versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.10 Rio de Janeiro out. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172210.19652017
No Brasil, somente dez anos após a promulgação da Constituição de 1988 ações mais efetivas no campo da saúde da mulher começam a ser implementadas, mas estavam concentradas na assistência ao pré-natal, parto e nascimentos. A partir de 2004, a Política Nacional de Atenção Integral a Saúde reconheceu a existência de lacunas no âmbito das políticas públicas para saúde sexual e reprodutiva de mulheres. O Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres passam a desenvolver ações conjuntas, sendo destaques: Pacto pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal; Política Nacional dos Direitos Sexuais e Reprodutivos; normatização da atenção humanizada ao abortamento legal; notificação compulsória nos serviços de saúde dos casos de violência; anticoncepção de emergência; enfrentamento à feminização das doenças sexualmente transmissíveis e Aids e políticas direcionadas especificamente para a atenção à saúde das mulheres lésbicas e afrodescendentes.
Destacamos, ainda, a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), publicada em 2006, que dentre outras questões, estimula ações intersetoriais buscando parcerias que propiciem o desenvolvimento integral das ações de promoção da saúde; fortalecimento da participação social como fundamental na consecução de resultados de promoção da saúde, em especial a equidade e o empoderamento individual e comunitário; promoção de mudanças na cultura organizacional com vistas à adoção de práticas horizontais de gestão e estabelecimento de “redes de compromisso e corresponsabilidade quanto à qualidade de vida da população em que todos sejam partícipes no cuidado com a saúde”1.
Uma das ações específicas que constitui a PNPS é a “Prevenção da violência e estímulo à cultura de paz”, onde consta, dentre outros objetivos, a ampliação da rede de prevenção da violência e promoção da saúde; a sensibilização e a capacitação dos gestores e profissionais da saúde na identificação e encaminhamento adequado de situações de violência intrafamiliar e sexual; a implementação da ficha de notificação de violência interpessoal e o monitoramento e a avaliação do desenvolvimento dos Planos Estaduais e Municipais de Prevenção da Violência mediante a realização de coleta, sistematização, análise e disseminação de informações1.
Assim, além da notificação compulsória, todo um sistema de informação sobre violência, juntamente com estratégias de formação de profissionais, envolvem a promoção da saúde. A partir de 2010, a violência doméstica, sexual e outras, passaram a integrar a lista nacional de agravos de notificação compulsória2, revelando um esforço de integrar a vigilância das violências ao Sistema Nacional de Vigilância em Saúde, conferindo a mesma prioridade de atenção.
Em 2014, os óbitos infantil e materno são incorporados à lista de agravos de notificação compulsória, com a publicação da Portaria GM no 1.2713, representando, também, o esforço em dar visibilidade a esses eventos. A obrigatoriedade de vigilância desses eventos pelos municípios, definida pela Portaria no 1.399/19994, é consequência das iniciativas de operacionalização dos direitos da mulher e da criança e alcança pactuação internacional com os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), em 2000. É reconhecido que os óbitos materno e infantil apresentam determinantes que refletem importantes desigualdades sociais, como: renda, educação saneamento, acesso oportuno à atenção à saúde de qualidade5. Como consequência, vários óbitos são considerados evitáveis, significando que podem ser prevenidos pela atuação oportuna e adequada dos sistemas de saúde6. Por outro lado, os óbitos fetais não receberam a mesma atenção. No Brasil e no mundo, foram poucos os investimentos em ações que pudessem impactar a evitabilidade ou mesmo conferir maior visibilidade a esse evento que continua negligenciado7,8.
No Brasil, a operacionalização da vigilância dos óbitos materno e infantil ganhou espaço específico com a criação dos comitês de prevenção. Tais instâncias constituem verdadeiros espaços de controle social e apoio à gestão e são hoje entendidos como imprescindíveis para a redução desses eventos através do conhecimento de sua magnitude e determinantes e proposição de ações para a qualificação da atenção à saúde. Vários municípios, principalmente capitais, apresentam experiências exitosas. O Estado de São Paulo foi protagonista na criação, em 1988, dos primeiros Comitês de Estudo da Morte Materna no Brasil, que, em 1995, passaram a integrar o Sistema Estadual de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno. Nesse Estado, a Razão da Mortalidade Materna (RMM) passou de valores superiores a 140 no início da década de 1960 para valores em torno de 50 na década de 1980. Posteriormente, ao longo da década de 1990 e início dos anos 2000, esse indicador apresentou queda mais lenta, sendo, contudo, em qualquer período, menores que os coeficientes para o Brasil. A análise temporal desse indicador também revela a influência da ação da vigilância do óbito a partir do aumento na detecção das mortes maternas desde 19969.
