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Violência conjugal: discursos de mulheres e homens envolvidos em processo criminal

Violência conjugal: discursos de mulheres e homens envolvidos em processo criminal

Autores:

Anderson Reis de Sousa,
Nadirlene Pereira Gomes,
Fernanda Matheus Estrela,
Gilvânia Patrícia do Nascimento Paixão,
Álvaro Pereira,
Telmara Menezes Couto

ARTIGO ORIGINAL

Escola Anna Nery

versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465

Esc. Anna Nery vol.22 no.1 Rio de Janeiro 2018 Epub 27-Nov-2017

http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0108

INTRODUÇÃO

Configurado como um problema de saúde pública, a violência conjugal tem caráter inter-relacional e o desafio de modificar essa realilidade perpassa também sobre o entendimento masculino sobre a construção social de gênero e sua desconstrução.

Com raízes nas desigualdades de gênero, a violência na conjugalidade ancora-se na naturalização do poder masculino sobre o feminino. Esta desigualdade, socialmente compartilhada, origina-se da construção de cultura e normas sociais que naturalizam a existência de padrões, valores, papéis e comportamentos atribuídos para ser adequado e esperado para homens e mulheres. Nesse contexto de reprodução social, ambos não necessariamente se reconhecem em uma relação assimétrica e permeada pela violência.1

É comum encontrar autoras(es) que defendem uma visão unilateral: mulheres, enquanto vítima e homens como agressores. Outras(os) estudiosas(os) da violência conjugal já veem despertando para o processo de interação e, assim, para o entendimento de que ambos os cônjuges podem ser coautores.2

Independentemente de quem são autores e vítimas é inegável as repercussões para a saúde física e mental de todos que vivenciam esse agravo. Estima-se que para tratamentos decorrentes dessa violência, somente para as mulheres, o Sistema Único de Saúde (SUS) gaste mais de cinco milhões de reais por ano no Brasil.3 Todavia, esse valor não representa o gasto real do setor saúde, visto que se trata apenas dos gastos com internações, que ocorrem quando há um agravamento físico que demande cuidados hospitalares. Somam-se os danos aos filhos que também vivenciam a violência de seus pais, com comprometimento de rendimento escolar e da convivência social, além da somatização do vivido, o que demanda por cuidados em diferentes níveis de atenção e, por conseguinte, maiores custos.4

No que tange os homens, não existem estudos que abordem sobre as repercussões da vivência de violência conjugal para a saúde masculina. Em todo o mundo, essa temática, em específico, não se constitui em prioridade das pesquisas, dado os altos índices de morbimortalidade sobre a população feminina, que acaba por ofuscar o fato de que os homens também podem estar adoecidos, visto que se encontram inseridos na mesma relação de conjugalidade.

Pesquisa que analisou qualitativamente 54 textos brasileiros que abordaram "homens" e "violência conjugal" chama atenção que, quando estes são incluídos em estudos, usualmente é na condição de agressor. Revelou ainda que os custos, quando discutidos, referem-se aos gastos com o setor jurídico-penitenciário e, não propriamente, com as implicações para sua saúde, seja relacionada à vivência de violência conjugal, seja em decorrência da experiência de prisão e/ou do processo. Assim sendo, podemos afirmar que o custo com a violência no país é subdimensionado, representando mais comumente os gastos com as mulheres.5

Apesar do foco feminino, ao analisamos a Lei Maria da Penha, a mais importante política pública brasileira a abordar a violência no âmbito doméstico, fica clara a importância de se instigar pesquisas e ações extensionistas que incluam os homens. Essa Lei, apesar de ser sancionada com o intuito principal de proteger a mulher, também prevê a necessidade de criação de centros de educação e reabilitação para os autores da violência.6 Entende-se, assim, que a inclusão do homem nesse processo é intrínseca para a mudança do cenário que permeia a violência conjugal.

Para tanto, estudos que se disponham a conhecer a percepção feminina e masculina sobre a vivência de violência conjugal são essenciais para que se possa compreender o agravo, bem como pensar estratégias que contribuam para a reeducação de gênero e a construção de relações mais respeitosas e saudáveis dentro da família.

