versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X
Cad. saúde colet. vol.27 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2019 Epub 14-Nov-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201900040302x
Violence against women is a violation of human rights and a public health problem.
To analyze surveillance reports of violence against women (aged 10 years or more), living in Niterói, RJ, from 2010 to 2014.
Descriptive study based on case series was carried out. Case reports and population estimates were provided, respectively, by the National Surveillance Information System (SINAN) and the Brazilian Ministry of Health (DATASUS). Incidence rates and proportions were calculated according to violence related characteristics.
There were 307 reported cases of violence with incidence rate 26.2 per 100 thousand in the period studied decreased with age. Data incompleteness ranged from zero to 65%. Physical violence (n=186) was the most frequent type, followed by psychological (n=121), sexual (n=96) and negligence (n=64). Adolescents were the main victim of sexual violence (56.3%). Husband, ex-husband, boyfriend or ex-boyfriend were perpetrators in 42.6% of physical assaults, denoting the occurrence of violence between intimate partners. Mother was considered as the perpetrator in 50.7% of negligence cases, reflecting lack of sharing and female burden related to raising children alone.
Interpersonal/self-induced violence surveillance allow individual interventions and provide data for policy development towards prevention of violence against women.
Keywords: violence; violence against women; health information systems; public health surveillance; gender and health
A violência é um fenômeno social e histórico, com manifestações variadas nas diferentes culturas. A partir do final do século XX, a violência intrafamiliar e, em especial, a violência contra a mulher ganharam maior visibilidade, incrementando os estudos sobre o tema no Brasil e no mundo1,2.
Estudo multicêntrico em 10 países, incluindo o Brasil, entre 2000-2003, mostrou que mulheres de 15 a 49 anos, em ampla variedade de contextos culturais e geográficos, estavam sob maior risco de sofrer violência por parceiro íntimo do que por qualquer outro possível agressor3-5.
No Brasil, “[...] entende-se por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, inclusive decorrente de discriminação ou desigualdade étnica, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público quanto no privado” (Lei nº 10.778/2003, art.1º, parág. 1º)6:1.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006)7,8 define a violência doméstica e familiar contra a mulher a partir das relações estabelecidas no âmbito da unidade doméstica, da família e das relações íntimas de afeto, independente de coabitação e orientação sexual, e, entre outras formas, tipifica-a como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
As causas da violência contra a mulher são: a cultura patriarcal; o estabelecimento de relações hierárquicas de poder dos homens sobre as mulheres na sociedade; a imposição de papéis sociais diferenciados para homens e mulheres, tomando o sexo biológico como referência para fazer essa distinção; a baixa escolaridade e renda; o uso abusivo de álcool e drogas por parte dos agressores; e, por fim, a naturalização/legitimação da violência por meio do silêncio por parte de muitas mulheres, de seus familiares e amigos, da sociedade e das autoridades governamentais9,10.
Assim, a violência contra a mulher constitui uma violação dos direitos humanos, um grave problema social e de saúde pública, que causa morte e incapacidade, abala sua autonomia, destrói sua autoestima e diminui sua qualidade de vida, trazendo consequências à estruturação pessoal, familiar e social7, além de provocar repercussões intergeracionais3,9,11.
Em 2006, o Ministério da Saúde (MS) criou o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA), com objetivo de reduzir a morbimortalidade por tais agravos12,13. Para isso, concebeu a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências Interpessoais (FNV), em que profissionais de saúde notificam situações de violência suspeitas ou confirmadas, sendo incorporada ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) em 200912-14.
Em 2011, a notificação da violência doméstica, sexual e/ou outras violências interpessoais se tornou universal13,15, e, em 2014, a violência sexual e as tentativas de suicídio se tornaram eventos de notificação imediata na esfera municipal (por telefone, em até 24 horas)16. Em seguida, concomitante à atualização do SINAN para versão 5.0, o MS alterou a FNV, mudando a denominação do agravo para Violência Interpessoal/Autoprovocada, e tornou a ficha intersetorial ao criar um campo para notificação por outras fontes notificadoras, além das unidades de saúde. Atualmente, está em uso a versão da FNV de 15/06/2015.
Este artigo apresenta a análise das notificações de violência contra mulheres com 10 anos de idade ou mais, residentes em Niterói/RJ, no período 2010-2014. O pressuposto é que a análise e a divulgação das informações oriundas das notificações de violência ocorridas nesse município trarão visibilidade à situação de violência contra a mulher em Niterói, sensibilizando profissionais de saúde e contribuindo para a qualificação da vigilância às violências. Espera-se que tais informações promovam reflexões sobre estratégias preventivas, de assistência e acompanhamento das mulheres sob risco de violência interpessoal.
