Compartilhar

Vitimização por crime na infância e adolescência segundo registros oficiais: coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

Vitimização por crime na infância e adolescência segundo registros oficiais: coorte de nascimentos de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

Autores:

Erika Alejandra Giraldo Gallo,
Ana Maria B. Menezes,
Joseph Murray,
Luciana Anselmi Duarte da Silva,
Fernando César Wehrmeister,
Helen Gonçalves,
Fernando Barros

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.8 Rio de Janeiro 2016 Epub 29-Ago-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00072915

Resumen:

Descripción de los diferentes tipos de victimización registradas oficialmente en 5.249 niños de la cohorte de nacimientos de la ciudad de Pelotas, Río Grande do Sul, Brasil. Los datos oficiales fueron obtenidos en la Secretaría de Seguridad Pública y en el Juzgado de la Infancia y Juventud. La victimización se produjo en 1.150 miembros, con 1.396 casos registrados hasta el 31 de diciembre de 2012. La tasa de incidencia de la victimización total fue 15,7 por 1.000 personas-año, siendo la mayoría por victimización violenta (12,7 por 1.000 personas-año). La victimización aumentó gradualmente en la infancia y rápidamente a lo largo de la adolescencia. Las mayores incidencias fueron entre mujeres (p < 0,05), pobres (p < 0,05), con madres adolescentes (p < 0,001) y sin compañero (p < 0,05). La victimización violenta más incidente fue debida a crímenes con lesiones corporales, robo y crímenes contra la libertad individual; la no violenta por delitos de hurto. Estudios como el actual permitirían identificar factores de riesgo y protectores a lo largo de la vida del individuo, resaltando la importancia de la implementación de medidas de vigilancia y control de la violencia.

Palabras-clave: Víctimas de Crimen; Violencia; Niño; Adolescente

Introdução

Violência é definida como o uso da força ou poder como forma de ameaça contra outras pessoas, grupo ou comunidade, com probabilidade de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações 1. É considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 1 como um importante problema de saúde pública. A Organização das Nações Unidas (ONU) 2, em 2011, revelou que foram cometidos 468 mil homicídios no mundo. Em 2010 3, 25,5 milhões de anos de vida saudável foram perdidos devido a lesões decorrentes da violência interpessoal.

A pessoa que sofre dano mental ou físico, econômico ou por ações ou omissões que violam a lei penal é considerada "vítima" individualmente ou como grupo 1. Dados mundiais revelam que 16% da população geral são vítimas de pelo menos um crime no último ano, sendo que 40 milhões de menores de 15 anos sofreram abusos e negligência 4. Aproximadamente 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos menores de 18 anos mantiveram relações sexuais forçadas ou sofreram outras formas de vitimização por violência sexual que envolveu contato físico 2. De 133 a 275 milhões de crianças são testemunhas de violência doméstica anualmente 4. O International Crime Victim Survey (ICVS) 5, utilizando informações de maiores de 16 anos provenientes de 54 países entre os anos 2000 e 2010, mostrou que países da África apresentaram a maior incidência de vitimização por furto (15,2%), agressão (19,8%) e crime sexual (14,5%) com recordatório dos últimos 5 anos; países da América Latina e do Caribe registraram a maior incidência de vitimização por roubo (22,2%) e países desenvolvidos vitimização por violência doméstica (12,4%) 5.

A incidência de vitimização com adolescentes americanos entre 12 e 20 anos mostrou um decréscimo de 175 a 47,5 por mil adolescentes, entre 1993 e 2011 6. Na Austrália 5, essa incidência manteve-se estável no período de 2000-2011 (5,1 e 5,9 por mil adolescentes, respectivamente). No Canadá 7, a razão de vitimização infantil foi de 9,7 vítimas por mil crianças, sendo que as vítimas mais frequentes aos 2 e 3 anos foram os meninos, e após os 5 anos as meninas foram mais vitimizadas.

No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 8, realizada em 2009 em 26 unidades federais, com população maior de 10 anos e utilizando questionário com período recordatório de um ano, mostrou que 7,4% dos brasileiros autorrelataram terem sido vítimas de roubo e 1,6% de agressão física. Segundo essa mesma pesquisa, a vitimização por roubo ocorreu mais entre pessoas na faixa mais alta da renda familiar, enquanto que a vitimização por agressão física na faixa mais baixa.