Nesse contexto, adota-se como pergunta da pesquisa: Qual o discurso de mulheres e homens envolvidos em processo criminal, sobre a vivência de violência conjugal? Para responder tal questão, adota-se o seguinte objetivo: analisar o discurso de mulheres e homens em processo criminal sobre a vivência de violência conjugal.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa, que se origina de um projeto guarda-chuva intitulado 'Reeducação de homens e mulheres envolvidos em processo criminal: estratégia de enfrentamento da violência conjugal', financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). Tal projeto encontra-se aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, sob o parecer de número 877.905, e segue os critérios estabelecidos pelos COREQ para pesquisas qualitativas.

O lócus da pesquisa foi uma Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher, localizada na cidade de Salvador, Bahia. Participaram da pesquisa 12 homens que já se encontravam inseridos em um Grupo Reflexivo (GR), vinculado ao referido projeto guarda-chuva, cujos critérios de inclusão foram: ter sido preso preventivamente por violência conjugal, em período que variou de 15 a 30 dias; e estar em liberdade, respondendo a processo criminal.

Elucida-se que o referido GR emergiu da necessidade de colocar em prática o que preconiza a Lei n. 11.340/2006, em especial, seus artigos 35 e 36, por meio de encaminhamento para programas de educação e reabilitação pela Vara de Violência Doméstica e Familiar.

O contato com os homens se deu por meio de articulação com uma profissional assistente social, atuante na Vara de violência, que realizava contatos telefônicos com os possíveis participantes, informando-os sobre o GR, o local onde aconteceriam as atividades e a importância de sua participação. Os encontros foram desenvolvidos em um Centro Estadual de Educação, localizado próximo a Vara.

Foram realizados um total de nove encontros, que ocorreram entre os meses de abril a agosto de 2016, quinzenalmente, com duração média de duas horas cada. Coletivamente, eram desenvolvidas discussões reflexivas, com aplicação de técnicas projetivas, lúdicas e de atividades de dispersão com fins de problematizar, a partir da categoria analítica de Gênero, questões como família, conjugalidade, dominação masculina, posse, virilidade, força, violência e cuidado à saúde.

No terceiro encontro do grupo reflexivo, a proposta da pesquisa foi apresentada, bem como os seus objetivos, benefícios e riscos potenciais, direito de recusar a participação a qualquer momento e a garantia de que essa decisão não implicaria na saída do grupo, além de outros preceitos éticos da pesquisa com seres humanos preconizados pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Aceitando colaborar com o estudo, os homens assinavam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, quando se agendava dia e horário mais conveniente para a coleta de dados.

Como técnica de coleta de dados, realizou-se entrevista individual e análise documental, direcionada para a captação do discurso de homens e mulheres sobre a vivência de violência conjugal. As entrevistas tiveram duração média de uma hora, sendo gravadas, armazenadas e transcritas na íntegra. O discurso feminino, por sua vez, foi construído a partir das informações contidas nos autos do processo dos homens participantes, referentes aos depoimentos de suas companheiras.

Os dados coletados foram armazenados com o auxílio do software Qualitative Solutions Research NVIVO® 11,7 onde puderam ser organizados e codificados por áreas temáticas. Em seguida, a partir das ideias centrais, as expressões chaves foram organizadas para a criação de discursos-sínteses, que expressam representativamente os núcleos de sentido que emergiram, seguindo o pressuposto do método do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC).8

Ressalta-se que, nos autos do processo consta a representação das mulheres sobre a vivência de violência e que todo o material escrito pelo escrivão, durante o registro da ocorrência, é lido ao final, sendo necessário que a mulher assine, atestando a veracidade dos fatos. Nesse sentido, embora utilizadas técnicas de coleta de dados diferentes, ambas possibilitam que discursos sejam elaborados, mesmo porque o método do DSC não preconiza exclusivamente material verbal. Os homens foram identificados por meio de codinomes, especificados em H1 à H12, e as mulheres, em M1 à M12. Os achados foram embasados na categoria analítica de Gênero.

RESULTADOS

Os participantes caracterizaram-se por ser de maioria, negros, de faixa etária entre 25 e 62 anos, escolaridade fundamental, renda salarial em torno de 1 a 2 salários mínimos, com vínculos trabalhistas precários e ocupações diversas, como: vigilante, garçom, motorista, operador de caixa, auxiliar de produção, serviços gerais e autônomo. No que tange aspectos da conjugalidade, os relacionamentos variaram de quatro a 40 de convivência, a maioria em união estável e com filhos. Informações sociodemográficas das mulheres não foram encontradas nos registros do processo.

