versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.22 no.10 Rio de Janeiro out. 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320172210.17422017
Os Acidentes de Trabalho (AT) são considerados graves problemas socioeconômicos e de saúde pública1. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, aproximadamente 4% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial é revertido em custos diretos e indiretos decorrentes de acidentes e doenças do trabalho. Além disso, cerca de 2,3 milhões de pessoas no mundo morrem a cada ano em decorrência desses agravos2.
No Brasil, os AT acometem grande parcela da população trabalhadora3. Dados do Anuário Estatístico da Previdência Social demonstraram que no período de 2007 a 2013, o país registrou mais de cinco milhões de acidentes. Pouco mais de 45% desses casos evoluíram para óbito, invalidez permanente ou afastamentos do emprego4.
Além dos custos financeiros e sociais, os AT respondem por grande parcela dos procedimentos realizados em unidades de média e alta complexidade. Pouco mais de 25% das lesões por causas externas atendidas em serviços de emergência no Brasil são decorrentes de acidentes de trabalho5. Apesar da sua relevância epidemiológica, o conhecimento da magnitude do problema no país ainda é subestimado3.
As informações em saúde do trabalhador produzidas no âmbito do SUS provavelmente não retratam a realidade encontrada nos serviços de saúde6. De um total de 5.565 municípios brasileiros, apenas 28,3% notificaram AT grave no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) no ano de 2013. Essa subnotificação dos casos de AT pode limitar uma análise mais adequada dos fatores que contribuem para a sua ocorrência, prejudicando o alcance e a efetividade das ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador7.
Diversos são os fatores que contribuem para a subnotificação dos AT no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Dentre eles, a fragmentação dos sistemas de informação, sobretudo no âmbito da Saúde do Trabalhador; a baixa familiaridade dos profissionais com relação aos instrumentos e procedimentos para notificação; o grande contingente de trabalhadores contratados sem vínculo estável, promovendo uma alta rotatividade nos serviços de saúde; além da carência de ações sistemáticas de educação continuada8-10.
O campo da Saúde do Trabalhador vem desenvolvendo estratégias para superar os desafios da subnotificação dos AT6. A criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) foi considerada como uma importante iniciativa capaz de oferecer suporte à organização dos fluxos de informação nos serviços de saúde11. Soma-se ainda a notificação compulsória dos AT nos serviços de saúde, sobretudo em unidades integrantes da Rede Sentinela, fortalecendo o papel da Vigilância Epidemiológica como importante ferramenta para a organização das ações em saúde12.
As unidades sentinelas compõem a Rede de Serviços Sentinela em Saúde do Trabalhador. São estruturadas por serviços de média e alta complexidade já disponíveis no SUS e atuam como retaguarda e suporte técnico para a rede de atenção à saúde. Possuem importância estratégica para a garantia da qualidade das informações, pois são responsáveis por identificar, investigar e notificar, quando confirmados, os agravos e os acidentes relacionados ao trabalho. Além disso, devem viabilizar o desenvolvimento de ações de promoção da saúde, prevenção de doenças, vigilância e intervenções em saúde do trabalhador1.
A qualidade das informações produzidas nas unidades sentinela é de fundamental importância para o desenvolvimento de estratégias eficazes para a redução dos agravos relacionados ao trabalho, além de contribuir para a estruturação/qualificação das ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador. Apesar da relevância do tema, pouco tem se discutido sobre os fatores que contribuem para a notificação dos acidentes de trabalho nas Unidades Sentinela5. O presente manuscrito objetivou analisar os fatores associados à notificação dos acidentes de trabalho por equipes multiprofissionais em unidades sentinela no município de Fortaleza, nordeste do Brasil.