Trata-se de um estudo descritivo de uma série de notificações de episódios de violência contra mulheres de 10 anos ou mais de idade com classificação final confirmada ou provável, residentes em Niterói, no período compreendido entre 01/01/2010 e 31/12/2014.
Resulta de trabalho realizado com a Coordenação de Vigilância em Saúde da Fundação Municipal de Saúde de Niterói (COVIG/FMSN), no âmbito do curso de Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva e do estudo “Avaliação e monitoramento da vigilância contínua de violências em municípios do estado do Rio de Janeiro”, com apoio financeiro do CNPQ (Edital Universal/2012), ambos desenvolvidos pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ)17. A escolha do período de análise, de 2010 a 2014, foi por causa da implantação, em 2010, do componente contínuo do VIVA na rede pública de atenção à saúde localizada no município; assim, a notificação dos episódios de violência passou a incluir vítimas de todas as idades atendidas na rede pública de saúde desde então. O ano de 2014 correspondeu ao último ano com informações disponíveis no momento da coleta de dados.
A construção e a análise dos indicadores se pautaram em documento do Ministério da Saúde18. As informações apresentadas se referem às variáveis da FNV versão SVS-10/07/2008. Já os dados foram obtidos do SinanNet19 na COVIG/FMSN20.
A exportação da base de dados do módulo de violência do SINAN/COVIG/FMSN foi realizada no dia 19/02/2015. Foram identificadas 1.424 notificações de violência doméstica, sexual e/ou outras violências, das quais 563 eram registros de violência contra mulheres com 10 anos ou mais. Desse total, 68,2% eram de residentes em Niterói (n = 384). Foram excluídas da análise 37 notificações classificadas como ignorado/branco, inconclusivo e descartado, resultando em uma população de estudo composta de 307 notificações classificadas como confirmada ou provável (Figura 1).
Figura 1 Fluxograma da população de estudo. Fonte: Sinan Net - Sistema de Informação de Agravos de Notificação (COVIG/FMSN: Coordenação de Vigilância em Saúde/Fundação Municipal de Saúde de Niterói/RJ, 2010-2014)19,20
Foram analisadas as seguintes variáveis com base nos campos FNV: unidade de saúde/fonte notificadora; município de ocorrência; local de ocorrência; idade; raça/cor; escolaridade; situação conjugal/estado civil; gravidez confirmada; recorrência; evolução do caso; tipo de violência; vínculo/grau de parentesco do provável autor14. Idade foi analisada por faixa etária e pela classificação de ciclo da vida (adolescentes: 10-19 anos; adultas: 20-64 anos; e idosas: 65 anos ou mais)18,21,22.
As análises foram realizadas para o quinquênio. Foram calculadas as taxas de incidência de episódios de violência por 100 mil mulheres com 10 anos ou mais, total e por faixa etária, e calculados os respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As estimativas populacionais anuais por município, sexo e idade foram obtidas na página do TABNET do Ministério da Saúde, realizadas pela RIPSA, exceto no ano de 2014, em que foram elaboradas pelo Ministério da Saúde/SVS/CGIAE23.
Foi analisada a completitude, percentual de campos da ficha de notificação que não foram preenchidos ou ignorados, importante para a avaliação da qualidade do preenchimento do instrumento e da fidedignidade das informações produzidas. Foram descritas as distribuições absoluta e relativa (%) dos episódios de violência.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (CAAE: 36887914.6.0000.5286).
No quinquênio, foram notificados 307 episódios confirmados ou prováveis de violência contra mulheres, representando um risco médio de 26,2 por 100 mil (IC95%: 23,4-29,2). A taxa de incidência de violência por 100 mil apresentou um gradiente decrescente com a idade. O risco de sofrer violência para as adolescentes foi 23 vezes superior ao das idosas (Figura 2).
Figura 2 Taxa de incidência de eventos de violência e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) segundo faixa etária, Niterói/RJ, 2010-2014. Fonte: Fundação Municipal de Niterói e Ministério da Saúde (DATASUS)19,23
Na Tabela 1, são apresentadas as características da população de estudo. Somente tipo de unidade notificadora e idade apresentaram 100% de completitude. As demais características tiveram valores superiores a 10% de informações ignoradas ou em branco, podendo comprometer a descrição do perfil epidemiológico dos casos de violência.