A partir da análise das entrevistas de homens, e dos relatos de mulheres descritos nos autos do processo criminal, foi possível construir discursos coletivos sobre a vivência de violência conjugal. Estes se encontram dispostos em duas categorias temáticas, a saber:

Ideia Central Síntese 1: O discurso de mulheres sobre a vivência de violência conjugal

O discurso das mulheres, extraídos dos autos do processo criminal, revela o entendimento masculino acerca da obrigação da mulher em realizar as tarefas domésticas e de que tal descumprimento, bem como o uso de álcool, predispõe a violência conjugal, expressa nas formas psicológica, moral, patrimonial, sexual e física. Traduz ainda o domínio masculino, capaz inclusive de anulá-la mesmo quando decide defender-se da agressão. Inserida nesse contexto, chama atenção para o "pedido de socorro", o qual não, necessariamente, advém da consciência do vivido e da necessidade de ruptura com o ciclo de violência, estando, muitas vezes, associada às questões clínicas decorrentes da agressão física. O discurso coletivo a seguir ilustra a clara percepção de vivência de violência conjugal pelas mulheres:

Nós convivíamos bem. Inicialmente, ele não era violento, mas passou a ter comportamentos descontrolados, sendo frequentes aos finais de semana quando ele bebia mais. Ao chegar tarde da noite em casa, exigia que eu levantasse para servir o jantar, e se eu demorasse ele dava murros na parede e gritava. Um dia, ele bebeu demais e, quando chegou em casa, passou a mão nas minhas pernas e disse que queria transar. Quando eu disse que não estava me sentindo bem, ele começou as agressões verbais, chegando a dizer que eu estava tendo caso com o sobrinho dele. Ainda quebrou o guarda-roupas, o computador e a porta da casa, sendo necessário que a minha filha interviesse. Certa vez fui surpreendida por ele me segurando pelo pescoço, com uma faca e afirmando que iria me matar. Ele me ameaçava e gritava, com xingamentos e difamações contra mim e meus filhos, chamando a atenção de todos. Me empurrou, me mordeu e me pegou forte pelo braço. Fiquei cheia de arranhões pelo corpo. Recebi uma paulada, com a vassoura, nas costas, na coxa da perna direita e um soco no rosto. Ao lutar para me defender, caí. Imobilizada por ele, fui arrastada da cozinha até um dos quartos. Consegui me soltar e fui para a rua com um corte na cabeça, pedindo socorro. Os vizinhos me socorreram e chamaram o SAMU* que me encaminhou para a UPA*. Ele foi autuado em flagrante, saiu de lá na viatura. (DSC, M1, M2, M3, M4, M5, M6, M7, M8, M9, M10, M11, M12). (*Serviço de Atendimento Móvel de Urgência; *Unidade de Pronto Atendimento).

Ideia central Síntese 2 - O discurso de homens sobre a vivência de violência conjugal

O estudo desvela um discurso de não reconhecimento, minimização e justificativa das condutas desrespeitosas. Soma-se ainda a negação da violência, por vezes, atrelada a acusação da inveracidade do fato e da intenção da mulher de implicá-lo criminalmente.

Foi só um bate-boca, discussão pequena, simplesmente isso: um desabafo! É natural um homem como eu, ativo (sexualmente), quase dois meses sem ter relações com a mulher. Eu estava com a cabeça quente porque brigamos. Xinguei ela, quebrei coisas dentro de casa e a peguei forte pelo braço, mas não entendi como uma agressão. Ela que me bateu primeiro com a vassoura e depois eu peguei só para me defender e bati de leve assim (fez gestos). Eu podia ter arrebentado ela toda com a vassoura, mas só dei nas pernas, não tenho vergonha de dizer. Nem sei como aconteceu, só sei que eu estava lavando a casa de noite, ela passou, tropeçou. Eu tentei pegar ela, e na hora ela se soltou e bateu a cabeça no chão. Não tive culpa! Só que as pessoas, no momento entenderam como se fosse uma violência (denúncia e prisão). Ela foi para o hospital. O médico perguntou o que foi isso, e ela no desespero disse que fui eu. Depois, ela se arranhou toda, correu para delegacia, fez a ocorrência e disse que tinha sido eu. Ainda disse que eu estava com uma faca, mas não tinha faca alguma. E disse que eu a ameacei, sendo que eu nunca fiz isso. Ela pode fazer uma armadilha, ligar para a polícia, só para prejudicar o homem. A justiça está pensando que eu bati, mas eu não bati. Eu não tenho coragem de matar nem uma mosca. Eu sou contra a violência. Estou pagando por uma coisa que não aconteceu. (DSC, H1, H2, H3, H4, H5, H6, H7, H8, H9, H10, H11, H12).