Com relação ao óbito infantil, as primeiras iniciativas de implementação de comitês de investigação desses eventos são de meados da década de 1990, sendo, ainda, o estado de São Paulo protagonista, com a criação do primeiro Comitê Regional de Investigação de Mortalidade Infantil, em 199910.
Dados do IBGE mostraram que a mortalidade infantil no Brasil passou de 69,1%, em 1980, para 13,8% em 2015, uma queda de 80,0%11,12. Apesar dos avanços, entretanto, as metas pactuadas para os ODM, para a mortalidade materna (35 óbitos/100 mil NV) e infantil (15,7 óbitos/1.000 NV) até 2015, só foi alcança para o último, com o Brasil atingindo 54,6 óbitos maternos/100 mil nascimentos e 13,82 óbitos infantis/1.000 NV12.
Outro aspecto importante a ser observado com relação às características dos óbitos maternos, infantis e fetais, diz respeito à sua evitabilidade. Pesquisas e análises de dados apresentadas por comitês de mortalidade bem como pelos serviços de saúde têm demonstrado que, apesar das quedas nas taxas de mortalidade, sobretudo no componente pós-neonatal (no caso dos óbitos infantis), conforme apresentado anteriormente, a grande maioria continua a ocorrer por causas que seriam evitáveis por intervenções dos serviços de saúde ou por ações de promoção da saúde, como é o caso dos associados à violência doméstica, obstétrica e institucional. Além disso, o elevado número de óbitos cuja causa básica foi mal definida contribui para mascarar os dados, ocultando casos evitáveis, entre eles os associados à violência doméstica, obstétrica e institucional13,14.
Tem-se, então, que, na medida em que a Vigilância em Saúde investe em ações junto a doenças e agravos não transmissíveis e da promoção da saúde, ela se aproxima cada vez mais do comprometimento com o enfrentamento da violência contra a mulher e a criança, aprofundando de modo radical o conceito de saúde proposto na VIII Conferência Nacional de Saúde. A complexidade da noção do conceito de saúde exige a aproximação e o diálogo entre instâncias e instituições como o sistema jurídico, educacional e de assistência social na interface com a saúde, especialmente no caso das violências. Uma das formas de mediação do diálogo entre as diversas instâncias envolvidas é por meio da informação gerada através da notificação dos casos.
Entretanto, apesar dos inegáveis avanços, a heterogeneidade brasileira produz e mantém diferenças marcantes nos indicadores entre e dentre regiões, estados e municípios. Ainda, com relação aos comitês municipais, municípios pequenos e médios enfrentam desafios para sua constituição e manutenção. O relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) cujo tema ‘Monitoramento e Prevenção da Mortalidade Materna’ revelou que os comitês não se encontram em funcionamento em diversos Estados (24 oficialmente implantados, dos quais 14 atuavam efetivamente) e na maioria dos municípios brasileiros. Paraná foi o estado mais bem estruturado em termos de organização de comitês, com 22 regionais e 160 municipais, para um total de 399 municípios15.
No município de Viçosa-MG, o Comitê Municipal de Prevenção de Óbitos Maternos, Fetais e Infantis (CMPOMFI) funciona desde 2004 em articulação com os dos dois hospitais do município, alinhando-se às prioridades da Agenda Estratégica da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e do Programa de Fortalecimento da Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES-MG). O município de Viçosa, por ser sede da região de saúde, é o município de referência em maternidade e ações de média e alta complexidade, assim, as atividades relacionadas à prevenção do óbito materno e infantil desenvolvidas no município acabam por impactar os demais oito municípios da Região de Saúde. Então, em 2014, foi proposta a criação do Comitê de Prevenção do Óbito Materno, Fetal e Infantil da Região de Saúde de Viçosa (CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa), composto pelos nove municípios dessa região, todos de pequeno e médio porte. O CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa visa conferir agilidade à vigilância dos óbitos oportunizando investigações e discussões de casos, dando visibilidade aos problemas identificados e buscando soluções para os municípios com a organização da rede de atenção à saúde e melhoria da informação. Além das ações específicas relacionadas aos eventos (óbitos materno, fetal e infantil), as atividades do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa também objetivam monitorar o óbito como evento sentinela tardio da violência doméstica contra a mulher e a criança, produzindo informações para a orientação de medidas de prevenção e controle dos óbitos por causas evitáveis e enfrentamento da violência contra a mulher e a criança.