Tabela 1 Episódios notificados de violência doméstica, sexual e/ou outras violências contra mulheres de 10 anos ou mais, residentes em Niterói/RJ, segundo variáveis selecionadas, de 2010 a 2014
Variáveis | Frequência | Percentual (%) |
---|---|---|
Tipo de unidade notificadora | ||
Posto de saúde | 26 | 8,5 |
Centro de saúde/unidade básica | 7 | 2,3 |
Policlínica | 37 | 12,1 |
Hospital geral | 170 | 55,4 |
Hospital especializado | 24 | 7,8 |
Pronto-socorro geral | 15 | 4,9 |
Unidade de apoio à diagnose e terapia | 1 | 0,3 |
Pronto atendimento | 27 | 8,8 |
Município de ocorrência (RJ) | ||
Araruama | 1 | 0,3 |
Belford Roxo | 1 | 0,3 |
Itaboraí | 3 | 1,0 |
Maricá | 1 | 0,3 |
Niterói | 263 | 85,7 |
Rio de Janeiro | 2 | 0,7 |
São Gonçalo | 5 | 1,6 |
Ignorado/em branco | 31 | 10,1 |
Local de ocorrência | ||
Residência | 149 | 48,5 |
Habitação coletiva | 3 | 1,0 |
Escola | 2 | 0,7 |
Local de prática esportiva | 1 | 0,3 |
Bar ou similar | 11 | 3,6 |
Via pública | 63 | 20,5 |
Comércio/serviços | 1 | 0,3 |
Indústrias/construção | 1 | 0,3 |
Outros | 45 | 14,7 |
Ignorado/em branco | 31 | 10,1 |
Faixa etária | ||
10-14 | 82 | 26,7 |
15-19 | 90 | 29,3 |
20-34 | 70 | 22,8 |
35-49 | 43 | 14,0 |
50-64 | 13 | 4,2 |
65 ou mais | 9 | 3,0 |
Raça/cor | ||
Branca | 74 | 24,1 |
Preta | 58 | 18,9 |
Amarela | 1 | 0,3 |
Parda | 90 | 29,3 |
Ignorado/em branco | 84 | 27,4 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 2 | 0,6 |
1ª a 4ª série incompleta do EF | 18 | 5,9 |
4ª série completa do EF | 7 | 2,3 |
5ª a 8ª série incompleta do EF | 35 | 11,4 |
Ensino fundamental completo | 12 | 3,9 |
Ensino médio incompleto | 19 | 6,2 |
Ensino médio completo | 21 | 6,8 |
Educação superior incompleta | 5 | 1,6 |
Educação superior completa | 7 | 2,3 |
Ignorado/em branco | 181 | 58,9 |
Situação conjugal | ||
Solteiro | 161 | 52,4 |
Casado/união consensual | 56 | 18,2 |
Viúvo | 9 | 2,9 |
Separado | 11 | 3,6 |
Não se aplica | 15 | 4,9 |
Ignorado/em branco | 55 | 17,9 |
Gestante | ||
Sim | 31 | 10,1 |
Não | 108 | 35,2 |
Não se aplica | 69 | 22,5 |
Ignorado/em branco | 99 | 32,2 |
Recorrência | ||
Sim | 93 | 30,3 |
Não | 116 | 37,8 |
Ignorado/em branco | 98 | 31,9 |
Evolução do caso | ||
Alta | 87 | 28,3 |
Evasão/fuga | 15 | 4,9 |
Óbito por violência | 3 | 1,0 |
Óbito por outras causas | 2 | 0,7 |
Ignorado/em branco | 200 | 65,1 |
Total | 307 | 100,0 |
A notificação foi realizada pelos hospitais e pronto atendimentos em 76,9% (n = 236) dos casos e apenas em 10,8% (n = 33) por unidades de atenção primária à saúde.
A residência da vítima foi o local de ocorrência em 48,5% dos episódios, seguida da via pública, com 20,5%.
Notificações de violência contra adolescentes representaram 56% dos casos, e contra idosas (65 ou mais anos), em torno de 3%.
Predominaram mulheres pardas, com 29,3%, seguidas de brancas, com 24,1%; contudo, 27,4% das notificações não tinham informação sobre raça/cor.
Não houve diferença expressiva na frequência de casos com escolaridade até o ensino fundamental incompleto (20,2%) e ensino fundamental completo, médio e superior (20,8%); entretanto, em mais da metade dos casos essa informação era ignorada (58,9%).