DISCUSSÃO

No que tange o discurso coletivo de mulheres, evidenciou-se a vivência do fenômeno, nas formas psicológica, moral, patrimonial, sexual e física. Revelou-se ainda a violência no âmbito doméstico, em especial, a que ocorre entre os cônjuges, enquanto fenômeno recorrente e progressivo, com início por meio de agressões verbais e cerceamento da liberdade da companheira, perpassando pela violência patrimonial e sexual até culminar em agressões físicas. Tais achados corroboram com estudos realizados no Nordeste e Sul do Brasil que despontaram para o caráter crônica e cíclico do agravo,9 com início sutil e, por vezes, mais veladas, através da violência psicológica e agressões verbais,10 perpassando pela violência patrimonial e atingindo a forma física.11

Vale salientar que, embora permita classificar os atos cometidos, a Lei Maria da Penha não se refere ao grau de gravidade das tipificações.6 No entanto, o discurso das mulheres sinaliza para a busca de ajuda quando na ocorrência de agressão física, sugerindo ser esta a forma de expressão mais grave para elas. Equívocos como este pode ser evidenciado em estudo que, ao analisar os boletins de ocorrências registrados em uma delegacia da mulher entre os anos 2005 e 2009, apontou o maior percentual de registros por agressão física.11 Percebe-se ainda em pesquisa realizada na Etiópia na qual, dentre as formas de expressão, não foram mencionadas a violência moral e patrimonial,12 sugerindo para o não entendimento acerca da gravidade desses tipos de violência ou mesmo sua invisibilidade.

Percebeu-se, pois, que não existe a conscientização da mulher (e também do homem) de que algumas ações cotidianas se configuram violência, o que a impede de se perceber, enquanto sujeito oprimido em uma relação assimétrica. Alguns aspectos que embasam essa realidade devem-se ao fato de que as mulheres justificam o comportamento dos homens, transferindo a responsabilidade do ato para a ingestão de álcool ou para elas mesmas, visto que se sentem culpadas da violência sofrida por não terem cumprido suas 'responsabilidades' na conjugalidade, a exemplo de servir o jantar e manter relações sexuais. Essas situações, corroboradas em estudos anteriores,13-15 sinalizam que até mesmo as mulheres compartilham da ideia de subserviência feminina ao cônjuge. Reproduzida socialmente, o poder dessa ideologia contribui para a naturalização de relações conjugal permeadas pela violência, nos permitindo entender o porquê de muitas mulheres, por anos, aceitarem, ou pelo menos, não questionarem as condutas desrespeitosas. Assim, permanecem como objeto da relação, e não sujeito de suas vidas.

O discurso feminino alerta-nos que mesmo quando buscam romper com esse padrão de não enfrentamento da violência conjugal, geralmente associado à tentativa de se defender das agressões físicas, a mulher continua anulada, agora vencida pelo domínio da força física masculina. Essa assimetria da força física acaba por comprometer a autodefesa da mulher.16-18 O discurso mostra ainda que, ao se perceber fisicamente acuada, a mulher grita por socorro, sugerindo ser esta uma situação considerada limite. Esse contexto favorece as situações de flagrante policial, ou a depender da intensidade das lesões corporais, requer encaminhamento aos serviços de saúde, conjunturas em que o registo da ocorrência da violência conjugal pode ser realizado. É o que confirma estudo sobre a prisão de homens por violência ao pontuar que, diante da perda da integridade física, as mulheres recorrem às unidades hospitalares e efetuam o registro da ocorrência.19 Outros estudos, realizados no Nordeste e Sul do Brasil, sustentam que a agressão física intensa e intolerável foi a situação que despontou o registro da ocorrência, inclusive pelo medo que houvesse evolução das agressões para a morte.15