Trata-se de um estudo transversal, analítico, realizado em unidades sentinela para acidentes de trabalho graves e fatais no município de Fortaleza/Ceará. A pesquisa foi realizada entre Fevereiro de 2013 à Junho de 2014. À época da realização do estudo, o município de Fortaleza contava com sete Unidades Sentinela, de níveis secundário e terciário. Todas eram credenciadas por meio de pactuação junto à Comissão Intergestores Bipartite (CIB) para a notificação de acidentes graves e fatais relacionados ao trabalho. Para a seleção das unidades foram adotados como critérios de inclusão possuir serviços ambulatoriais e de emergência com equipe médica 24 horas por dia, além de ter recebido capacitação sobre notificação de AT pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) de Fortaleza no ano anterior ao início da realização da pesquisa. Atenderam aos critérios cinco, das sete unidades sentinela: Instituto Doutor José Frota, Hospital Geral de Fortaleza, Hospital Distrital Evandro Aires de Moura, Hospital Distrital Maria José Barroso de Oliveira e Hospital Distrital Governador Gonzaga Mota.
A população de estudo foi composta por profissionais com nível superior completo, que trabalhavam diretamente com o manejo clínico dos pacientes acidentados e/ou com a notificação dos casos de acidentes de trabalho e que aceitaram participar da pesquisa no momento da coleta dos dados.
Os dados foram coletados por meio da aplicação de questionários semiestruturados. As variáveis independentes foram agrupadas em quatro blocos: características socioeconômicas (sexo, profissão e idade); perfil de formação profissional (tempo de formação, tempo de trabalho); conhecimentos acerca da legislação que dá suporte à notificação dos acidentes de trabalho (conhecimento sobre a Lei Orgânica da Saúde, Lei da Seguridade Social, ficha de notificação do Sistema de Informações de Agravos de Notificação) e; capacitações realizadas sobre acidentes de trabalho (participou de treinamentos relacionados a acidentes de trabalho, discussão da temática no ambiente de trabalho).
Os questionários foram aplicados por 12 pesquisadores de campo, supervisionados por quatro tutores (um tutor para cada quatro pesquisadores). Todos os integrantes do grupo de pesquisa receberam treinamento de 40 horas ministrado por uma equipe de supervisores. O treinamento objetivou proporcionar maior familiaridade e uniformidade para a aplicação do instrumento. Os questionários foram aplicados nos próprios locais de trabalho, em diferentes turnos, dias da semana e equipes de trabalho.
Os questionários foram digitados utilizando o software Epi-Info® versão 5.4.1, com realização de dupla entrada para checagem da consistência interna dos dados. Para a análise, utilizou-se o Stata® versão 11.1. Inicialmente foi realizada a distribuição das frequências absolutas e relativas para todas as variáveis de interesse. Em seguida, procedeu-se com a análise bivariada utilizando o teste de Qui-Quadrado de Pearson e/ou Exato de Fischer. Foram identificadas as associações brutas entre as variáveis independentes e o desfecho (notificação de acidentes de trabalho). A Razão de Prevalência (RP) e Intervalos de Confiança (IC) de 95% foram apresentados.
Após essa etapa, foi realizada a análise estratificada por variáveis de interesse (sexo, tempo de trabalho em saúde e participação em treinamentos e capacitações em Saúde do Trabalhador), estimando-se as RP ajustadas segundo o método de Mantel-Haenszel. Por fim, foi realizada análise múltipla através da Regressão de Poisson, sendo incluídas todas as variáveis que apresentaram associações com p-valor < 0,20 a partir das análises brutas e estratificadas, adotando o método Stepwise Forward. No modelo final, foram mantidas as variáveis que apresentaram nível de significância menor ou igual a 0,05.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Como se trata de pesquisa envolvendo a participação de seres humanos, todos os procedimentos obedeceram a Resolução 196/96, vigente à época do estudo. Todos os entrevistados leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Foram aplicados 354 questionários. Pouco mais de 20% foi excluído por inconsistência ou preenchimento incompleto, restando 207 instrumentos que foram analisados. Cerca de 2/3 dos entrevistados são do sexo feminino e 59% encontram-se na faixa etária de 31 a 50 anos. As categorias profissionais mais presentes foram enfermeiros (48%) e médicos (21%). Metade dos entrevistados tinha mais de 15 anos de formado. Com relação à experiência profissional na área da saúde, 52% possuíam 15 anos ou mais (Tabela 1).
Tabela 1 Perfil socioeconômico, participação em treinamentos/capacitações e conhecimentos dos profissionais sobre o tema dos AT.