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, em 2010 9, realizou um estudo em 11 cidades brasileiras e entrevistou 4.025 pessoas maiores de 16 anos: 4,2% da vitimização nos últimos 12 meses foram por agressão física e 0,6% por lesão corporal com arma de fogo.

O mapa da violência de crianças e adolescentes do Brasil 10, com base em registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), mostrou que a vitimização por violência física, em 2011, teve uma incidência de 20,2 por 100 mil crianças e adolescentes menores de 19 anos. Com relação à vitimização por violência sexual 10, a maior incidência foi registrada na faixa etária de 10-14 anos, com um registro de 23,8 por 100 mil adolescentes.

O objetivo deste artigo foi analisar os diferentes tipos de vitimização registrados nas fontes oficiais dos membros da coorte de nascimentos acompanhados até os 18 anos de idade na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.

Metodologia

O presente trabalho foi realizado com base em informações sobre os membros do estudo de coorte de nascimento de 1993 na cidade de Pelotas.

Os 5.249 nascidos vivos participantes do estudo de coorte foram procurados sistematicamente nos sistemas de informação tanto da Secretaria de Segurança Pública quanto do Juizado da Infância e Juventude. Em 2013, informações sobre vitimização na coorte foram consultadas na Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul e no Juizado da Infância e Juventude da Comarca de Pelotas. A Secretaria é constituída pela Brigada Militar, o Instituto Geral de Perícias, Polícia Civil e Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE). Registros policiais são reportados por esses órgãos e armazenados no Sistema de Consultas Integradas que é administrado pela Secretaria de Segurança Pública. A cidade de Pelotas tem apenas uma vara do Juizado da Infância e Juventude, onde tramitam processos versando sobre destituição do poder familiar, vítimas de agressão para menores (< 18 anos), processos criminais que envolvam crianças (0-11 anos completos) ou adolescentes (12-18 anos) 11 como infratores, entre outros procedimentos.

Foi construído um banco de dados unificado contendo informações das duas fontes. Essas informações permitiram identificar para cada ocorrência de vitimização: data do fato, relação da vítima com o agressor (familiar: pai, mãe, irmãos, avós, tios, primos, padrasto, madrasta, cunhado; comunitária: namorado/a, amigo/a, vizinho/a, colega ou desconhecido), uso de arma (sim, não) e a classificação do crime.

Os crimes identificados nas diferentes fontes foram classificados segundo as leis brasileiras vigentes no momento da ocorrência 11), (12), (13 e agrupados nas classes apresentadas nas Tabelas 1 e 2. Cada artigo da lei, por sua vez, foi classificado em vitimização violenta ou não violenta, segundo a definição da OMS 1. Foram excluídas vitimizações por acidentes de trânsito, pois estas não se configuram como crimes propriamente ditos.

Tabela 1: Tipos de vitimização segundo a legislação brasileira, classificados como violentos. 

Tabela 2: Tipos de vitimização segundo a legislação brasileira, classificados como não violentos. 

Para garantir a padronização do sistema de classificação e realizar um adequado controle de qualidade das informações, três estudantes de direito, do último ano, realizaram tal classificação independentemente um do outro, após serem instruídos pelo coautor Joseph Murray, especialista em criminologia pela University of Cambridge (Reino Unido). Posteriormente, as informações foram comparadas entre os três para avaliar a concordância da classificação; quando existiam diferenças era realizada uma discussão entre os três com supervisão do expert em criminologia (Joseph Murray) até haver um consenso.

As mães das crianças nascidas entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 1993, nas cinco maternidades da cidade, foram entrevistadas por pessoal treinado, obtendo-se informações demográficas, socioeconômicas e de saúde. Mais tarde, essas crianças foram acompanhadas em diferentes períodos de tempo. Informações detalhadas do estudo de coorte de 1993 foram publicadas em artigos anteriores 14), (15), (16.

No período perinatal, foram coletadas informações sobre as seguintes variáveis (e respectivas categorizações): quintis de renda familiar, escolaridade da mãe em anos completos de estudos (0-4, 5-8, ≥ 9 anos), idade materna (≤ 19, ≥ 20 anos), cor da pele da mãe autorreferida (branca/não branca), estado civil da mãe (sem companheiro, com companheiro), paridade (0-1, 2-3, ≥ 4 filhos) e sexo da criança (masculino, feminino).

