On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.30 no.1 São Paulo Jan./Feb 2017
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201700005
A adesão do paciente com diabetes mellitus ao tratamento medicamentoso tem constituído um problema na prática clínica e um desafio para os profissionais de saúde.(1) No cotidiano, dependendo do tipo de diabetes, o tratamento medicamentoso pode ser por via oral ou subcutânea.
Um dos fatores que prejudicam a adesão é o erro cometido pelos pacientes ou cuidadores responsáveis no preparo da dose de insulina. Nesse cenário, é frequente a ocorrência de erros relativos ao medicamento, à dose, ao horário, à via de administração, ao tempo de ação e à validade.
No que se refere ao uso de insulina, acrescentam-se erros relacionadas à técnica de preparo da dose, administração e conservação que ocorrem desde a verificação da temperatura ideal para a aplicação das doses, a homogeneização da insulina sem agitá-la, a angulação da agulha, a espera de 5 segundos para retirar a agulha após aplicação da dose, dentre outros.(2)
Particularmente no que se refere ao preparo de insulina, percebe-se, entre outros erros, um descompasso entre a dose prescrita e a dose preparada, o que compromete o alcance do controle glicêmico desejável.(3,4)
O défice de conhecimento sobre a doença e de habilidades requeridas para o preparo de doses de insulina, e o défice na acuidade visual para perto podem ocasionar em aplicação de dose excessiva ou subdose.
Na prática clínica, a avaliação da acuidade visual para perto quase nunca antecede o processo ensino-aprendizagem do qual devem participar o enfermeiro, o paciente ou o cuidador. A falta desse elemento essencial compromete o julgamento clínico do enfermeiro e, consequentemente, a tomada de decisão sobre a melhor conduta para atender essa necessidade terapêutica.
Conforme as práticas seguras de preparo e aplicação de doses de insulina, esse medicamento foi incluído no rol dos cinco que mais provocam danos a pacientes adultos e infantis, em decorrência de falhas na utilização. Ademais, por se tratar de um fármaco de margem terapêutica estreita, doses excessivas ou subdoses podem ocasionar em hiperglicemia ou hipoglicemia, respectivamente.(5) Essas considerações reiteram a importância da avaliação da acuidade visual para perto antes do início do processo de ensino-aprendizagem, de modo a direcionar as ações que envolvem o tratamento com insulina e minimizar os riscos da aplicação de dose incorreta.
A literatura aponta os vários erros cometidos no preparo de doses de insulina, mas, no que toca às causas prováveis, a diminuição da acuidade visual para perto é pouco referida.(3,6,7) Ainda sobre o assunto, constata-se escassez de estudos sobre a avaliação da acuidade visual para perto, na Atenção Primária em Saúde, evidenciando lacunas no conhecimento. Especialmente as pessoas que preparam a dose cotidiana de insulina precisam ter acuidade visual para perto normal, de modo a assegurar a acurácia da dose prescrita. Pelo exposto, o objetivo deste estudo foi avaliar a acuidade visual para perto no preparo da dose de insulina.
Estudo transversal realizado em 20 Unidades Básicas de Saúde reorientadas e operacionalizadas pela Estratégia de Saúde da Família da zona urbana de Picos (PI), no Estado do Piauí, no período de abril de 2013 a janeiro de 2015.
A população constituiu-se de pacientes com diabetes mellitus. Os critérios de inclusão foram: estar cadastrado nas unidades referidas; em seguimento pelo Sistema de Cadastramento e Acompanhamento de Hipertensos e Diabéticos (HIPERDIA); ter idade ≥20 anos; utilizar insulina como tratamento medicamentoso permanente; e preparar doses de insulina.
O ponto de corte relativo à idade justifica-se ao ser considerado que a principal causa de acuidade visual diminuída são os erros de refração.(8) Foram excluídos da amostra os que utilizavam canetas e bombas de infusão de insulina; aqueles cuja dose era preparada e aplicada por profissional de saúde nas unidades; e os que não estivessem no domicílio durante o período de coleta dos dados.