Seguindo o esforço de efetivar a implementação e o pleno funcionamento do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa, enquanto rede regional de vigilância do óbito de mulher em idade fértil, materno, fetal e infantil, o presente estudo objetivou avaliar a implementação dessa rede, refletindo e problematizando sobre os desafios, os avanços e as potencialidades de atuação enquanto observatório da violência contra mulher.
A opção pela construção de dados de natureza qualitativa pressupôs a intenção de se compreender o envolvimento dos profissionais integrantes do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa nas discussões e proposições do Comitê, os modos de interação e circulação da informação sobre óbito e violência e analisar as dimensões política e técnica dessas informações. Para isso, contamos com os procedimentos da pesquisa-participante, considerada uma estratégia metodológica da pesquisa social na qual há ampla interação entre pesquisadores e pessoas implicadas na situação investigada. Seus princípios estão orientados para a atenção às necessidades de grupos sociais em situações comuns de trabalho e estudo e têm como pressupostos a colaboração e a troca de informações, aspirando uma comunicação o mais horizontal possível entre todos os/as participantes. Assim, a dimensão dialógica, enquanto estrutura da dinâmica com os sujeitos de pesquisa, propõe acionar a realização de um processo de aprendizagem. Tal aprendizagem pode ser entendida como contribuição para a transformação social dos grupos em relação à sua situação e necessidades, para que estes possam melhorar mediante sua organização e ação política. A pesquisa participante enfatiza a socialização do saber através da participação dos sujeitos na análise e solução de seus problemas, promovendo a produção coletiva de conhecimentos. Utilizando-se da informação ordenada e classificada, podem-se determinar as raízes e as causas dos problemas e as vias de solução para os mesmos, estabelecendo relações entre problemas individuais e coletivos, funcionais e estruturais, como parte da busca de soluções conjuntas para os problemas enfrentados16.
A técnica da observação participante foi utilizada no acompanhamento das reuniões do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa e do Comitê Municipal de Prevenção do Óbito Materno, Fetal e Infantil de Viçosa (CMPOMFI-Viçosa). Também, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com integrantes do comitê e secretários municipais de saúde dos municípios envolvidos (Araponga, Cajuri, Canaã, Paula Candido, Porto Firme, São Miguel do Anta, Pedra do Anta, Viçosa e Teixeiras). Entrevistas semiestruturadas estão baseadas em roteiro previamente elaborado, com a função de guiar uma “conversa com finalidade”, em que o/a entrevistado/a tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada; essa ferramenta facilita criar um ambiente de diálogo e permite à pessoa entrevistada se expressar livremente sem as limitações criadas por um questionário17.
Os depoimentos foram transcritos e tratados pela análise de conteúdo temática18. Essa técnica viabiliza a análise do conjunto e das particularidades, a classificação das informações em categorias e a identificação de ‘núcleos de sentido’ entendidos como uma unidade de significação no conjunto de uma comunicação18.
De forma complementar, foram analisadas as informações referentes às investigações de óbitos maternos, fetais e infantis realizadas pelos municípios e discutidas no CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa buscando melhor qualificar a análise dos dados qualitativos em relação à evitabilidade dos óbitos. Adicionalmente, foram analisados de forma integrada os dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), procurando relacionar os óbitos de mulheres com a notificação de violência contra esse gênero. Essa análise só foi possível de ser realizada para o município de Viçosa e compreendeu o período entre 2010 e 2014.
O protocolo de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa.
Entre 2015 e 2016, foram acompanhadas onze reuniões, sendo sete do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa e quatro do CMPOMFI-Viçosa. No caso do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa, devem participar o profissional indicado pela gestão em saúde, o qual, normalmente, é a referência técnica em vigilância do óbito no município. Nas reuniões, nunca estiveram presentes, ao mesmo tempo, os representantes dos nove municípios que compõem a Região de Saúde de Viçosa. De forma geral, a justificativa para não estar presente era devido à falta de tempo para participar da reunião. Apenas um dos nove municípios não participou de nenhuma reunião ocorrida no período.
Em se tratando do CMPOMFI-Viçosa, o comitê é composto por profissionais do serviço de saúde municipal (Vigilância Epidemiológica, Estratégia Saúde da Família, Centro Estadual de Atenção Especializada-CEAE), representante da Superintendência Regional de Saúde de Ponte Nova, da Universidade Federal de Viçosa (dois), do Conselho Municipal de Saúde, da Associação Médica e representantes dos comitês hospitalares (dois). Nas reuniões, em geral, há assiduidade de todos os representantes.