Análises estatísticas foram realizadas utilizando-se o software Stata (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos). Obteve-se a taxa de incidência por mil pessoas/ano; para o cálculo do tempo em risco foram utilizadas: a data de nascimento como período inicial e como final a maior possibilidade até o óbito, ou a ocorrência de vitimização ou um dos acompanhamentos da coorte. Para aqueles que não se obteve mais informações a partir de um dado período, foi acrescentado ainda metade do tempo em risco ao atingirem os 18 anos, assumindo-se que estas perdas foram distribuídas uniformemente entre os grupos. Por exemplo, para aqueles acompanhados aos 11 anos, mas sem acompanhamentos posteriores e sem terem evoluído para óbito ou sofrido algum evento de vitimização, foram acrescidos 3,5 anos ao seu tempo em risco. Apenas em 0,8% da amostra houve esse acréscimo. A taxa de incidência para a vitimização, segundo características socioeconômicas, foi estimada usando-se o comando "ir" do Stata.

O estudo da coorte de nascimentos de 1993 teve aprovação da Comissão de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas. Até os membros da coorte completarem 18 anos de idade, suas mães ou responsáveis legais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. A partir dos 18 anos, esse termo foi assinado pelo próprio participante.

Resultados

Do total de 5.249 crianças nascidas vivas, um quarto delas tinha mães com quatro anos de estudos ou menos e 17,4% destas mães eram menores de 19 anos. Cerca de 77,3% dessas mães referiram cor da pele branca e 12,4% moravam com companheiro. Sobre os membros da coorte, cerca de dois terços eram o primeiro filho e 50,3% eram do sexo feminino (Tabela 3).

Tabela 3: Taxa de incidência da vitimização total e descrição das características socioeconômicas ao nascimento. Estudo de Coorte de Nascimentos de 1993, Pelotas, Rio Grande do sul, Brasil. 

Registros oficiais permitiram identificar que 1.150 membros da coorte apresentaram 1.396 ocorrências policiais relacionadas à vitimização até o dia 31 de dezembro de 2012. A taxa de incidência da vitimização total foi de 15,7 por mil pessoas/ano. Na Tabela 3 é apresentada a taxa de incidência da vitimização segundo características socioeconômicas e sexo da criança. Observa-se que essa incidência foi maior para crianças do sexo feminino (p < 0,05), entre aquelas que nasceram em famílias no mais baixo quintil de renda familiar (p < 0,05), com mães menores de 19 anos (p < 0,001) e com mães sem companheiro (p < 0,05).

Na Tabela 4 é apresentada a taxa de incidência da vitimização violenta e não violenta por sexo. As maiores taxas de incidência de vitimização violenta foram: lesões corporais, roubo e extorsão, e crimes contra a liberdade individual. As mulheres apresentaram a maior taxa de incidência de vitimização violenta por crimes contra a liberdade individual (p < 0,001), contra a dignidade sexual e contravenções referentes à pessoa (p < 0,01), já os homens apresentaram a maior taxa de incidência de vitimização violenta por crimes de roubo (p < 0,001) e crimes contra a vida (p < 0,01). Com relação à vitimização não violenta, a maior taxa de incidência registrada foi por crimes de furto (1,7 por mil pessoas/ano). Observou-se uma maior taxa de incidência de crimes contra a honra e contravenções relativa à polícia de costumes entre as meninas, quando comparadas com os meninos (diferenças significativas p < 0,001).

Tabela 4: Taxa de incidência dos diferentes tipos de vitimização segundo sexo. Estudo de Coorte de Nascimentos de 1993, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. 

A taxa de incidência de vitimização segundo a relação da vítima com o agressor e uso de arma está apresentada na Tabela 5. Vitimização comunitária apresentou uma maior taxa de incidência (12,6 por mil pessoas/ano) quando comparada à vitimização familiar (3,1 por mil pessoas/ano). Entre os crimes cujo perpetrador da violência era um familiar, periclitação da vida e da saúde e crimes contra a família foram os mais incidentes. Já os crimes em que o agressor era alguém da comunidade, lesões corporais, roubo e extorsão e crimes contra a liberdade individual foram os mais incidentes. Dentre os crimes considerados como não violentos, destaca-se uma maior taxa de incidência para furto. Com relação às ocorrências com o uso de arma, foi observado que 3,5 por mil pessoas/ano foram vítimas de agressores que utilizavam algum tipo de arma.