A amostra por conveniência foi composta por 100 pacientes com diabetes mellitus No entanto, ao se considerar o último critério de inclusão, constatou-se que, para 35 dos pacientes, o preparo da dose era realizado por um cuidador. Assim, a amostra deste estudo, constituiu-se de 65 pacientes e 35 cuidadores. Para o estudo, elegeram-se as variáveis sociodemográficas (idade, sexo, escolaridade, atividade laboral, classificação socioeconômica e situação conjugal) e clínicas (tempo de doença e hemoglobina glicada - A1c) dos pacientes com DM; variáveis relacionadas à insulinoterapia (tipo de seringa utilizada, reutilização da seringa e tipo de insulina utilizada); e à acuidade visual (acompanhamento oftalmológico e nível do cartão de Jaeger) dos pacientes com diabetes mellitus que preparavam as doses de insulina; e variáveis socioeconômicas (idade e sexo), e relacionadas à acuidade visual (acompanhamento oftalmológico e nível do cartão de Jaeger) dos cuidadores responsáveis pelo preparo das doses de insulina.
A coleta de dados foi realizada no domicílio, após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Inicialmente, aplicou-se o formulário para a obtenção das variáveis sociodemográficas e clínicas dos pacientes com diabetes mellitus e variáveis sociodemográficas dos cuidadores que preparavam as doses de insulina; em seguida, coletou-se uma amostra de sangue venoso para dosagem de A1c. A coleta de sangue venoso foi realizada por técnicos de um laboratório especializado e previamente contratado, obedecendo-se às normas de preservação das amostras e segurança dos pacientes.
Para avaliação da acuidade visual para perto dos 65 pacientes com diabetes mellitus e 35 cuidadores, utilizou-se o cartão de Jaeger. É composto por optotipos: números de 1 a 9 em ordem crescente de tamanho, e letra E em ordem crescente de tamanho e em diferentes direções (para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda). Cada tamanho de número (1 a 9) e letra (E) corresponde à letra J, que recebe a pontuação de J1, J2, J3, J4, J5 e J6, conforme a ordem crescente dos optotipos apresentados e a equivalência de distância representada por 0,37m, 0,50m, 0,67m, 0,75m, 1,00m e 1,25m, respectivamente.(9)
O cartão foi colocado na altura dos olhos e a uma distância de 35cm, tendo sido primeiramente investigado o olho direito, depois o esquerdo e, em seguida, os dois simultaneamente. A depender da escolaridade, apontavam-se os números de 1 a 9 para serem lidos, ou a letra E para que a posição apresentada fosse reproduzida com os dedos da mão.
Acerca da interpretação dos resultados, para cada letra J há uma equivalência de distância na qual é utilizado como parâmetro o 20/40 (0,50m), que corresponde a J2. Desse modo, as pessoas que enxergaram ao nível de J1 ou J2 foram avaliadas com acuidade visual para perto normal, e aquelas que enxergaram ao nível de J3 a J6 ou não enxergaram tiveram acuidade visual para perto diminuída.
Os dados foram exportados para o software estatístico Statistical Package for Social Science, versão 20.0, para tratamento e geração dos resultados. Para as análises inferenciais de comparação de média, foi utilizado o teste de Kruskal-Wallis, e as variáveis qualitativas foram mensuradas pela razão de verossimilhança, para associação entre acuidade visual e faixa etária e classe econômica. Adotou-se, para todas as provas estatísticas, o erro de primeira espécie de 5% (p<0,05).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual do Piauí, sob o parecer 901.145.
Em relação ao preparo da dose insulina, 35% referiram que era preparada por um cuidador, sendo mulheres 80% dos cuidadores, com média de idade de 45 anos e escolaridade correspondente ao Ensino Médio completo (31,4%). Para o preparo das doses de insulina, os pacientes com diabetes mellitus e cuidadores utilizavam seringas de 100 unidades conjugadas com as agulhas e 72% reutilizam a seringa. 80% utilizavam insulina NPH, 3% insulina a regular e 15% os dois tipos de insulina.
Constatou-se a realização de acompanhamento oftalmológico em 72,3% e 57,1% dos pacientes com diabetes mellitus e dos cuidadores, respectivamente. O teste com o cartão de Jaeger evidenciou acuidade visual para perto diminuída em 40% dos pacientes e em 20% dos cuidadores (Tabela 1).
Tabela 1 Acuidade visual dos pacientes (n=65) e dos cuidadores (n=35) responsáveis pelo preparo de doses insulina
Acuidade visual | Pacientes | Cuidadores | |
---|---|---|---|
n(%) | n(%) | ||
Ambos os olhos | J1 | 10(15,4) | 17(48,6) |
J2 | 29(44,6) | 11(31,4) | |
J3 | 11(16,9) | 5(14,2) | |
J4 | 6(9,2) | 1(2,9) | |
J5 | 2(3,1) | - | |
J6 | 3(4,6) | - | |
Não enxergou | 4(6,2) | 1(2,9) | |
Total | 65(100,0) | 35(100,0) |
No tocante aos pacientes, constatou-se associação estatisticamente significante entre acuidade visual para perto diminuída e classe econômica (p=0,032) e faixa etária (p=0,024) (Tabela 2). Logo, quanto maior o porcentual de acuidade visual para perto diminuído, menor a classe econômica e maior a idade.