Notou-se que, muitas vezes, as mulheres formalizam a denúncia na tentativa de fazer parar a agressão física, a partir de uma represália policial.20 Assim, é importante salientar que a denúncia ocorre não necessariamente pelo desejo de pôr fim à relação ou em resposta ao processo de conscientização de estar em uma relação conjugal permeada pela violência, o que nos leva a questionar acerca da invisibilidade feminina para as demais expressões da violência. Do mesmo modo, o homem não entende a denúncia e/ou a prisão, inclusive culpando a mulher pela situação, e sente-se injustiçado, visto que até então compartilhavam de que tais atos eram 'naturais'. Pesquisas em todo o mundo evidenciam a dificuldade masculina na aceitação da prisão por praticar violência contra sua companheira, pois àquela é a forma como o casal sempre conviveu e como ambos foram construídos socialmente.21,22

A invisibilidade da violência contra a mulher encontra-se arraigada na construção desigual de homens e mulheres, que desde crianças apreendem papéis e atributos considerados inerentes a cada sexo, cabendo ao homem ser o dominador da relação, forte, racional e chefe de família; enquanto a mulher, a dominada, frágil, emotiva e domesticada.18-21 Essas relações assimétricas colocam a mulher em uma posição de subserviência ao homem, de modo que ela acata desejos e imposições do cônjuge, se anulando enquanto sujeito para se submeter a vontade do outro.17,18

Estudo documental que analisou 902 ocorrências em uma Delegacia Especializada em Rio Grande do Sul, Brasil, revelou que atitudes patriarcais eram constantemente reatualizam o controle sobre as mulheres, e que a supremacia masculina geradora de sofrimento e submissão era constantemente naturalizada pelos homens.23

No panorama internacional, estudos realizados na África do Sul e Estados Unidos da América também alertam para o poder socialmente conferido aos homens em normatizar, controlar e disciplinar suas mulheres,21-24 tendo direito inclusive sobre a regulação e dominação dos seus corpos.16 Importante salientar que esses papéis são aprendidos, internalizados e reproduzidos por mulheres e homens como sendo o estereótipo ideal para uma relação conjugal14 o que favorece a naturalização da violência e, portanto, dificulta reconhecer-se nesta situação, seja na condição de vítima ou de algoz.

Essa ideologia ainda hegemônica nos possibilita entender o discurso masculino, ora de não reconhecimento de alguns atos violentos como tais, ora para minimização de outros. Chama atenção que algumas condutas masculinas, apesar de serem assumidas como violência, têm a culpa implicitamente transferida para a mulher, a exemplo do estupro conjugal, justificado pela falta do ato sexual, sendo este percebido enquanto obrigação da mulher-casada; e da violência física, espontaneamente explicada como uma forma de revidar, visto que fora agredido primeiro pela esposa. Estudos realizados no Sudeste e Sul do Brasil acordam sobre a tendência dos homens em responsabilizar as mulheres pelas agressões a elas dirigidas, pois, muitas vezes, eclodem por elas terem agido de maneira diferente ao esperado.13-15 Esses casos sugerem a dificuldade masculina de compreensão da violência de gênero.

Não podemos deixar de mencionar que, a todo o momento, os homens se sentem ameaçados, visto o caráter legal do processo, evento que pode estar contribuindo para o discurso de não responsabilização sobre o ato criminoso. Estudiosos acreditam que minimizar e negar os atos praticados é uma forma de defesa que os homens usam para reduzir as suas possíveis punições e pelo receio do processo e da prisão.13,25,26 Desse modo, em que pesem o entendimento dos atos violentos, os homens negam o ocorrido por receio de punição jurídica-policial.

Ainda, no discurso coletivo dos homens, emergiu o questionamento sobre a legitimidade do depoimento da mulher, situação que deve ser cuidadosamente analisada visto que, se por um lado pode representar uma estratégia para não responsabilização do crime cometido; por outro pode incorrer em crime de denunciação caluniosa, conforme previsto em artigo 339 do código penal brasileiro (BRASIL, 2000). Ambas situações encontram ressonância na literatura brasileira. Não é incomum homens acusados de violência conjugal defenderem-se sob alegação de que as denúncias são infundadas e desqualificando a companheira, na tentativa de construir uma imagem desta de inconsequente e débil.15 Também não são raros os casos em que mulheres fazem denúncias inverídicas, tendo inclusive que responder a processo judicial e indenizar o ofendido.27