Tabela 5: Número de ocorrências de vitimização e taxa de incidência dos diferentes tipos de vitimização, segundo a relação vítima agressor e o uso de arma. Estudo de Coorte de Nascimentos de 1993, Pelotas, Rio Grande do sul, Brasil. 

Em relação à idade da ocorrência de algum evento de vitimização (Figuras 1a e 1b), observou-se que o número de ocorrências de vitimização registradas aumentou discretamente até os 11 anos de idade e, a partir daí, verificou-se um aumento importante até os 18 anos. Padrão semelhante foi constatado para a vitimização violenta e não violenta. A vitimização comunitária com o agressor foi mais incidente do que a vitimização familiar, com exceção da faixa etária de 5-9 anos, na qual ocorreu o maior número de vitimização familiar em comparação à comunitária.

Figura 1: Ocorrências de vitimização por idade segundo tipo de vitimização e relação vítima agressor. Estudo de Coorte de Nascimentos de 1993, Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. 

Discussão

A principal conclusão deste estudo prospectivo com mais de 5 mil crianças é que a vitimização criminal oficialmente registrada aumenta gradualmente durante a infância, rapidamente ao longo da adolescência, sendo que crimes violentos são mais incidentes. As maiores taxas de incidências de vitimização violenta foram por lesões corporais, roubo e extorsão, e crime contra a liberdade individual; e a maior taxa de incidência de vitimização não violenta foi por crime de furto. Segundo nosso conhecimento, este é o primeiro trabalho prospectivo que investigou a incidência de vitimização registrada oficialmente, sendo também o pioneiro estudo de vitimização criminal da infância e adolescência em um país de baixa ou média renda.

Diversos trabalhos sobre crime (ao contrário dos estudos de vitimização) usaram os registros oficiais e questionários para avaliar o crime 17. Registros criminais tendem a medir crimes mais graves, e os questionários, crimes mais frequentes e menos graves 18. No entanto, estudos de vitimização anteriores usaram apenas questionários ou entrevistas para medir retrospectivamente incidentes de vitimização. No Brasil, os registros oficiais iniciam com o registro do crime relatado à polícia (Boletim de Ocorrência), enquanto que em muitos países estes registros incluem apenas os dados sobre detenções e condenações do criminoso, o que pode explicar por que outros estudos de vitimização não incluíram registros oficiais.

Uma clara vantagem de registros oficiais de vitimização é que eles oferecem informações detalhadas coletadas no momento em que o evento aconteceu, por exemplo, a data da infração e de seu enquadramento judicial. A desvantagem óbvia de registros oficiais é que uma proporção significativa dos crimes não é denunciada à polícia. A British Crime Survey19 sugere que apenas 39% dos crimes são reportados em órgãos oficiais na Grã-Bretanha. O Instituto Futuro Brasil 20 revela um índice de subnotificação de 68% na cidade de São Paulo, coerente com o encontrado na pesquisa britânica. As principais motivações apontadas pelas pesquisas internacionais para as vítimas não registrarem uma ocorrência 19 estão relacionadas à noção de falta de gravidade dos crimes sofridos e à falta de credibilidade na atuação policial. Outras das considerações apontadas na literatura 21), (22 direcionam a falta de notificação da vitimização violenta à chamada "lei do silêncio", na qual familiares, amigos, vizinhos, profissionais de escolas e até mesmo a própria vítima se abstêm de fazer a denúncia por medo a represálias violentas posteriores.

No presente estudo, observamos um grande aumento de vitimização oficial registrada no período da adolescência. A adolescência representa um período de grandes mudanças em termos de cognição, comportamento e orientação social 23, que poderia aumentar o risco de vitimização 24, especialmente na comunidade. O envolvimento em crime também aumenta durante a adolescência 25 e existe uma forte correlação entre infração e vitimização 26. Uma parcela do aumento de vitimização oficial durante a adolescência pode ser explicada por um crescimento da taxa de notificação pela própria vítima, em contraste com a infância, quando a notificação depende mais dos pais da vítima.