Características Individuais | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 161 | 78,0 |
Masculino | 46 | 22,0 |
Profissão | ||
Enfermeiro | 99 | 48,0 |
Médico | 43 | 21,0 |
Assistente social | 23 | 11,0 |
Fisioterapeuta/T. O. | 17 | 8,0 |
Psicólogo | 10 | 5,0 |
Farmacêutico | 15 | 7,0 |
Faixa etária | ||
20 |--| 30 | 32 | 15,0 |
31 |--| 40 | 61 | 29,0 |
41 |--| 50 | 63 | 30,0 |
>=51 anos | 51 | 25,0 |
Tempo de formação profissional | ||
0 |--| 05 anos | 57 | 27,0 |
06 |--| 15 anos | 47 | 23,0 |
>= 16 anos | 103 | 50,0 |
Tempo de experiência profissional na saúde | ||
0 |--| 05 anos | 59 | 28,0 |
06 |--| 14 anos | 40 | 20,0 |
>=15 anos | 108 | 52,0 |
Participações em treinamentos e capacitações sobre notificação de AT | ||
Nunca | 116 | 56,0 |
Uma vez | 47 | 23,0 |
Duas vezes | 15 | 7,0 |
Três ou mais vezes | 29 | 14,0 |
Conhece a legislação que dá suporte a notificação dos AT | ||
Sim | 108 | 52,0 |
Não | 99 | 48,0 |
Conhece a Lei Orgânica da Saúde | ||
Sim | 102 | 49,0 |
Não | 105 | 51,0 |
Conhece a Lei da Seguridade Social | ||
Sim | 55 | 27,0 |
Não | 152 | 73,0 |
Conhece a Lei da Previdência Social | ||
Sim | 48 | 23,0 |
Não | 159 | 77,0 |
Conhece sobre Portarias Temáticas referentes aos AT | ||
Sim | 35 | 17,0 |
Não | 172 | 83,0 |
Conhece a Ficha de Notificação de AT do SINAN | ||
Sim | 110 | 53,0 |
Não | 97 | 47,0 |
Sabe que o AT é de Notificação Compulsória | ||
Sim | 172 | 83,0 |
Não | 35 | 17,0 |
O tema AT é discutido no ambiente profissional | ||
Sim | 103 | 50,0 |
Não | 104 | 50,0 |
Mais da metade dos entrevistados afirmaram nunca ter participado de treinamentos ou capacitações relacionadas à notificação de acidentes de trabalho. No tocante às legislações que dão suporte à notificação dos acidentes de trabalho, 83% dos entrevistados afirmaram desconhecer portarias específicas sobre o tema. Pouco mais de 2/3 dos participantes reconheciam que os acidentes de trabalho são de notificação compulsória (Tabela 1).
Notificar casos de acidentes de trabalho não esteve associado com sexo no conjunto dos profissionais de saúde, tempo de formado ou faixa etária (p > 0,05). Por outro lado, os fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais (p < 0,001), psicólogos (p < 0,05) e farmacêuticos (p < 0,05) tiveram menos chances de notificar acidentes de trabalho quando comparados com os profissionais de enfermagem. Além disso, os profissionais com 6 a 14 anos de atuação na área apresentaram quase duas vezes mais chances (RP = 1,90; 95%IC = 1,09-3,31) de notificar os acidentes de trabalho (Tabela 2).
Tabela 2 Análise de associação entre os fatores socioeconômicos e a notificação de AT.