As reuniões do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa tiveram como objetivo discutir casos de óbitos fetais, infantis e de mulher em idade fértil (MIF) ocorridos entre residentes em sua área de abrangência e cujas investigações hospitalar, ambulatorial e domiciliar já tivessem sido realizadas. Não foram definidos critérios para essa seleção pelo comitê, tão somente a dificuldade (qualquer) vivenciada ou percebida pelo profissional na investigação ou conclusão dos casos. Entre 2015 e 2016, ocorreram, na Região de Saúde de Viçosa, 24 óbitos de MIF, tendo sido investigados 83%, sendo um materno; 10 fetais, com 80% investigados e 13 infantis, dos quais 53,8% foram investigados. Dos óbitos fetais investigados, 100% foram considerados evitáveis e dos infantis, 57,4%, segundo a lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde19. Apesar de continuar alto o número de óbitos com causa mal definida, mesmo após a investigação e discussão dos casos pelo CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa, em todos os demais casos a evitabilidade esteve relacionada à adequada atenção à mulher na gestação’ e ‘adequada atenção à mulher no parto’.
Foram realizadas 16 entrevistas, incluindo referências técnicas de vigilância do óbito (oito municípios da Região de Saúde de Viçosa) e gestores (secretários/as de saúde de cinco municípios), além da coordenadora da Estratégia Saúde da Família e a responsável pelo Serviço de Vigilância Epidemiológica, ambas do município de Viçosa, e a referência técnica de vigilância do óbito da Superintendência Regional de Saúde de Ponte Nova.
Os principais e recorrentes problemas relatados pelos/as entrevistados/as estiveram relacionados à falta de reconhecimento da atividade de vigilância do óbito pelos gestores; falta de tempo para análise, discussão e investigação dos óbitos; falha na comunicação entre instituições da rede de atenção; precariedade de recursos, infraestrutura, capacitação profissional e comprometimento dos envolvidos. Por outro lado, foram relatadas melhorias na interação entre municípios, crescimento das investigações realizadas e maior conscientização da importância da vigilância do óbito entre os/as trabalhadores/as. A partir das investigações de óbitos de mulheres em idade fértil, materno, fetal e infantil, também foi possível identificar casos de violência contra a mulher e a criança, fazendo com que a violência doméstica fizesse parte do cotidiano das discussões sobre os óbitos.
Com relação à análise integrada dos dados sobre óbito e violência contra a mulher, foram identificados 57 óbitos de mulheres em idade fértil registrados no município de Viçosa entre 2011-2014, o que representou 9,0% do total de óbitos de mulheres ocorridos no mesmo período. Dos óbitos de MIF, 19,3% foram por causas externas, sendo 63,6% por agressão e 18,1% por acidentes. Ainda sobre os óbitos por causas externas entre MIF, observamos que 71,0% das mulheres que morreram por agressão tinham registro de violência doméstica no SINAN e, em pelo menos 60,0% desses casos, a violência era reincidente.
Na Região de Saúde de Viçosa, área integrante da Superintendência Regional de Saúde de Ponte Nova, Minas Gerais, o município de Viçosa foi protagonista na implementação de ações de prevenção do óbito materno, fetal e infantil, sendo o comitê municipal estabelecido por lei municipal em 200320 e as atividades iniciadas em 2004. Inicialmente, as ações de prevenção do óbito materno, fetal e infantil executadas pelo CMPOMFI-Viçosa articulavam serviços de saúde locais (Serviço de Vigilância em Saúde/SVS-SMS-Viçosa, Centro Estadual de Atenção Especializada-CEAE e os dois hospitais do município) e incluíam notificação, investigação, sistematização e análise de dados e comunicação das informações geradas com vistas à melhoria da qualidade das ações de atendimento à mulher e à criança.
A articulação no município de Viçosa era suficiente para subsidiar intervenções no nível local. Contudo, por Viçosa ser município sede da Região de Saúde, os óbitos e nascimentos dos demais municípios da região ocorrem prioritariamente nessa cidade, o que implicou na necessidade de aumentar a abrangência das ações, articulando serviços e profissionais de saúde de todos os municípios da região. Nesse sentido, foi instituído, em 2014, o CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa, integrando todos os nove municípios da região de forma a permitir a conformação de uma rede regional de vigilância do óbito.
