versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.9 no.1 São Paulo jan./mar. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/s1679-45082011ao1790
O vínculo mãe/filho tem sido considerado de fundamental importância para o desenvolvimento global da criança(1). É nos primeiros anos de vida que se formam os alicerces que sustentarão os pilares da personalidade e do caráter da criança(2).
Spitz(3) mostrava, por meio de observações práticas dos quadros clínicos de número estatisticamente significante de crianças, que atitudes maternas inadequadas e/ou insuficientes poderiam gerar, em seus filhos, desde coma do recém-nascido até marasmo e óbito, evidenciando os danos físicos e psíquicos graves oriundos da privação de elementos vitais à sobrevivência, ou seja, de afeto materno. Salientava a influência da depressão materna na etiologia de várias doenças físicas e emocionais do filho.
Klaus e Kennel(4) ressaltam que a ligação afetiva entre os pais e o bebê será a base para as futuras relações do filho e que estas serão influenciadas pela força e pela qualidade desse apego. Reconhecem em seu extenso trabalho de observação de pais/bebês alguns indicadores que podem tanto fortalecer como alterar, distorcer ou comprometer a formação e a qualidade do vínculo entre eles. Outros autores complementam que aspectos igualmente importantes devem ser levados em consideração, como o temperamento da criança, o “lugar afetivo” que lhe é dado na dinâmica familiar, o número de irmãos, a condição socioeconômica da família, a maturidade da mãe, entre outros(5–8).
É importante destacar, no Brasil, os trabalhos de Nóbrega et al.(9) no fortalecimento do vínculo mãe/filho. Nóbrega et al. dedicou-se, inicialmente, à criação do primeiro Ambulatório de Obesidade na Prática Pediátrica, no Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, em 1969 e, posteriormente, aos ambulatórios de desnutridos, baixa estatura, obesidade, aleitamento materno e nutrição clínica do extinto Núcleo de Nutrição, Alimentação e Desenvolvimento Infantil (NUNADI), da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo. Nessa ocasião foi criado por ele e sua equipe um instrumento próprio, sistemático, objetivo e de fácil visualização para que novos indicadores do comprometimento do vínculo mãe/filho – que vinham sendo observados pelos profissionais – pudessem ser identificados, agrupados e organizados. Constava de um total de 18 itens divididos em grupos referentes à história pregressa e atual da mãe (infância, modelos parentais, vida pessoal, profissional, conjugal, ambiente familiar e gestação), qualidade da relação mãe/bebê (nascimento, maternidade, amamentação e primeiras relações) e questões específicas do bebê (primeiros dias de vida, condições de saúde e características), sendo que, para facilitação da leitura e compreensão dos termos, todos os itens foram criteriosamente definidos também com intuito de que esse instrumento pudesse ser utilizado por outros profissionais, após treinamento, além de psicólogos.
Em 2000, com a implantação do Programa Einstein de Nutrição na Comunidade de Paraisópolis (PENC-P), em São Paulo, sob coordenação do professor Nóbrega – com objetivo de conhecer os fatores de risco para nutrição e intervir com equipe interdisciplinar em atendimento à dupla mãe/filho, o Protocolo de Avaliação do Vínculo Mãe/Filho foi atualizado, passando a contar com 16 itens. A partir de seu estudo estatístico e validação(10), passou a constar de 13 itens com seus respectivos subitens(11). Devido à sua grande utilidade e pelo fato de poder ser aplicado em Unidades Básicas de Saúde (UBS), hospitais, clínicas, creches, pré-escolas e ambulatórios, foi adotado e utilizado por outros autores em diversas pesquisas realizadas nas Universidades Federais de São Paulo (UNIFESP), de Minas Gerais (UFMG), do Rio de Janeiro (UFRJ), do Espírito Santo (UFES), de Santa Catarina (UFSC), e na Universidade de São Paulo (USP), bem como em outras que estão em andamento, inclusive no exterior.
É importante ressaltar que a aplicação desse instrumento em ambulatórios pediátricos é de fundamental importância, uma vez que sendo um serviço de atenção primária, visa promover a saúde tanto da mãe quanto do filho, permitindo detectar precocemente possíveis falhas no vínculo mãe/filho, o que pode levar a prejuízos importantes no desenvolvimento global da criança. Sendo assim, não há, na literatura, trabalhos científicos que contemplem a qualidade do vínculo mãe/filho, uma vez que esse instrumento foi criado a partir das experiências supracitadas.