Variável | Notificação | RP | (IC 95%) | P-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||
Sim | % | Não | % | ||||
Sexo | |||||||
Feminino | 73 | 45,0 | 88 | 55,0 | 1,03 | (0,89-1,19) | 0,62 |
Masculino | 19 | 41,0 | 27 | 59,0 | 1 | ||
Profissão | |||||||
Enfermeiro | 56 | 57,0 | 43 | 43,0 | 1 | ||
Médico | 18 | 42,0 | 25 | 58,0 | 0,66 | (0,39-1,10) | 0,10 |
Assistente social | 10 | 43,0 | 13 | 57,0 | 0,65 | (0,31-1,37) | 0,25 |
Psicólogo | 2 | 20,0 | 8 | 80,0 | 0,21 | (0,04-0,98) | <0,05* |
Farmacêutico | 4 | 27,0 | 11 | 73,0 | 0,32 | (0,11-0,96) | <0,05 |
Fisioterapeuta/TO | 2 | 12,0 | 15 | 88,0 | 0,13 | (0,03-0,55) | <0,001 |
Faixa etária | |||||||
20 |--| 30 | 15 | 47,0 | 17 | 53,0 | 1,15 | (0,67-1,98) | 0,61 |
31 |--| 40 | 30 | 49,0 | 31 | 51,0 | 1,15 | (0,82-1,62) | 0,39 |
41 |--| 50 | 26 | 41,0 | 37 | 59,0 | 1,00 | (0,71-1,40) | 0,99 |
>=51 anos | 21 | 41,0 | 30 | 59,0 | 1 | ||
Tempo de formado | |||||||
0 |--| 05 anos | 23 | 40,0 | 34 | 60,0 | 0,91 | (0,59-1,40) | 0,68 |
06 |--| 15 anos | 24 | 51,0 | 23 | 49,0 | 1,22 | (0,76-1,96) | 0,40 |
>= 16 anos | 45 | 44,0 | 58 | 56,0 | 1 | ||
Tempo na saúde | |||||||
0 |--| 05 anos | 23 | 39,0 | 36 | 61,0 | 0,95 | (0,62-1,45) | 0,82 |
06 |--| 14 anos | 25 | 62,5 | 15 | 37,5 | 1,90 | (1,09-3,31) | <0,001 |
>=15 anos | 44 | 41,0 | 64 | 59,0 | 1 |
* Teste Exato de Fisher.
Os profissionais que participaram de três ou mais cursos sobre a temática de AT obtiveram quase sete vezes mais chances (RP = 6,60; 95%IC = 2,67-16,34) de notificar acidentes de trabalho. Aqueles que referiram conhecer portarias e legislações relacionadas aos acidentes de trabalho também apresentaram maiores chances para a notificação (p < 0,001). Outros fatores associados que contribuíram para a notificação dos AT foram conhecer a ficha do SINAN (p < 0,001) e a legislação que dá suporte à notificação dos acidentes de trabalho (p < 0,001). Além disso, ter conhecimento de que os acidentes de trabalho são eventos de notificação compulsória (p < 0,001) e discutir sobre essa temática em seu ambiente de trabalho esteve associado ao aumento de notificações (p < 0,001) (Tabela 3).
Tabela 3 Análise de associação segundo o conhecimento dos profissionais acerca das Leis, Políticas e Portarias que dão suporte à notificação dos AT.
Variáveis | Notificação | RP bruta | (IC 95%) | P-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||
Sim | % | Não | % | ||||
Treinamentos/Capacitações | |||||||
Nunca participou | 37 | 32,0 | 79 | 68,0 | 1 | ||
Participou um vez | 24 | 51,0 | 23 | 49,0 | 1,74 | (1,08-2,80) | <0,05 |
Participou duas vezes | 7 | 47,0 | 8 | 53,0 | 1,73 | (0,67-4,46) | 0,25 |
Participou três ou mais vezes | 24 | 83,0 | 5 | 17,0 | 6,60 | (2,67-16,34) | <0,001 |
Leitura sobre a temática AT | |||||||
Sim | 58 | 57,0 | 43 | 43,0 | 1,68 | (1,26-2,23) | <0,001 |
Não | 34 | 32 | 72 | 68,0 | 1 | ||
Conhece a legislação que dá S.N* AT | |||||||
Sim | 65 | 60,0 | 43 | 40,0 | 1,88 | (1,44-2,47) | <0,001 |
Não | 27 | 27,0 | 72 | 72,0 | 1 | ||
Conhece a Lei Orgânica da Saúde | |||||||
Sim | 47 | 46,0 | 55 | 54,0 | 1,06 | (0,81-1,40) | 0,64 |
Não | 45 | 43,0 | 60 | 57,0 | 1 | ||
Conhece a Lei orgânica da S.S** | |||||||
Sim | 28 | 51,0 | 27 | 49,0 | 1,29 | (0,82-2,03) | 0,26 |
Não | 64 | 42,0 | 88 | 58,0 | 1 | ||
Conhece Lei da Previdência Social | |||||||
Sim | 27 | 56,0 | 21 | 44,0 | 1,60 | (0,97-2,64) | 0,06 |
Não | 65 | 41,0 | 94 | 59,0 | 1 | ||
Conhece Portarias Temáticas | |||||||
Sim | 21 | 60,0 | 14 | 40,0 | 1,87 | (1,01-3,47) | 0,04 |
Não | 71 | 41,0 | 101 | 59,0 | 1 | ||
Conhece a Ficha do SINAN | |||||||
Sim | 68 | 62,0 | 42 | 38,0 | 2,02 | (1,54-2,65) | <0,001 |
Não | 24 | 25,0 | 73 | 75,0 | 1 | ||
Sabe que o AT é de N.C*** | |||||||
Sim | 85 | 49,0 | 87 | 51,0 | 1,22 | (1,08-1,37) | <0,001 |
Não | 7 | 20 | 28 | 80,0 | 1 | ||
O assunto é discutido no A.T**** | |||||||
Sim | 56 | 54,0 | 47 | 46,0 | 1,48 | (1,13-1,95) | <0,001 |
Não | 36 | 35,0 | 68 | 65,0 | 1 |
Abreviações: *Suporte à Notificação **Seguridade Social ***Notificação Compulsória ****Ambiente de trabalho.