A atuação dos comitês de mortalidade vem sendo apontada por diferentes autores como um espaço técnico e político importante na redução da mortalidade materna e infantil9,21. De forma geral, as ações dos comitês implicam, inicialmente, em maior notificação desses eventos, fazendo aumentar os indicadores de morte materna e de mortalidade infantil, entretanto, esse aumento é tão somente o resultado da visibilidade a eventos que são sabidamente subnotificados, apesar dos avanços na melhoria dos registros22,23.
Apesar dos avanços observados com a instituição dos comitês de mortalidade materna e infantil no Brasil, vários, ainda, constituem-se como mero espaço de monitoramento, conforme sinalizado pela pesquisa realizada pelo Tribunal de Contas da União15. O trabalho de Rodrigues e Siqueira21, ao analisar a história de implementação do Comitê de Estudo da Morte Materna do Estado de São Paulo, aponta a necessidade de resituar a atuação dos comitês, para além de uma estratégia apenas de Vigilância Epidemiológica, sendo imperativo o seu reposicionamento político e institucional.
De fato, os vários problemas apontados pelos/as entrevistados/as em relação à fragilidade do trabalho do CPOMFI-Região de Saúde de Viçosa explicitam que as ações de vigilância, apesar da conscientização da importância da vigilância do óbito, ainda são pouco valorizadas como instrumento de planejamento das intervenções em saúde. Tanto que há poucos investimentos materiais e/ou pessoais por parte da gestão local, que prefere investir em ações assistencialistas, seja pela enorme demanda (que de fato existe), seja pelas perspectivas teórico-políticas de compreensão das ações de saúde. Assim, perpetuam-se a morosidade na produção da informação e sua baixa qualidade, sendo que esse processo se reproduz como um ciclo indesejável e de difícil ruptura.
Têm-se, ainda, no caso de municípios de pequeno e médio portes, aspectos afetos às relações pessoais que impactam as relações de trabalho e, no caso da vigilância do óbito e da violência, podem produzir tensionamentos que imobilizam as ações. Assim, se por um lado as relações pessoais podem aproximar e facilitar a interação entre as instituições, o que é fundamental nos procedimentos de investigação (hospitalar, ambulatorial), os eventos tratados, por muitas vezes explicitarem problemas nos serviços, causam suspeição e estranhamento.
Considerando a análise da evitabilidade do óbito infantil, percebe-se que as dificuldades são semelhantes ao já identificado para municípios de grande porte e capitais, residindo na baixa qualidade da assistência ao pré-natal e ao parto, o que também são condições que impactam a mortalidade materna5,24. Tais eventos, somados ao óbito por causas mal definidas, podem também sinalizar situações de violência contra a mulher, a exemplo da obstétrica. A inter-relação entre esses eventos (óbito materno, fetal e infantil) e a experiência da violência, pode ser um importante fator que implica na qualidade da notificação, o que por sua vez tem razões históricas e sociais que explicitam as questões de gênero que marcam as relações e produzem desigualdades na atenção à mulher e à criança em diferentes procedimentos, serviços ou cenários.
Ainda, dada a experiência do município de Viçosa na vigilância e no enfrentamento à violência contra a mulher, a possibilidade de regionalizar a análise dos óbitos integrada à notificação da violência vem permitindo a ampliação das ações de enfrentamento à violência contra a mulher. O trabalho realizado em Viçosa foi iniciado em 2009, sendo uma parceria de diferentes serviços do município e a Universidade Federal de Viçosa25. Com as ações implementadas, principalmente no que diz respeito à busca ativa de casos nas entidades que atendem situação de violência contra a mulher, principalmente as Polícias Civil e Militar, foi possível identificar centenas de casos de violência, enquanto no SINAN existiam apenas três casos notificados. A série histórica entre 2009 e 2013 mostra o registro sistematicamente crescente de casos, passando de 247 a 650 notificações (aumento de mais de 160%)26. Nos anos seguintes foram notificados: 276 (2014); 746 (2015) e 77 (2016 - até junho)26. A oscilação verificada nos três últimos anos se deveu por dificuldades tais como: greve da Polícia Civil e impossibilidade de acesso ao Registro de Eventos de Defesa Social (REDS), do qual eram obtidos os registros de boletins de ocorrência de casos de violência contra mulher para posterior inclusão no SINAN; também o encerramento do Programa de Educação pelo Trabalho - PET Saúde/Vigilância em Saúde da Universidade Federal de Viçosa, coordenado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero – NIEG, em 2015, que reduziu a capacidade de atualização das notificações de casos de violência no SINAN.