Tabela 2 Associação da acuidade visual para perto entre classe econômica e idade dos pacientes que preparam doses de insulina (n= 65)
Variáveis | Ambos os olhos | p-value* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
J1 | J2 | J3 | J4+ | |||
n(%) | n(%) | n(%) | n(%) | |||
Classe econômica | A | - | 2(33,3) | 2(33,3) | 2(33,3) | 0,032 |
B | 3(18,8) | 10(62,5) | 2(12,5) | 1(6,3) | ||
C | 7(23,3) | 8(26,7) | 7(23,3) | 8(26,7) | ||
D ou E | - | 9(69,2) | - | 4(30,8) | ||
Idade | 22 - 32 | 3(100,0) | - | - | - | 0,024 |
33 - 43 | 4(44,4) | 2(22,2) | 1(11,1) | 2(22,2) | ||
44 - 54 | 1(7,1) | 8(57,1) | 1(7,1) | 4(28,6) | ||
55 - 65 | 2(9,5) | 11(52,4) | 4(19,0) | 4(19,0) | ||
66 - 76 | - | 7(43,8) | 4(25,0) | 5(31,2) | ||
>77 | - | 1(50,0) | 1(50,0) | - |
*p-value referente à razão de verossimilhança
Em relação aos cuidadores, houve associação estatisticamente significante entre acuidade visual para perto diminuída e idade (p=0,024) (Tabela 3), sendo evidenciado maior porcentual de acuidade visual diminuído em cuidadores com maior faixa etária.
Tabela 3 Associação entre acuidade visual e faixa etária dos cuidadores que preparam doses de insulina (n= 35)
Características sociodemográficas | Jaeger - dois olhos | p-value* | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
J1 | J2 | J3 | J4+ | |||
n(%) | n(%) | n(%) | n(%) | |||
Idade | 21 - 31 | 5(62,5) | 2(25,0) | 1(12,5) | - | 0,024 |
32 - 42 | 7(77,8) | 2(22,2) | - | - | ||
43 - 53 | 4(50,0) | 3(37,5) | 1(12,5) | - | ||
54 - 64 | 1(14,3) | 3(42,9) | 3(42,9) | - | ||
>65 | - | 1(33,3) | - | 2(66,7) |
*p-value referente à razão de verossimilhança
A escassez de literatura limitou a discussão dos resultados do presente estudo. Portanto, recomenda-se que outras investigações sobre o assunto sejam desenvolvidas, de modo a despertar nos enfermeiros a necessidade de indagar a si mesmos como está a acuidade visual para perto daqueles que preparam doses de insulina.
Este estudo de pacientes com diabetes mellitus avaliou a acuidade visual para perto no preparo de doses de insulina, considerando que enxergar no nível adequado para essa distância é uma das condições necessárias para garantir a acurácia da dose a ser preparada. No entanto, os resultados mostraram que em 35% dos pacientes a dose era preparada por cuidadores, que, em sua maioria, era um familiar. No cotidiano, é comum um cuidador assumir o preparo e a aplicação de doses de insulina.(10) Essa dependência, frequentemente observada na prática clínica, significa a falta de competência para o autocuidado, representada por fatores como a diminuição da acuidade visual, o comprometimento da função motora, a falta de adesão ao tratamento medicamentoso e as especificidades da seringa de insulina.(1,10-12)
O porcentual de pacientes e cuidadores que, no presente estudo, além de preparar as doses de insulina, tinha a acuidade visual para perto diminuída foi semelhante ao encontrado em investigação com população de idosos com diabetes mellitus.(7,13) Estudo mostrou que pacientes em uso de insulina aspiram dose divergente da prescrita, em virtude da dificuldade de visualizar a quantidade do medicamento na seringa.(3,13)
Os tipos de seringas e agulhas disponibilizados no mercado para o preparo de doses de insulina são de material plástico. Embora indicados para uso único, a reutilização é recomendada na prática clínica.(14) A capacidade total varia entre 30, 50 e 100 unidades, e as agulhas podem ser fixas ou não fixas, além de apresentarem marcas impressas na extensão de seu corpo. De acordo coma capacidade da seringa cada marca representa uma unidade (seringas de 30 e 50 unidades) e duas unidades (seringas de 100 unidades).(15) Parte dessas peculiaridades, aliada à diminuição da acuidade visual para perto, pode favorecer os erros relacionados ao preparo da dose de insulina, sobretudo em se tratando de doses ímpares em seringas de 100 unidades. Além disso, para aqueles que preparam doses de insulina regular e NPH na mesma seringa, a possibilidade da ocorrência desses erros é aumentada. Também a reutilização de seringas facilita o desaparecimento das marcas impressas no corpo e favorece a discordância entre a dose prescrita e a dose aspirada.