A Tabela 4 apresenta a proporção de notificação de AT segundo profissão estratificada por sexo, tempo de trabalho na saúde e participação em treinamentos e capacitações. Os profissionais de Enfermagem com 15 anos ou mais de experiência profissional (RP = 2,08; 95%IC = 1,27 - 3,42) e que participaram de treinamentos e capacitações relacionados à notificação dos AT obtiveram maiores chances (RP=1,87; 95%IC=1,14-3,06) de notificar esses eventos no serviço. Além disso, profissionais de Enfermagem do sexo feminino apresentaram quase duas vezes mais chances (RP = 1,89; 95%IC = 1,26 - 2,84) de notificar AT quando comparadas com as demais categorias profissionais do mesmo sexo (Tabela 4).
Tabela 4 Proporção de notificação de Acidentes de Trabalho segundo profissão estratificada por sexo, tempo de trabalho na saúde e participação em treinamentos e capacitações.
Variáveis | Notificação de acidentes de trabalho | RP (IC 95%) | P-valor | |||
---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||
Sim | Não | |||||
| ||||||
N (%) | N (%) | |||||
Sexo | ||||||
Masculino | ||||||
Demais profissionais | 3 | 60,0 | 2 | 40,0 | 1,00 | 0,373 |
Enfermeiros | 16 | 39,0 | 25 | 61,0 | 1,54 (0,68 – 3,46) | |
Feminino | ||||||
Demais profissionais | 53 | 56,4 | 41 | 43,6 | 1,00 | < 0,001 |
Enfermeiras | 20 | 29,9 | 47 | 70,1 | 1,89 (1,26 – 2,84) | |
Tempo de trabalho na saúde | ||||||
Até 14 anos | ||||||
Demais profissionais | 27 | 57,4 | 20 | 42,5 | 1,00 | 0,091 |
Enfermeiros | 21 | 40,4 | 31 | 59,6 | 1,42 (0,94 – 2,15) | |
15 anos ou mais | ||||||
Demais profissionais | 29 | 55,8 | 23 | 44,2 | 1,00 | 0,002 |
Enfermeiros | 15 | 26,8 | 41 | 73,2 | 2,08 (1,27 – 3,42) | |
Participação de treinamento e capacitação | ||||||
Não | ||||||
Demais profissionais | 12 | 32,4 | 25 | 68,4 | 1,00 | 0,932 |
Enfermeiros | 25 | 31,6 | 54 | 68,7 | 1,02 (0,58 – 1,81) | |
Sim | ||||||
Demais profissionais | 44 | 80,0 | 18 | 20,0 | 1,00 | 0,002 |
Enfermeiros | 11 | 37,9 | 18 | 62,0 | 1,87 (1,14 – 3,06) |
A Tabela 5 apresenta os resultados da análise de regressão múltipla de Poisson. Os profissionais de Enfermagem (RP = 1,40; 95%IC = 1,01 - 1,95) que já participaram de treinamentos e capacitações sobre a temática de notificação dos AT (RP = 1,47; 95%IC = 1,04 - 2,08) e que afirmaram ter leitura sobre o assunto (RP = 1,41; 95%IC = 1,01 - 2,00) apresentaram as maiores chances de notificarem os eventos (Tabela 5).