Em relação à situação conjugal, 52,4% das mulheres que sofreram violência eram solteiras e aproximadamente 18% das notificações não traziam essa informação.
A situação obstétrica da mulher foi informada em 45,3% (n = 139) das notificações, e 10,1% (n = 31) estavam grávidas no momento da agressão.
A violência se mostrou recorrente em 30,3% dos episódios notificados (variável ignorada/em branco em 31,9%). Foram registrados três óbitos por violência (duas adultas que se suicidaram, uma por queda de altura e outra por envenenamento, e uma vítima adolescente que foi alvejada por projétil de arma de fogo durante tiroteio em comunidade); contudo, a proporção de ignorados para a variável evolução do caso abrangeu 65,1% (n = 200) das notificações.
Na Tabela 2, são apresentadas as distribuições dos casos por ciclo da vida (faixa etária) e raça/cor para cada tipo de violência. Predominaram mulheres de 20-64 anos para todos os tipos de violência, exceto violência sexual e negligência, com prevalência de adolescentes (10-19 anos). Idosas representaram a menor frequência de casos, independentemente do tipo de violência, e ocuparam o segundo posto de maior frequência para negligência. Apenas para tortura predominaram mulheres brancas, enquanto para os demais tipos de violência a raça/cor parda foi a mais frequente (Tabela 2).
Tabela 2 Tipos de violência notificada contra mulheres de 10 anos ou mais, residentes em Niterói/RJ, segundo ciclo da vida e raça/cor, de 2010 a 2014
Variáveis | Física N (%) |
Psicológica/mora N (%) |
Tortura N (%) |
Sexual N (%) |
Negligência N (%) |
---|---|---|---|---|---|
Ciclo da vida | |||||
Adolescentes (10-19 anos) | 81 (43,5) | 55(45,5) | 10 (45,5) | 54 (56,3) | 58 (90,6) |
Adultas (20-64 anos) | 102 (54,8) | 64 (52,9) | 12 (54,5) | 40 (41,7) | 2 (3,1) |
Idosas (65 anos ou mais) | 3 (1,6) | 2 (1,7) | 0 (0,0) | 2 (2,1) | 4 (6,2) |
Total | 186 (100,0) | 121 (100,0) | 22 (100,0) | 96 (100,0) | 64 (100,0) |
Raça/cor | |||||
Branca | 58 (37,9) | 41 (41,0) | 12 (63,2) | 25 (33,3) | 5 (16,1) |
Preta | 38 (24,8) | 14 (14,0) | 3 (15,8) | 16 (21,3) | 12 (38,7) |
Amarela | 1 (0,7) | 1 (1,0) | 0 (0,0) | 0 (0,0) | 0 (0,0) |
Parda | 56 (36,6) | 44 (44,0) | 4 (21,1) | 34 (45,3) | 14 (45,2) |
Total | 153 (100,0) | 100 (100,0) | 19 (100,0) | 75 (100,0) | 31 (100,0) |
Fonte: SINAN/COVIG/FMSN (19/02/2015)19,20;
Nota: as violências financeira, trabalho infantil e outra não foram apresentadas na tabela, pois juntas contribuíram com apenas 13 episódios segundo ciclo da vida e 8 episódios segundo raça/cor. A expressão N (%) se refere a frequência absoluta e percentual dos tipos de violência segundo as variáveis selecionadas
Com relação ao vínculo/grau de parentesco do provável autor da agressão, cônjuge, ex-cônjuge, namorado(a) ou ex-namorado(a) foram responsáveis por 42,6% dos episódios de violência física (n = 176), por 6,5% das violências sexuais (n = 92), por 25% das notificações de tortura (n = 20) e por 32,8% das violências psicológicas/moral (n = 125). Além disso, o cônjuge foi o autor em dois episódios de violência financeira (n = 5). As agressões perpetradas por esses autores são indicativas de violência por parceiros íntimos (Tabela 3).