Diante disso, esta pesquisa se propôs a conhecer em quais condições pode haver comprometimento do vínculo entre mãe e filho, preveni-lo e fortalecê-lo, uma vez que a qualidade do afeto entre a dupla pode desencadear, manter e/ou contribuir para diversos distúrbios nutricionais e afetivos, acarretando profundo comprometimento no desenvolvimento global da criança.
Verificar, nas mães, fatores como presença de depressão, condição econômica, idade, escolaridade, ocupação, condição marital, número de filhos, bem como condição nutricional da dupla, além de relacionar tais fatores com o vínculo mãe/filho.
Trata-se de estudo transversal, quantitativo, do qual participaram 120 mães de crianças menores de 10 anos.
As mães foram divididas em 4 grupos: 30 mães de crianças com excesso de peso de baixa condição econômica; 30 mães de crianças eutróficas de baixa condição econômica; 30 mães de crianças com excesso de peso de alta condição econômica e 30 mães de crianças eutróficas de alta condição econômica.
Do total de 120 mães da amostra, 60 fizeram parte do Grupo Controle, que foi dividido em 30 mães de crianças eutróficas de baixa condição econômica e 30 mães de crianças eutróficas de alta condição econômica. O Grupo Controle foi pareado por sexo, idade, escolaridade e condição econômica.
As mães com excesso de peso e eutróficas de baixa condição econômica foram entrevistadas pela pesquisadora do presente estudo no ambulatório do PEC-P, localizado no município de São Paulo(12). Ao lado desse ambulatório, funcionava o Programa Einstein de Nutrição na Comunidade de Paraisópolis (PENC-P), que atendia mães e filhos com risco nutricional encaminhados após identificação e captação feitas pelas agentes de saúde da própria comunidade por meio de visitas domiciliares, entre outros. Nesse local, aconteciam: atendimento multiprofissional especializado, orientação, tratamento e encaminhamento, quando necessário.
As primeiras das 30 mães eutróficas de alta condição econômica que fizeram parte do Grupo Controle foram captadas pela pesquisadora em uma escola de natação no bairro da Vila Nova Conceição, em São Paulo (SP) e as demais mães, por snow ball(13) – técnica de amostragem que consiste na indicação dos próprios sujeitos para captação de mais sujeitos e que inclui aqueles com rico potencial de informação. As entrevistas desses grupos foram realizadas na casa das mães. Do mesmo modo, foram captadas e entrevistadas as 30 mães com excesso de peso de alta condição econômica.
Os critérios de inclusão para mães de crianças portadoras de excesso de peso de baixa condição econômica foram: mães de crianças de até 10 anos, portadoras de excesso de peso, moradoras na comunidade de Paraisópolis e que não apresentassem doenças intercorrentes.
Os critérios de inclusão para mães de crianças eutróficas de baixa condição econômica foram: mães de crianças de até 10 anos, eutróficas, sadias, moradoras na comunidade de Paraisópolis, que não apresentassem doenças crônicas.
Os critérios de inclusão para mães de crianças portadoras de excesso de peso de alta condição econômica foram: mães moradoras em bairros nobres da cidade de São Paulo, que tivessem automóvel próprio, filhos de até 10 anos portadores de excesso de peso, estudassem em escola particular e não apresentassem doenças intercorrentes.
Os critérios de inclusão para mães de crianças eutróficas de alta condição econômica foram: mães moradoras em bairros nobres da cidade de São Paulo, que tivessem automóvel próprio, filhos de até 10 anos que fossem eutróficos, sadios, estudassem em escola particular e que não apresentassem doenças crônicas.
Os critérios de não inclusão para ambas as condições econômicas e nutricionais foram crianças com excesso de peso por causas endógenas, crianças eutróficas com doenças crônicas e mães que apresentassem transtornos mentais graves.
