em conjunto, estes resultados mostram indicadores de confiabilidade adequados na versão em português brasileiro do WELCH em pacientes com CI.
A DAP afeta aproximadamente 10,5% da população brasileira com idade acima dos 18 anos,2 e a avaliação da capacidade de marcha nestes pacientes é útil para identificar a presença de comprometimento na caminhada. A aplicação prática do estudo atual é que a versão em português brasileiro do WELCH apresenta indicadores adequados de validade e confiabilidade e pode consequentemente ser utilizada em situações clínicas em locais brasileiros nos quais o teste da esteira não pode ser executado. É importante observar que devido ao baixo nível educacional dos pacientes que utilizam o sistema público de saúde, a nossa versão do questionário utilizou um formato de entrevista, que é um formato diferente do de auto-preenchimento que tem sido utilizado em outras versões do WELCH.16,17,21,22 Assim, a fim de obter resultados semelhantes aos descritos neste estudo, a versão em português brasileiro do WELCH deve ser aplicada com utilização do formato de entrevista.
Este estudo tem algumas limitações. A sua amostra incluiu pacientes com DAP estágio II na classificação de Fontaine. Assim, os resultados não podem ser extrapolados para pacientes em outros estágios da doença (assintomáticos, estágios III e IV). Nossos pacientes já estavam familiarizados com o teste da esteira, já que o teste é utilizado rotineiramente em todos os pacientes com CI em nosso hospital. Assim, nós não podemos generalizar nossos resultados para pacientes sem experiência com medições objetivas. O Brasil é um país de dimensões continentais e com uma população diversa. Como tal, é possível que a versão do WELCH que foi traduzida neste estudo possa não ser válida para brasileiros em regiões diferentes da qual o estudo foi realizado. Por último, o escore de WELCH foi comparado apenas com distâncias de caminhada medidas em laboratório, enquanto que ferramentas de auto-preenchimento parecem correlacionar melhor com os testes de capacidade de caminhada baseados na comunidade, como o teste de caminhada de seis minutos.25
A versão em português brasileiro do WELCH apresenta indicadores adequados de validade e confiabilidade, permitindo seu uso em pacientes brasileiros com CI.