Tabela 3 Tipos de violência notificada contra mulheres de 10 anos ou mais, residentes em Niterói/RJ, segundo vínculo/grau de parentesco do provável autor da agressão, 2010 a 2014
Vínculo/grau de parentesco do agressor | Física N (%) |
Sexual N (%) |
Tortura N (%) |
Psicológica/ moral N (%) |
Negligência N (%) |
---|---|---|---|---|---|
Pai | 5 (2,8) | 3 (3,3) | 0 (0,0) | 3 (2,4) | 14 (18,7) |
Mãe | 12 (6,8) | 1 (1,1) | 0 (0,0) | 9 (7,2) | 38 (50,7) |
Padrasto | 5 (2,8) | 4 (4,3) | 0 (0,0) | 7 (5,6) | 2 (2,7) |
Cônjuge | 41 (23,3) | 1 (1,1) | 2 (10,0) | 23 (18,4) | 0 (0,0) |
Ex-cônjuge | 16 (9,1) | 1 (1,1) | 2 (10,0) | 7 (5,6) | 1 (1,3) |
Namorado(a) | 10 (5,7) | 2 (2,2) | 1 (5,0) | 7 (5,6) | 3 (4,0) |
Ex-Namorado(a) | 8 (4,5) | 2 (2,2) | 0 (0,0) | 4 (3,2) | 0 (0,0) |
Filho(a) | 1 (0,6) | 0 (0,0) | 0 (0,0) | 2 (1,6) | 4 (5,3) |
Irmão(a) | 7 (4,0) | 1 (1,1) | 0 (0,0) | 2 (1,6) | 0 (0,0) |
Amigos/conhecidos | 12 (6,8) | 14 (15,2) | 1 (5,0) | 12 (19,6) | 2 (2,7) |
Desconhecido(a) | 40 (22,7) | 54 (58,7) | 14 (70,0) | 36 (28,8) | 2 (2,7) |
Outros vínculos* | 15 (8,5) | 8 (8,7) | 0 (0,0) | 9 (7,9) | 8 (10,7) |
Total | 176 (100,0) | 92 (100,0) | 20 (100,0) | 125 (100,0) | 75 (100,0) |
Fonte: SINAN/COVIG/FMSN (19/02/2015)19,20;
*outros vínculos: tia/tio, vizinhos, primo/prima, bandido, pai do filho, genro/nora, atual mulher do ex-marido, ex-mulher do atual marido, avós, sobrinhos (informações retiradas da base SINANNET19 de onde foram extraídos os dados para este trabalho);
Nota: as violências financeira, trabalho infantil e outra não foram apresentadas na tabela, pois juntas contribuíram com apenas 13 episódios. Os perpetradores madrasta, cuidador e pessoa com relação institucional também não foram apresentados na tabela, pois juntos contribuíram com 10 episódios. A expressão N (%) se refere à frequência absoluta e percentual dos tipos de violência segundo as variáveis selecionadas
As notificações de violência em Niterói evidenciam o processo de consolidação do VIVA, mas estão ainda aquém do esperado13. As 307 notificações de violência contra mulheres no quinquênio representaram um risco médio de 26,2/100 mil mulheres, refletindo apenas uma parcela dos episódios de violência, ou seja, aqueles provenientes da esfera terciária, responsável majoritariamente por situações de maior gravidade do ponto de vista da assistência médica, necessitando de cuidado imediato.
Hospitais e serviços de urgência e emergência são as principais fontes de notificação de violência contra a mulher, enquanto nas unidades de atenção primária à saúde (APS) é maior a subnotificação17,24-26. Garcia et al.25 apontaram que as emergências comumente constituem a porta de entrada dos casos de violência e, muitas vezes, o único contato com o sistema de saúde. Porém, Kind et al.26 mostraram que a violência contra a mulher faz parte do cotidiano na APS e que a subnotificação não significa desconhecimento dos profissionais de saúde quanto à ocorrência das situações, mas reflete “[...] temores, receios, incompreensões e atravessamentos de toda ordem que os interpelam quando confrontados com as violências contra mulheres [...]”26:1812. Nesse sentido, o sentimento de impotência e as dificuldades de atuação multiprofissional e intersetorial contribuem para a (in)visibilidade da violência contra a mulher na APS e devem ser considerados no seu enfrentamento26,27. O predomínio de notificações na esfera hospitalar também reforça a importância do fluxo de retorno da informação para os profissionais de saúde da rede, a fim de sensibilizá-los a notificar as situações de violência identificadas.
Os Sistemas de Informação em Saúde (SIS) permitem o monitoramento da situação de saúde28, e, no Brasil, as bases de dados secundárias de abrangência nacional são cada vez mais utilizadas em estudos e pesquisas29. A qualidade dos dados é um atributo importante a ser avaliado, pois uma base de dados de boa qualidade deve ser completa, fidedigna, sem duplicidades e com campos totalmente preenchidos e consistentes30,31.