Os dados foram colhidos pela pesquisadora por meio de entrevistas realizadas no período de Março de 2004 a Julho de 2006. As entrevistas contemplavam a aplicação do Protocolo de Avaliação do Vínculo Mãe/Filho(11), do Inventário Beck de Depressão(14) e da classificação nutricional(15).
Os instrumentos utilizados para avaliação do vínculo mãe/filho(11) e da presença de depressão – Inventário Beck de Depressão(13) foram:
–. Protocolo de Avaliação do Vínculo Mãe/Filho(11): composto de 13 perguntas com respostas do tipo sim/não, sendo “sim” resposta positiva à presença de um atributo ou indicador de fraco vínculo. Somando-se as respostas “sim”, obtém-se um escore que pode variar de 1 a 13. A classificação positiva para fraco vínculo se dá com número de respostas positivas ≥ 5. O instrumento foi validado com objetivo de torná-lo fidedigno e útil a outros profissionais da área de saúde, além de psicólogos, que devem ser treinados para sua utilização;
–. Inventário Beck de Depressão(14): consiste em 21 itens, cuja intensidade varia de 0 a 3, referentes a sintomas e atitudes, como: tristeza, pessimismo, sensação de fracasso, falta de satisfação, sensação de culpa, sensação de punição, autodepreciação, autoacusações, ideias suicidas, crises de choro, irritabilidade, retração social, indecisão, distorção da imagem corporal, inibição para o trabalho, distúrbio de sono, fadiga, perda de apetite, perda de peso, preocupação somática e diminuição de libido. Pode ser autoaplicável, empregado individualmente ou em grupo. A soma total desses escores mostra o grau de intensidade da depressão. Recomenda-se que o termo “depressão” deve ser apenas utilizado para os indivíduos com escores acima de 20. Neste trabalho, foi utilizado esse ponto de corte.
Para aferição do peso de mães e crianças, utilizou-se balança digital marca Health O Meter® com capacidade de 150 kg e variação de 0,1 kg. Para medição da estatura, foi usada fita métrica de material não elástico, com extensão de 2 m, dividida em cm e subdividida em mm, com variação de 0,5 cm, fixada à parede lisa, sem rodapé. Mães e crianças foram avaliadas com os calcanhares unidos, descalças e vestindo roupas leves. Os valores coletados foram anotados na ficha de identificação de cada dupla. A classificação nutricional de todas as mães foi feita pelo cálculo do índice de massa corporal (IMC), dado por peso(kg)/altura(m2), tendo como pontos de corte os valores propostos pela World Health Organization (WHO)(15).
Como a diferença entre os pontos de corte foi pequena e não havia crianças com obesidade mórbida, optou-se por juntar as crianças com excesso de peso e obesidade em um único grupo, caracterizado, neste trabalho, como grupo de crianças com excesso de peso. O mesmo procedimento foi feito com as mães.
Os dados foram analisados quantitativamente por meio de técnicas de estatística e apresentados sob a forma de tabelas, considerando-se os critérios de interpretação dos resultados do teste.
Para análise dos resultados, foram aplicados testes do χ2 ou exato de Fisher(16), para detectar associações entre as variáveis estudadas; e teste de McNemar(16) para confrontar os grupos estudados em relação a variáveis quantitativas.
Fixou-se em 0,05 ou 5% o nível de rejeição da hipótese de nulidade, assinalando-se por um asterisco os valores significantes.
Todas as mães assinaram termo de consentimento esclarecido.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP e pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein (IIEPAE).
De acordo com a tabela 1, mães de crianças eutróficas de alta condição econômica apresentaram menos depressão que mães de crianças eutróficas de baixa condição econômica.