Embora esteja claro em ambos os discursos coletivos uma relação conjugal permeada por conflitos e violência, muitas vezes, não existe uma real percepção do casal sobre esta vivência, visto a naturalização da desigualdade de gênero. Esta precisa ser desconstruída, inclusive para que crianças tenham uma educação diferenciada e possam construir relações mais simétricas e saudáveis quando adultas. Nesse contexto, pesquisadoras defendem a importância de capacitar profissionais atuantes em equipes de saúde da família para a prevenção da violência conjugal no ambiente comunitário e escolar.28

Estudo internacional sobre a eficácia das intervenções para a redução da violência aponta ser necessário o desenvolvimento de estratégias, a partir do trabalho com homens e com mulheres, capazes de mudar as normas sociais sobre as relações de gênero, promovendo a redução das diferenças e assimetrias existentes e transformação das masculinidades.26

Além desse trabalho, estudo série, que analisou o caso de cinco países, tais como África do Sul, Brasil, Espanha, índia e Líbano, chama a atenção para a diversidade de contextos e caminhos para o desenvolvimento de uma resposta eficaz do sistema de saúde para o enfrentamento da violência contra a mulher, e aponta para a necessidade de levantar esforços dos serviços de saúde na criação de protocolos, articulações multisetorial, criação de agências, redes de referência e proteção e investimentos de recursos econômicos e sociais, como forma de reduzir a desigualdade de gênero, promover resposta de cuidado eficaz em saúde, e garantir a efetivação dos objetivos do milênio.29

Tais iniciativas de enfrentar o fenômeno da violência no âmbito conjugal, são fundamentais para a redução dos agravos gerados às mulheres, homens, suas famílias e a sociedade, além de eliminar os descumprimentos de ordens judiciais, além das reincidências das ordens policias, pela mesma vítima, tal como evidenciou-se em estudo nacional que analisou 902 registros de ocorrências no Rio Grande do Sul, Brasil.23

Ressalta-se ainda, neste estudo, a importância da inclusão de estratégias para reduzir, eliminar e responder à violência contra as mulheres na agenda pós-2015, de forma consistente com os compromissos de cada país para a garantia de direitos humanos e melhoria da saúde pública.

CONCLUSÃO

Os discursos feminino e masculino sinalizaram para uma vivência recíproca de violência conjugal que, embora se manifeste nas mais variadas formas de expressão, muitas vezes, não é reconhecida pelo casal. Enquanto a mulher, por vezes, transfere a responsabilidade do ato para a ingestão de álcool ou para elas mesmas, o homem minimiza o ocorrido, questionando ainda a legitimidade do depoimento dado pela companheira.

Tendo em vista que a violência conjugal se fundamenta na construção social que dita diferentes papéis para homens e mulheres, esses achados mostram a importância da criação de espaços para reeducação de mulheres e homens na perspectiva de gênero. Busca-se com esses espaços, o empoderamento de mulheres de modo que estas se reconheçam em situação de violência antes que o agravo cause repercussões mais graves, inclusive com risco para suas vidas. Ainda a conscientização e responsabilização de homens, sobretudo no sentido de favorecer autorreflexão, transformação e desconstrução do modelo de masculinidade vigente.

Os cenários da saúde e da educação são essenciais para promoção de tais ações, principalmente, a partir da articulação com o jurídico. Nesse contexto, faz-se necessário melhor preparo dos profissionais que atuam nessas áreas para o entendimento acerca da complexidade e magnitude do fenômeno. É preciso uma gestão que priorize espaços reeducação de gênero com interface com as diretrizes das políticas nacionais de saúde da mulher e do homem.

No aspecto preventivo, considerando que a violência conjugal se dá no âmbito da casa, necessário ainda identificação precoce de crianças e adolescentes expostos a essa situação, sendo essencial a articulação com os espaços escolares. Urge a sensibilização das(os) educadoras(es) para a gravidade do fenômeno, preparo para identificação e encaminhamentos, inclusive em parceria com o Conselho Tutelar. Devido ao caráter transgeracional da violência doméstica, as escolas são panoramas privilegiados para romper com esse ciclo, devendo incitar ações que promovam a interação mais simétricas entre meninas e meninos, pautadas no respeito mútuo, que permitam desconstruir o modelo apreendido.

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