Com este trabalho foi possível dar visibilidade ao evento da violência contra a mulher, na medida em que uma rede de serviços de atenção à mulher em situação de violência foi implementada e vem sendo fortalecida ao longo do tempo. Contudo, para os demais municípios da Região de Saúde de Viçosa, o evento ‘violência contra a mulher’ ainda é pouco trabalhado, sendo muito reduzidas as notificações de casos. Tal situação sinaliza para a invisibilidade da violência e a dificuldade dos serviços de saúde em incorporar esse evento na rotina do trabalho de vigilância, apesar da obrigatoriedade da notificação datar de 200327.
Ainda, a perspectiva de que a violência contra a mulher é um problema de saúde pública, como passou a ser reconhecida a partir do início dos anos 200028,29, trouxe vários desafios para o setor saúde, inclusive na percepção de que tal reconhecimento poderia limitar, restringir ou, pior, fragmentar a atenção às mulheres em situação de violência.
Também, a análise integrada de dados de óbito e violência contra a mulher precisa ser aprimorada e ampliada. Estudos sobre mortalidade por causas externas, por exemplo, concentram seu olhar no impacto da violência nos óbitos de homens jovens, quase sempre deixando de fora a análise detalhada das mortes violentas entre as mulheres, dificultando a discussão dos dados. Isso ocorre devido à maior parcela dos óbitos por causas externas ser composta por homens, porém, pesquisas recentes mostram que os óbitos de mulheres por causas externas devem ser mais bem estudados30,31.
Apesar da vigilância do óbito existir no município de Viçosa, desde 2003, e na Região de Saúde de Viçosa, desde 2014, ainda prevalecem altas taxas de óbito por causas mal definidas indicando a baixa qualidade da informação produzida, bem como altas taxas de óbito de MIF, materno, fetal e infantil por causas evitáveis. Consequentemente, a baixa qualidade dos dados produzidos e a morosidade na análise dos casos e na sistematização dos dados não permitem uma intervenção oportuna e consequente de forma a evitar novas ocorrências. Impede, ainda, a identificação do óbito como consequência extrema da violência doméstica eventualmente experimentada por mulheres e crianças.
Atualmente, as ações de vigilância do óbito vêm confirmando este como evento sentinela da violência doméstica contra a mulher e a criança, e a potencialidade dos comitês de prevenção dos óbitos materno, fetal e infantil atuarem como observatórios dessa violência, devendo os mesmos receber atenção especial dos gestores locais de saúde no sentido de implementá-los e mantê-los ativos.
Contudo, a baixa qualidade das informações sobre o óbito, especificamente as altas taxas por causas mal definida, dificulta a análise desse evento como sentinela de outras formas de violência, como obstétrica e institucional, impactando a compreensão ampliada da violência e o seu consequente enfrentamento. Logo, a produção efetiva de ‘informação para a ação’ (objetivo último da vigilância) encontra limites, na medida em que não influencia efetivamente intervenções nos diferentes serviços que prestam assistência à mulher e à criança e que podem efetivamente contribuir para o enfrentamento da violência e redução dos óbitos evitáveis.
Percebe-se que os principais pontos de tensão figuram, ainda, na desinformação dos gestores (secretários de saúde, que em sua grande maioria afirmaram desconhecer as atividades do comitê) e sobrecarga de trabalho dos profissionais. Mas, apesar das dificuldades, o trabalho articulando os municípios permite a troca de experiências, o que contribui para a superação das dificuldades, que, de forma geral, são comuns.
A vivência enquanto comitê regional amplia a estratégia de fortalecimento da vigilância dos óbitos e da rede de atenção às mulheres em situação de violência. Transversalmente, nota-se a necessidade de desconstrução da atenção à saúde da mulher focada nas funções reprodutoras, de discussões sobre gênero e sexualidade, da valorização dos profissionais envolvidos, além de repensar o modelo de atenção à saúde focado na prevenção e cura, buscando o desenvolvimento da promoção da saúde.
Os resultados também evidenciam que a atuação em comitê agrega profissionais com qualificação técnica, o que impacta positivamente a produção da informação. Mas ainda são tímidas as ações políticas enquanto grupo com capacidade de intervenção. Também é importante destacar o desafio de se abordar a violência contra a mulher como um fenômeno complexo, sendo que profissionais, serviços e políticas de uma área específica não poderão, isoladamente, dar conta ou serem responsabilizados pelo enfrentamento do problema com resolutibilidade que seja capaz efetivamente de interferir nas elevadas estatísticas.