Tabela 1 Mães de crianças eutróficas e com excesso de peso de alta e baixa condição econômica segundo o resultado do Inventário Beck de Depressão
Crianças | Alta condição socioeconômica | Baixa condição socioeconômica | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
com | sem | Total | % com | com | sem | Total | % com | |
Eutróficas | 1 | 29 | 30 | 3,3 | 13 | 17 | 30 | 43,3 |
Excesso de peso | 3 | 27 | 30 | 10,0 | 8 | 22 | 30 | 26,7 |
Total | 4 | 56 | 60 | 6,7 | 21 | 39 | 60 | 35,0 |
Teste do Quiquadrado | |
Eutróficas X Excesso de peso | |
Alta | Low Baixa |
χ2 = 0.31 | χ2 = 1,83 |
(NS) | (NS) |
Alta X Baixa | |
Eutróficas | Excesso de peso |
χ2 = 13.41* (p<0.001) | χ2 = 2,78 |
alta < baixa | (NS) |
NS = não significativo |
Na tabela 2, observa-se que mães com 3 filhos ou mais apresentaram mais depressão que mães com menos de 3 filhos. Além disso, mães com menos de 30 anos apresentaram mais depressão do que aquelas com 30 anos ou mais (Tabela 3). De acordo com a tabela 4, todas as mães apresentaram maior comprometimento no vínculo do que presença de depressão.
Tabela 2 Estudo da associação de mães de crianças eutróficas e com excesso de peso de baixa e alta condição econômica segundo o número de filhos (< 3; ≥ 3) e o resultado do Inventário de Depressão de Beck
Número de filhos | Depressão | |||
---|---|---|---|---|
com | sem | Total | % com | |
< 3 | 8 | 65 | 73 | 11,0 |
≥ 3 | 17 | 30 | 47 | 36,2 |
Total | 25 | 95 | 120 | 47,2 |
Teste do Quiquadrado
χ2 = 11.019*
Tabela 3 Estudo da associação de mães de crianças eutróficas e com excesso de peso de baixa e alta condição econômica segundo a idade (< 30; ≥ 30 anos) e o resultado do Inventário de Depressão de Beck
Idade da mãe | Depressão | |||
---|---|---|---|---|
com | sem | Total | % com | |
< 30 | 12 | 10 | 22 | 54,5 |
≥ 30 | 13 | 85 | 98 | 13,2 |
Total | 25 | 95 | 120 | 67,7 |
Teste exato de Fischer
p=0.000094*
Tabela 4 Mães de crianças eutróficas e com excesso de peso de alta e baixa condição econômica, segundo o resultado (adequado ou comprometido) das avaliações do Protocolo de Avaliação do Vínculo Mãe/Filho e do Inventário Beck de depressão
Eutróficas de alta condição econômica | Eutróficas de baixa condição econômica | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Vínculo | Adequado | Comprometido | Total | Vínculo | Adequado | Comprometido | Total |
Adequado | 10 | 0 | 10 | Adequado | 8 | 0 | 8 |
Comprometido | 19 | 1 | 20 | Comprometido | 9 | 13 | 22 |
Total | 29 | 1 | 30 | Total | 17 | 13 | 30 |
Teste de Mc Nemar | Teste de Mc Nemar | ||||||
p = 0,0000 | p = 0,0019 | ||||||
% de concordância 11/30 = 36,7% | % de concordância 21/30= 70,0% | ||||||
% de discordância 19/30 = 63,3% | % ,de discordância 9/30 = 30,0% | ||||||
Mães com excesso de peso de alta condição econômica | Mães com excesso de peso de baixa condição econômica | ||||||
Vínculo | Adequado | Comprometido | Total | Vínculo | Adequado | Comprometido | Total |
Adequado | 8 | 0 | 8 | Adequado | 9 | 2 | 11 |
Comprometido | 19 | 3 | 22 | Comprometido | 13 | 6 | 19 |
Total | 27 | 3 | 30 | Total | 22 | 8 | 30 |
Teste de Mc Nemar | Teste de Mc Nemar | ||||||
p= 0,0000 | p= 0,0036 | ||||||
% de concordância 11/30 = 36,7% | % de concordância15/30= 50% | ||||||
% de discordância 19/30 = 63,3% | % de discordância 15/30= 50% |
Embora o vínculo se mostrasse comprometido em todas as mães da amostra, não houve resultado estatisticamente significante entre vínculo mãe/filho e as variáveis estudadas. Da mesma forma, não houve resultado estatisticamente significante entre presença de depressão e escolaridade, condição marital, ocupação e condição nutricional materna.
Neste trabalho não houve resultado significante entre presença de depressão e escolaridade, condição marital, ocupação e condição nutricional materna e nem entre o vínculo mãe/filho e as variáveis estudadas, embora ele se mostre bastante comprometido em toda a amostra.