Romero e Cunha32 avaliaram a qualidade do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos com relação à incompletitude das informações e classificaram como excelente (< 5%), bom (5-10%), regular (10-20%), ruim (20-50%) e muito ruim (≥ 50%). Considerando esse mesmo critério para analisar a qualidade do preenchimento das notificações de violência contra mulheres residentes em Niterói, evolução do caso e escolaridade tiveram qualidade muito ruim; gestante, recorrência e raça/cor, ruim; e situação conjugal/estado civil, regular.
Delziovo et al.33 avaliaram a qualidade dos dados SINAN VIVA em Santa Catarina, de 2008 a 2013, encontrando boa completitude (proporção média de preenchimento das variáveis de 93,3%), aceitável duplicidade e excelente consistência.
Santos et al.34 analisaram as notificações de violência contra adolescentes em Pernambuco, de 2009 a 2012, segundo os critérios de Romero e Cunha32, tendo encontrado dados de qualidade ruim e muito ruim. Os autores mencionaram a fragilidade na qualidade dos dados nos SIS, em especial com relação à completitude das informações, e a importância dessa avaliação no SINAN VIVA.
Girianelli et al.31 investigaram a coerência entre os campos da FNV nas notificações do Estado do Rio de Janeiro entre 2009 e 2016, identificando alta proporção de incongruências. Os autores recomendaram procedimentos de programação que poderiam reduzir substancialmente a maioria das incongruências.
O número elevado de campos em branco ou ignorados restringe análises fidedignas. Todavia, a produção e a divulgação sistemática de informações decorrentes da análise de dados secundários constituem uma ferramenta para o aprimoramento dos SIS, contribuindo para a percepção do significado e da utilidade dos registros efetuados35, sensibilizando os profissionais de saúde para o bom preenchimento da FNV, com fidedignidade das informações.
Os 307 casos de violência contra mulheres residentes em Niterói analisados neste estudo apresentaram perfil similar ao encontrado em outras pesquisas, como maior frequência de violência entre as mais jovens, sem companheiro, na residência, com predomínio de violência física, psicológica/moral e sexual, além de registros de negligência entre adolescentes e idosas2,24,25,34,36-42.
Com relação à raça/cor, no VIVA inquérito 2014, 70% das mulheres que sofreram violência por parceiro íntimo eram negras40. Na Pesquisa Nacional de Saúde em 2013, a prevalência de violência cometida por pessoas conhecidas na população adulta (≥ 18 anos) foi maior entre mulheres, jovens e pessoas negras e pardas41. As mulheres negras morrem mais por agressão em todas as faixas etárias, exceto entre as idosas27. Em Santa Catarina, adolescentes brancas foram as principais vítimas de violência sexual notificada entre 2008 e 201333, possivelmente decorrente do alto contingente da população branca no Estado (89,3%). Em Niterói, predominaram os episódios de violência em mulheres pardas (29,3%), e a notificação de mulheres brancas (24,1%) foi superior às negras (18,9%), contudo a proporção de 27,4% de registros em branco/ignorado prejudica a análise.
Na Albânia, uma investigação sobre violência física conjugal mostrou aumento do risco de violência quanto maior a escolaridade das mulheres, principalmente nas situações em que elas possuem escolaridade maior que o marido; no entanto, níveis de escolaridade iguais foi fator de proteção10. Contudo, as pesquisas mostram associação entre menor escolaridade e violência contra a mulher27,33,42. Em Niterói, a ausência dessa informação em mais da metade das notificações obstaculiza possíveis considerações.
Estudo de casos e controles com base no VIVA inquérito 2011 encontrou maior risco de violência doméstica e familiar entre mulheres mais jovens, sem atividade remunerada, com baixa escolaridade e consumo de álcool25. Análise da violência por parceiro íntimo (VPI), a partir do VIVA Inquérito 2014, identificou como principais vítimas mulheres, jovens, negras, sem atividade remunerada e com baixa escolaridade, com predomínio de violência física, e a residência como local mais frequente40. Em Lages, Santa Catarina, Anacleto et al.42 constataram associação entre menor renda e menor escolaridade, com maior prevalência de violência física grave entre parceiros íntimos. Ainda que a violência contra a mulher esteja presente em todos os estratos sociais10,43, esses resultados demonstram que piores condições socioeconômicas acarretam maior vulnerabilidade para violência contra a mulher.