Atualmente existem tecnologias apropriadas para ajudar os que têm acuidade visual para perto diminuída, como os ampliadores, que, ao serem colocados no corpo da seringa, funcionam como lentes de aumento, facilitando a visualização de suas marcas.(3)
Os testes de acuidade visual são exemplos de instrumentos que devem fazer parte das ações de prevenção de agravos, permitindo a identificação precoce das alterações visuais. No presente estudo, utilizou-se o teste de Jaeger, que pode ser aplicado pelo enfermeiro, cabendo-lhe proceder à sua leitura para subsídio de diagnóstico.(15) As anormalidades identificadas definem a priorização para o encaminhamento ao oftalmologista pela equipe da Estratégia Saúde da Família.
Particularmente em relação à saúde dos olhos das pessoas que preparam doses de insulina, os profissionais da Atenção Primária devem ainda monitorar a adesão ao acompanhamento oftalmológico, conforme protocolos estabelecidos.(16) O estudo ora desenvolvido registrou números expressivos de pacientes e cuidadores que estavam sendo acompanhados por oftalmologista, achado respaldado pela literatura pertinente.(17) Por outro lado, nem sempre os pacientes encaminhados comparecem às consultas oftalmológicas, o que representa mais uma falta de adesão ao tratamento e autonegligência.(16)
A acuidade visual para perto diminuída dos que usavam óculos reitera a importância do acompanhamento oftalmológico, pois a prescrição de lentes corretivas reduziu a prevalência de acuidade visual diminuída.(8)
A associação estatisticamente significante evidenciada entre acuidade visual para perto diminuída, idade e classe econômica, em se tratando de pacientes, encontra apoio em outros estudos. A velocidade dos problemas visuais está relacionada diretamente com a idade, e a facilidade de acesso aos serviços oftalmológicos depende das condições socioeconômicas.(16,18,19)
A Estratégia Saúde da Família, porta de entrada da Atenção Primária, constitui modelo de atenção à saúde fundamentado na longitudinalidade e na integralidade do cuidado, de modo a propiciar a autonomia do indivíduo, da família e da coletividade para a prática de cuidado e autocuidado de acordo com as potencialidades e as limitações de cada um.(20,21) A identificação de pessoas que preparam doses de insulina, embora apresentem diminuição da acuidade visual para perto, revela a magnitude de um problema que pode contribuir para o aumento da prevalência de complicações de diabetes mellitus, comorbidades, índices de mortalidade e custos para o Sistema Único de Saúde.
O cartão de Jaeger é um instrumento adequado que pode ser utilizado na Atenção Primária para avaliar a acuidade visual para perto, pela facilidade de uso e pelo baixo custo. Cabe ainda ao enfermeiro que atua na Estratégia Saúde da Família canalizar esforços, no sentido de disponibilizar ampliadores de dose para os que forem diagnosticados com défice de acuidade visual para perto, assim como monitorar o comparecimento às consultas oftalmológicas.
A acuidade visual para perto esteve diminuída em um número expressivo de pacientes com diabetes mellitus e nos cuidadores que preparavam doses de insulina. Houve associação estatisticamente significante entre acuidade visual para perto diminuída e classe econômica e faixa etária para os pacientes, e acuidade visual para perto diminuída e idade para os cuidadores. Esses resultados são relevantes para a prática da enfermagem, uma vez que mostram a necessidade da construção de protocolos específicos sobre a avaliação da acuidade visual para perto que possam ser utilizados na Atenção Primária. Dessa forma, o enfermeiro pode iniciar o processo de ensino-aprendizagem sobre o preparo de doses de insulina com base no julgamento clínico para a tomada de decisão com vistas ao empoderamento do paciente ou cuidador.