Entretanto, ao se associarem as variáveis (presença de depressão nas mães de alta e baixa condição econômica e condição nutricional), verifica-se que aquelas com alta condição econômica apresentaram menos depressão do que as de baixa. Isso pode ser facilmente compreendido, pois se sabe que condição econômica precária pode ser fator de risco para o bem-estar das famílias, gerando sofrimento nas mães, além de interferir negativamente na estimulação verbal e cognitiva, oriunda da boa relação mãe/filho(5,10,16).
Todavia, a associação entre vínculo e condição econômica das mães não apresentou resultado significante, ou seja, a renda não foi determinante para um bom vínculo mãe/filho. O fato de a mãe ter melhores condições econômicas não determina a qualidade de suas relações. Boa condição financeira, entretanto, pode ajudar na provisão de necessidades básicas da família, o que pode gerar, na mãe, um sentimento de conforto físico e emocional. Além disso, dá condições a ela de ter melhor acesso à assistência médica, quando necessário. Adoecer sem ter condições de cuidar de si e dos filhos é um fator estressante, que pode levar à depressão. Pode-se supor, então, que a boa condição financeira permitiu às mães investirem em boa qualidade de vida, justificando o resultado encontrado(17).
Outro achado do presente estudo refere que mães com número de filhos maior ou igual 3 apresentaram mais depressão do que mães com menos de três filhos. Pode-se aventar a hipótese de que a depressão encontrada pode estar ligada ao estresse e à preocupação com a criação satisfatória dos filhos. Tal preocupação passa, necessariamente, pela condição financeira. Atualmente, independentemente da classe econômica, o número de mulheres que trabalham fora e garantem o sustento da família tem aumentado de forma expressiva. De um lado, as mulheres se sentem responsáveis pelo cuidado com a casa, os filhos e o marido e tentam, constantemente, conciliar suas atividades dentro e fora do lar(18). De outro lado, os companheiros nem sempre mostram reconhecimento pelo esforço da mulher, causando nela sentimento de desamparo, solidão e, possivelmente, depressão. Mães deprimidas demonstram menos afeto, brincam menos com os filhos, são mais hostis, insatisfeitas, adotam atitudes mais punitivas e controladoras com suas crianças, e podem se mostrar mais ensimesmadas e até insensíveis à saúde e segurança dos filhos(19). De fato, mães com comprometimento no vínculo com seu filho, falta de apoio do companheiro, estresse pela carga de trabalho, com três ou mais filhos a quem dar atenção, atender às necessidades físicas/psicológicas, e ainda ter que cuidar de si, da casa e do marido, provavelmente estarão menos disponíveis emocionalmente. O prazer que poderia haver nas relações afetivas, sobretudo com as crianças, transformado em obrigação devido ao acúmulo das tarefas, é um dos fatores que podem justificar o resultado encontrado; além disso, o fato de a maior parte das mães ter companheiro não basta, por si só, para que se sintam compreendidas, amadas e valorizadas(20,21).
Em contrapartida, mães com menos de três filhos (e menos deprimidas) podem ter encontrado mais tempo para se dedicar com prazer a eles e a si própria, o que favorece essa relação. Também podem ter encontrado mais espaço para cuidar da relação com o cônjuge e de sua própria vida emocional(19). Possivelmente, os pontos mencionados podem ser uma explicação para os resultados depreendidos.
Também encontraram-se, neste trabalho, mães com menos de 30 anos que apresentaram mais depressão do que mães com 30 anos ou mais. Uma das possíveis explicações pode ser o fato de não terem sido adequadamente estimuladas pelas próprias mães ou de não terem conseguido estabelecer um vínculo afetivo seguro, o que pode ter refletido de modo negativo em seu sentimento de segurança frente às dificuldades da vida. Sabendo-se que a depressão materna interfere no desenvolvimento infantil e pode surtir efeitos negativos, as mães com menos de 30 anos, possivelmente filhas de mães deprimidas, são mais suscetíveis a desordens afetivas, autoimagem negativa, além de se sentirem incompetentes como mães e, consequentemente, também avaliarem suas crianças de forma negativa(3,19–20). Em contraposição a essas mães, aquelas com 30 anos ou mais, apresentaram menos depressão. A maturidade trazida pela experiência de vida talvez as tenha feito se sentir mais eficazes. Entretanto, é possível que a gênese desse sentimento se encontre nas primeiras relações de afeto, quando sua autoconfiança e autonomia tiveram o investimento necessário para seu desenvolvimento saudável(4,20). São possibilidades que podem dar sentido aos resultados obtidos.