Apesar de 32,3% dos registros com informação em branco/ignorada com relação à situação obstétrica, as 31 gestantes no momento da agressão sinalizaram uma questão importante que deve ser rastreada em razão das graves consequências da violência na gravidez. Hemorragias, morte materna, interrupção da gestação, aumento do risco de morte perinatal, baixo peso ao nascer e prematuridade são possíveis danos decorrentes da violência na gestação38,39. Estudo realizado com 1.379 gestantes usuárias do Sistema Único de Saúde, acompanhadas em Unidades Básicas de Saúde no município de Campinas (SP) entre 2004 e 2006, identificou uma prevalência de 19,1% de violência psicológica e 6,9% de violência física/sexual. Esses autores sugerem a necessidade de mecanismos apropriados para identificação e abordagem da violência durante a gestação, especialmente na APS39.
A recorrência dos episódios (30,3%) sinaliza que as situações de violência não constituem fenômenos isolados, refletindo a configuração de relações interpessoais, violentas entre familiares e pessoas próximas. Análise das notificações de violência contra crianças e adolescentes em Feira de Santana/BA, de 2009 a 2011, evidenciou recorrência dos episódios em mais de 50% dos casos notificados e óbitos em 15,3% das 432 notificações de violência infantojuvenil44. Barufaldi et al.27 identificaram violência de repetição em 15,9% das mulheres com notificação de violência e que morreram por agressão entre 2011 e 2016.
O número de óbitos encontrado neste estudo (n = 3) não refletiu a realidade, pois, segundo os registros do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) obtidos na página do Ministério da Saúde45, nesse mesmo período ocorreram 19 óbitos por suicídio (categorias X60-X84 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde-10ª Revisão – CID-1046) entre mulheres com 10 anos ou mais residentes em Niterói e 6 óbitos por agressão por meios não especificados (categoria Y09 da CID-10).
Barufaldi et al.27 compararam as taxas de mortalidade por agressão entre mulheres com e sem notificação prévia de violência, de 2011 a 2016, e encontraram, em todas as idades, risco maior de homicídio entre as vítimas de violência notificadas anteriormente. As vítimas de violência física apresentaram risco de morte por agressão 523,7 vezes maior em crianças, 116,7 vezes maior em adolescentes, 112,2 vezes maior em adultas e 326,3 vezes maior em idosas, em relação à população feminina geral. O parceiro íntimo foi identificado como provável autor em 33,8% das notificações de violência contra mulheres em 2015, e quando consideradas apenas as adultas, em 48,2%. A recorrência das agressões abrangeu 15,9% das mulheres assassinadas com notificação prévia por violência. As autoras ressaltam a situação de vulnerabilidade das mulheres vítimas de VPI e a ineficácia das medidas protetivas esperadas em decorrência da notificação27.
A análise da ocorrência e a distribuição dos tipos de violência destacam que um episódio notificado pode envolver mais de um tipo de violência. A violência psicológica (rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, humilhação e cobrança exagerada)14,47 é a modalidade de violência mais frequente, comumente precedendo e associada a outras formas de violência5,36,48. No Brasil, entre 2009 e 2014, violência física, psicológica/moral e sexual foram as mais registradas no VIVA SINAN13, mesma ordenação observada no presente estudo (Tabela 2).
A preponderância de notificações de violência sexual em adolescentes em Niterói está em consonância com o observado na literatura. Em 2012, foram notificados no Brasil 20.299 casos de violência sexual no VIVA SINAN, dos quais 77,2% na faixa etária de 0 a 19 anos49. Em Santa Catarina, entre 2008 e 2013, a violência sexual representou 12,5% das notificações de violência contra mulheres. Em 69,7%, as vítimas eram adolescentes (10 a 19 anos), sendo 47,3% na faixa etária de 10 a 14 anos33. As autoras salientam que mais da metade desses episódios foi recorrente, com agressores familiares (21,5%) ou conhecidos (29,4%)33.
A maioria das situações de violência doméstica contra mulheres ocorre no interior da residência, e o agressor é seu parceiro íntimo ou alguém do sexo masculino bem próximo à vítima2,25,40,41.
No Brasil, estudos de base populacional5,36 identificaram prevalência de violência psicológica, física e sexual por parceiro íntimo. Em estudo multicêntrico da OMS3-5, o Brasil apresentou posição considerada intermediária ou baixa. No Peru, foram obtidos os índices mais elevados em relação à violência física, enquanto no Japão, os mais baixos. Na Etiópia, mais da metade das mulheres entrevistadas relatou ter sofrido violência sexual pelo menos uma vez na vida4.