Tabela 5 Regressão Múltipla de Poisson em variáveis associadas à notificação de acidentes de trabalho.
Variáveis | RP | (IC 95%) | P-valor |
---|---|---|---|
Profissão | |||
Demais profissionais | 1,0 | 0,043 | |
Enfermeiros | 1,40 | (1,01 – 1,95) | |
Tempo de trabalho na saúde | |||
>16 anos | 1,0 | ||
6 |--| 15 anos | 0,67 | (0,46 - 0,99) | 0,045 |
0 |--| 5 anos | 0,65 | (0,48 – 0,89) | 0,007 |
Participação de treinamento e capacitação | |||
Não | 1,0 | 0,028 | |
Sim | 1,47 | (1,04-2,08) | |
Leitura sobre a temática AT | |||
Não | 1,0 | 0,048 | |
Sim | 1,41 | (1,01-2,00) |
A participação dos profissionais entrevistados em treinamentos e capacitações sobre a temática dos AT aumentou em quase cinquenta por cento as chances de notificação desses agravos nas unidades sentinela estudadas. Além disso, outros fatores associados ao aumento das notificações dos acidentes de trabalho foram: a leitura sobre a temática dos AT; o conhecimento sobre Portarias e Legislações que dão suporte à notificação dos AT; a compreensão de que os AT são eventos de notificação compulsória; e as discussões sobre a temática no cotidiano de trabalho dos profissionais.
Desde 2012, a Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Ceará definiu no seu Plano Plurianual, a realização de capacitações na área de atenção integral e Vigilância em Saúde do Trabalhador para profissionais e gestores lotados nas unidades sentinela13. Além disso, ações prioritárias foram delineadas no âmbito do monitoramento dos registros dos agravos de notificação compulsória em saúde do trabalhador junto aos sistemas de informação do SUS13.
Apesar das capacitações relacionadas à saúde do trabalhador estarem contempladas no âmbito das políticas públicas no estado do Ceará, é possível que elas não tenham se efetivado de forma plena nos serviços. Nosso estudo sugeriu pouca capilaridade e alcance dos treinamentos junto aos profissionais participantes da pesquisa. Mais da metade dos entrevistados (56%) afirmou nunca ter participado de quaisquer treinamentos sobre os acidentes de trabalho. A maioria dos profissionais considera que não foi capacitado para identificar e notificar de forma correta os agravos relacionados à saúde do trabalhador, e que a estratégia de qualificação adotada não foi capaz de suprir a demanda por informações identificadas desde o tempo da graduação.
O pouco alcance das estratégias de educação continuada e capacitação profissional no âmbito da Saúde do Trabalhador pode se refletir na baixa qualidade das informações disponibilizadas nos sistemas de informações. Alguns estudos já demonstraram a inconsistência dos registros de acidentes e agravos relacionados ao trabalho no Brasil. Os dados mais amplamente utilizados, registrados pela Previdência Social, são parciais. Abrangem apenas a parcela dos trabalhadores segurados que correspondem a 1/3 da população economicamente ativa ocupada do país. Destaca-se ainda a falta de informações nas fichas de notificação, registros incompletos ou em branco, além do preenchimento incorreto de campos importantes, como a ocupação do paciente. Todos esses fatores contribuem para uma leitura equivocada da realidade epidemiológica, além de comprometerem a realização das ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador nos estados e municípios5,14-17.
Pouco mais de 1/3 dos entrevistados afirmaram já ter notificado casos de AT. Apesar disso, 25% dos profissionais sequer tinham conhecimento sobre a ficha do SINAN, que é o instrumento utilizado para realizar a notificação no âmbito do SUS. O desconhecimento por parte da população de estudo sobre a ficha de notificação de AT chama a atenção, sobretudo por se tratar de profissionais lotados em unidades sentinela. Esses dados reforçam a necessidade de uma atuação mais sistemática e consistente por parte dos CEREST’s Estadual e Regional, no sentido de efetivar o seu papel de suporte técnico e polo irradiador de conhecimento.