Em relação ao estudo do vínculo mãe/filho, não foi encontrado resultado significante entre as variáveis estudas, embora, como mencionado, ele se encontre bastante comprometido em todas as mães. Independentemente da condição econômica e nutricional, as mães apresentaram mais comprometimento no vínculo do que presença de depressão. Uma das hipóteses que pode ser proposta é em relação à vivência materna em sua infância, de situações de privação afetiva com a própria mãe, que interferiram em sua capacidade de exercer adequadamente as funções maternas. A qualidade dos afetos e comportamentos adotados pelos pais influencia, sobremaneira, os que serão adotados pelos filhos em suas relações atuais e futuras, e transmitidos de geração em geração(21). É provável, assim, que as mães desta amostra tenham tido problemas relacionais com suas mães, os quais comprometeram não só o vínculo entre elas, mas também com seus filhos, sendo esta uma das razões para tal achado.
Não é possível, contudo, deixar de discutir o fato de não ter sido encontrada, na análise estatística, associação entre vínculo comprometido e presença de depressão. A mãe que tem comprometimento no vínculo com o filho pode não ter tido, entre outros aspectos, modelos parentais positivos que lhe permitissem desenvolver um apego seguro em relação à criança. Talvez viva mais momentos de tensão e problemas com o filho do que momentos de prazer, o que pode refletir em outros fatores de sua vida, como na relação conjugal. Se se pensar que é nas relações familiares que se dá o significado das experiências emocionais, em que se pode pôr à prova a habilidade em exercer bem a função materna, e que é um lugar onde mais se evidenciam os sentimentos de realização e fracasso, tanto no homem quanto na mulher(22), então dificilmente essa mãe se mostrará insensível à falta de harmonia em seu lar, a menos que apresente depressão. Nessa condição, poderá privar a criança de seu afeto, comprometendo o bom vínculo entre a díade bem como o desenvolvimento infantil saudável(8–10,17- 23).
O fato de não ter sido encontrada associação entre vínculo comprometido e depressão talvez possa ser justificado por que muitas mulheres que não se enquadram nos critérios diagnósticos da depressão segundo o DSM-IV(24) podem apresentar sintomas que provocam incapacitação funcional comparável ou pior do que em quadros com cronicidade já estabelecida. Tais sintomas podem ser classificados como Transtornos Mentais Comuns (TMC)(25) e sua prevalência é maior em mulheres. Incluem insônia ou excesso de sono, irritabilidade, fadiga, agitação, dificuldade de memória e concentração, sentimentos de desvalia ou culpa e queixas somáticas. Mesmo apresentando esse quadro, não há procura pela assistência necessária e, quando ela ocorre, os pacientes podem ser subdiagnosticados pela variação na apresentação e intensidade dos sintomas. Muitas vezes são negligenciados pela própria mulher, marido ou familiares que atribuem os sintomas ao cansaço próprio do trabalho doméstico e com os filhos(26).
Nesse sentido, o resultado encontrado é compreensível. É provável que as mães dessa amostra, que apresentaram comprometimento no vínculo, tivessem apresentado também TMC. Talvez, se tivesse sido aplicado o Questionário de Autoinformação (Self-Reporting Questionnaire, SRQ)(27), instrumento de triagem de transtornos mentais que identifica distúrbios não psicóticos, teria sido possível associar positivamente TMC e comprometimento do vínculo. Não se acredita que isso traga limitações a este estudo, já que ele responde a questões fundamentais e levanta outras igualmente intrigantes que merecem e justificam contínua investigação científica.
Depreende-se dos resultados encontrados que a presença de depressão materna e o comprometimento do vínculo mãe/filho, ainda que em alguns casos não sejam incapacitantes para o cuidado com o infante, podem interferir de forma negativa no desenvolvimento social, cognitivo, físico e psicológico da criança, bem como em suas futuras relações afetivas.