Houve diferenças importantes em risco de vitimização segundo registros oficiais, de acordo com o sexo da criança e conforme algumas características sociodemográficas da família ao nascimento. Foram encontradas diferenças significativas de vitimização entre meninos e meninas, consistentes com outros estudos 8), (21), (27), (28), (29. As mulheres são mais propensas a registrar vitimização violenta por crimes contra a dignidade sexual, contra a liberdade individual e contravenções referentes à pessoa 29), (30), (31. Já os homens registram, principalmente, vitimização violenta por crimes de roubo, agressão física e crimes contra a vida 7), (21), (32), (33), (34), (35), (36. Vitimização não violenta por crime contra a honra que incluiu calúnia, difamação e injúria foi mais incidente entre mulheres, o que também é encontrado em outros trabalhos 29), (30), (31), (32), (33), (34), (35), (36), (37), (38), (39. Estudos em muitos países demonstram que os homens são mais envolvidos em violência e crime do que as mulheres 40. Portanto, é possível que a maior propensão de homens ser vítima de roubo, agressão e crimes contra a vida é explicada pela maior participação em crimes no sexo masculino. Como os crimes sexuais geralmente são realizados contra o sexo oposto 29, a maior ocorrência de homens infratores também pode explicar a maior incidência de vitimização sexual entre mulheres.

Como documentado em múltiplas pesquisas 20), (21), (37), (41), (42), (43), (44, a baixa renda familiar é um importante fator que aumenta a incidência de vitimização violenta. Os resultados da presente pesquisa evidenciaram uma relação inversamente proporcional entre renda familiar e vitimização. Menor escolaridade das mães também se mostrou inversamente associada a vitimizações como em outras pesquisas 20), (37. O fato de filhos com mães sem companheiro apresentarem maior incidência de vitimização pode refletir menos recursos de vigiar e proteger os filhos em famílias sem um pai presente, ou pode refletir outros fatores sociodemográficos associados com o estado civil da mãe, como renda familiar. Membros da coorte com mães adolescentes registraram maior incidência de vitimização 45), (46), (47), (48. A gravidez na adolescência é um importante fator de risco a ser contemplado dentro das estratégias em saúde pública, visando à prevenção e às possíveis consequências da violência contra crianças e adolescentes.

Comparações diretas entre taxas de incidência nas diferentes pesquisas mundiais e nacionais são difíceis devido às diferenças nos procedimentos de registro, caracterização, classificação da vitimização, diversidade nas idades da população selecionada e às diversas formas de coleta das informações. Pesquisas de vitimização encontradas na literatura 14), (36), (49), (50), (51), (52 utilizaram diversos tipos de questionários com diferentes períodos recordatórios para estes eventos. Outro aspecto a ser levado em conta é que muitas dessas pesquisas têm como população alvo grupos de alto risco social 53), (54), (55), (56), (57.

Investigações realizadas em países em desenvolvimentos são escassas e a maioria estuda a população adulta ou maiores de onze anos 20), (21), (32), (33), (37), (44), (48. Os fatores de risco são indagados no mesmo momento da entrevista, o que pode levar ao viés recordatório se os eventos ou exposições ocorreram em idades precoces. Também foram detectadas na literatura muitas pesquisas sobre qualquer forma de vitimização, como brigas entre irmãos, bullying escolar, testemunhas de violência no bairro ou na escola, o que dificulta a comparabilidade entre os diferentes estudos.

A principal limitação do presente trabalho é que não foram obtidos dados de autorrelato de vitimização para comparar com os registros oficias. Além disso, 26 processos mais antigos não foram encontrados nos prontuários armazenados no arquivo central do Tribunal de Justiça. Ainda, foram detectados 39 casos de cartas precatórias que indicam que o processo foi denunciado em uma comarca diferente à de Pelotas. Após contato com as diferentes comarcas, 67% desses casos foram esclarecidos. Apesar da limitação apontada quanto a não localização de alguns processos, a conduta adotada neste estudo foi conservadora, ou seja, os resultados podem estar subestimados; esta conduta nos parece mais adequada do que uma possível superestimativa dos resultados.