Em Niterói, ocorreram cinco notificações de tortura com descrição de episódios de violência física e psicológica/moral grave por parceiro íntimo: cônjuge (n = 2), ex-cônjuge (n = 2) e namorado (n = 1) (Tabela 3). Desconhecidos foram apontados como agressores em 70% das notificações de tortura (n = 20), com registro de violência sexual e psicológica/moral contra 13 mulheres e violência física em 12 delas. Essas situações se enquadram como tortura enquanto “[...] ato de submeter alguém à guarda, poder ou autoridade, com emprego de força ou grave ameaça, provocando intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida com intenção preventiva.”14:42.
A negligência, por si só, não configura violência contra a mulher7, constituindo uma omissão por parte do responsável pelo cuidado a alguém que não possui autonomia plena, como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. Essa discussão foge ao escopo deste trabalho, mas cumpre destacar que a responsabilização da mãe como agressora em 50,7% dos episódios de negligência (n = 75) reflete o peso social da condição feminina no cuidado com filhos, crianças ou adolescentes (Tabela 3).
Não obstante as limitações decorrentes da subnotificação e do elevado índice de incompletitudes, o perfil de violência contra a mulher evidenciado neste estudo fornece elementos para o seu enfrentamento, principalmente pelo setor da saúde. Em Niterói, desde 2015, a COVIG encaminha as FNV para as policlínicas regionais e, destas, para as equipes de atenção primária responsáveis. São realizadas reuniões mensais com profissionais de saúde, conselheiros tutelares, representantes da educação e da assistência social, em que se discutem os casos e os encaminhamentos a serem realizados.
A recorrência dos episódios, as situações de violência na gestação, a residência como local mais frequente das agressões e o maior risco de morte por agressão em mulheres com notificação prévia de violência27 corroboram a gravidade das situações de violência contra as mulheres e reforçam a importância do VIVA contínuo e das estratégias de vigilância às violências interpessoais/autoprovocadas no enfrentamento da violência contra a mulher. O conhecimento oportuno e sistematizado da ocorrência da violência interpessoal e intrafamiliar pode ser um instrumento de articulação entre os serviços de saúde, favorecendo a intervenção em conjunto com outros setores da sociedade, como educação, assistência social, judiciário e organizações não governamentais, além de aproximar os profissionais de saúde e as mulheres que vivem em situação de violência, promovendo a comunicação e o cuidado24,25,44,49.
O Ministério da Saúde (MS)50, por meio da Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra as Mulheres, ressalta que a intervenção dos serviços de saúde nessas situações possui papel de destaque, por serem instrumentos de garantia dos direitos humanos, haja vista que a maioria das mulheres possui contato com o sistema de saúde em algum momento da vida. Nessa ocasião, é fundamental que os profissionais de saúde estejam habilitados para identificar as situações de violência, as quais demandam atendimento intersetorial ao envolver educação, saúde, assistência social, segurança pública, cultura, turismo e lazer49. No entanto, as pesquisas evidenciam a impotência dos profissionais de saúde em lidar com as situações de violência doméstica e familiar contra mulheres, a ineficácia das atuais medidas protetivas e o desafio da intersetorialidade13,26,27,41,42.
O enfrentamento da violência contra a mulher pelo setor da saúde se dá por intermédio da educação permanente, visando qualificar os profissionais para trabalhar os fenômenos desse agravo com ênfase no empoderamento feminino mediante a apropriação do conceito de equidade de gênero, ou seja, da valorização do papel da mulher na sociedade e do seu entendimento enquanto sujeito de direito.
É preconizado pelo MS que esse tipo de atendimento esteja pautado no correto diagnóstico dos casos de violência contra a mulher, na promoção da assistência humanizada, na estruturação, na ampliação e no desenvolvimento dos serviços especializados ou de referência por meio da valorização do acolhimento, das estratégias de adesão e da consolidação da eficácia das abordagens.
Ademais, permanece a necessidade de abordagem do tema nas graduações de saúde, considerando sempre a necessidade de apoio às repercussões na vida e saúde dos estudantes e profissionais envolvidos, sem o qual, como chamam atenção Minayo et al.13, permanecerá o estranhamento à racionalidade biomédica.
A análise das notificações de violência contra mulheres em Niterói, efetuada no presente estudo, apesar das limitações decorrentes da qualidade das informações, trouxe visibilidade ao VIVA, sinalizando a importância da atitude de acolhimento por parte dos profissionais de saúde, o estabelecimento de vínculos de confiança e as iniciativas de fortalecimento da autoestima e da autonomia da mulher. Torna-se importante, portanto, reafirmar a necessidade de se dispor de dados válidos e confiáveis, bem como de se investir em ações de vigilância.