Nesse sentido, cabe a RENAST de modo geral, e aos CEREST em específico, um olhar mais atento para o efetivo cumprimento das suas funções de retaguarda técnica junto aos demais serviços de saúde, sobretudo os credenciados como unidades sentinela. Incentivos para a qualificação das notificações em unidades sentinela devem se refletir em atividades de capacitação dos seus profissionais. Promover a educação continuada em saúde do trabalhador é uma das estratégias que precisa ser efetivamente melhorada e ampliada no SUS. Essas ações contribuem para o reconhecimento e a sensibilização quanto à importância dos registros corretos dos acidentes de trabalho, auxiliando na investigação destes agravos e na melhoria das ações de Vigilância em Saúde do Trabalhador18.
Outro aspecto importante e que reflete diretamente na notificação dos AT é que mais de 83% dos profissionais entrevistados afirmaram desconhecer a Portaria que normatiza os acidentes de trabalho como eventos de notificação compulsória. Esses achados corroboram com outras pesquisas que demonstraram o conhecimento limitado dos profissionais em relação às políticas que dão suporte à notificação dos acidentes de trabalho16,17,19,20.
Nossos resultados sugerem a necessidade de atualização dos profissionais em relação às legislações, portarias e políticas que subsidiam as notificações dos acidentes de trabalho no Brasil. Nesse sentido, iniciativas educacionais devem ser implementadas, no sentido de superar essa lacuna. O Ministério da Saúde assume um papel fundamental na produção e disseminação desse conhecimento técnico. Uma das últimas iniciativas de impacto e abrangência nacional parece ter ocorrido em 2006, com a publicação do Protocolo de Complexidade Diferenciada que aborda a Notificação dos Acidentes de Trabalho Fatais, Graves e com Crianças e Adolescentes10.
Os profissionais com maior tempo de formação apresentaram menores conhecimentos específicos sobre os AT. Esse achado pode estar relacionado com a pouca abordagem dessa temática no âmbito dos cursos de graduação21,22. A saúde do trabalhador é uma área complexa, que necessita de uma visão aprofundada para o correto entendimento das relações entre o trabalho e o processo saúde-doença. A própria Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador já alerta para a necessidade de uma reestruturação da formação em saúde do trabalhador e em segurança do trabalho no âmbito dos cursos de graduação23.
Os profissionais com mais tempo de experiência profissional nos serviços de saúde apresentaram as maiores chances de realizar as notificações de AT. Esse aspecto sugere que a prática cotidiana em unidades sentinela contribui para sua sensibilização e busca por atualização de conhecimento técnico adequado24. Esse fato é corroborado quando 42% dos entrevistados afirmaram que a principal fonte de conhecimento sobre o tema foi adquirida no próprio ambiente profissional.
O cotidiano de trabalho e a experiência laboral contribuem para o aperfeiçoamento dos conhecimentos e habilidades técnicas. Contudo, não são suficientes para suprir a demanda por qualificação dos profissionais. Há uma necessidade de investimento na formação de recursos humanos que garanta o acesso a informações atualizadas e com qualidade na área da saúde do trabalhador25-27.
As notificações dos acidentes de trabalho são de fundamental importância para a realização de ações eficazes de Vigilância em Saúde do Trabalhador e fiscalização dos ambientes de trabalho. Nesse sentido, as Unidades Sentinela assumem um papel estratégico para a garantia da qualidade das informações, orientando os serviços de saúde sobre a realidade epidemiológica de cada território.
As ações de educação continuada contribuem para a sensibilização dos profissionais e melhoram a qualidade das notificações dos acidentes de trabalho. Contudo, menos da metade dos entrevistados participaram de pelo menos três cursos de capacitação/atualização, apontando uma oferta limitada para os trabalhadores da rede de serviços.
Dessa forma, é importante um aporte maior de recursos para a efetivação de políticas de educação continuada para a qualificação dos profissionais inseridos nas unidades sentinela. Os CEREST precisam envidar esforços no sentido de efetivar o seu papel de suporte técnico e polo irradiador de conhecimentos, fomentando e realizando atividades sistemáticas de atualização e capacitação para os profissionais da rede de saúde.