Fatores relacionados ao momento do nascimento de uma criança (demográficos e socioeconômicos) podem influenciar as diferentes formas de vitimização dos adolescentes na vida futura, como também tem sido demonstrado em outros estudos 4), (8), (21), (22), (33), (48), (52. Sabe-se que dados oficiais sobre crimes podem refletir somente a "ponta do iceberg", porém, futuras pesquisas epidemiológicas com delineamento longitudinal, que permitam informações detalhadas tanto da vitimização registrada nos órgãos oficiais quanto das autorrelatadas pelos próprios participantes, são importantes para elucidar a perspectiva do problema que enfrentamos. Adicionalmente, este tipo de pesquisa permitiria traçar o perfil da vitimização, identificando fatores de risco e de proteção precoces e as possíveis consequências desencadeadas ao longo da vida do indivíduo.

Maiores esforços para a vigilância e detecção da violência têm de ser implementados, controlados e priorizados por intermédio das redes eficientes de comunicação, com a participação ativa de professores, educadores, trabalhadores comunitários, profissionais da saúde, polícia militar, polícia civil, ouvidorias públicas, líderes comunitários, entre outros atores sociais.

REFERÊNCIAS

1. Krug EG, Mercy J, Dahlberg L, Mercy J A, Zwi AB, Lozano R. The world report on violence and health. World report on violence and health. Geneva: World Health Organization; 2002.
2. United Nations Office on Drugs and Crime. Global study on homicide. Vienna: United Nations Office on Drugs and Crime; 2011.
3. Murray CJ, Vos T, Lozano R, Naghavi M, Flaxman AD, Michaud C, et al. Disability-adjusted life years (DALYs) for 291 diseases and injuries in 21 regions, 1990-2010: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2010. Lancet 2012; 380:2197-223.
4. Dijk J, Kesteren J, Smit P. Criminal victimisation in international perspective: key findings from the 2004-2005 ICVS and EU ICS. Tilburg: Universiteit van Tilburg; 2007.
5. Baliki G. Crime and victimization. Background note for the World Development Report 2014: risk and opportunity. Berlin: German Institute for Economic Research; 2014.
6. Truman JL, Planty M. Criminal victimization, 2011. Washington DC: Bureau of Justice Statistics; 2012.
7. Trocmé N. Prevention of child maltreatment (abuse/neglect). Montreal: Centre of Excellence for Early Childhood Development; 2005.
8. Instituto Brasileiro de Geogra?a e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2009). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2009.
9. Cardia N, Cinoto R. Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes, normas culturais e valores em relação à violação de direitos humanos e violência: um estudo em 11 capitais de estado. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo; 2012.
10. Waiselfisz JJ. Mapa da violência 2012: crianças e adolescentes do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos; 2012.
11. Presidência da República. Decreto Lei nº 3.688, 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Diário Oficial da União 1941; 3 out.
12. Presidência da República. Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União 1990; 16 jul.
13. Presidência da República. Decreto-Lei nº 2.848, 17 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União 1940; 31 dez.
14. Victora C, Araújo C, Menezes A, Hallal PC, Vieira MF, Neutzling MB, et al. Methodological aspects of the 1993 Pelotas (Brazil) Birth Cohort Study. Rev Saúde Pública 2006; 40:39-46.
15. Victora C, Hallal P, Araújo C, Menezes AM, Wells JC, Barros FC. Cohort profile: the 1993 Pelotas (Brazil) birth cohort study. Int J Epidemiol 2008; 37:704-9.
16. Gonçalves H, Assunção MC, Wehrmeister FC, Oliveira IO, Barros FC, Victora CG, et al. Cohort profile update: the 1993 Pelotas (Brazil) Birth Cohort follow-up visits in adolescence. Int J Epidemiol 2014; 43:1082-8.
17. Jolliffe D, Farrington D, Hawkins J, Catalano RF, Hill KG, Kosterman R. Predictive, concurrent, prospective and retrospective validity of self-reported delinquency. Crim Behav Ment Health 2003; 13:179-97.
18. Farrington D, Jolliffe D, Hawkins J. Comparing delinquency careers in court records and self-reports. Criminology 2003; 41:933-58.
19. MacDonald Z. Official crime statistics: their use and interpretation. The Economic Journal 2002; 112:F85-F106.
20. Madalozzo R, Furtado GM. Um estudo sobre a vitimização na cidade de São Paulo. Revista de Economia Política 2007; 31:1-18.
21. Ministério da Justiça. Pesquisa Nacional de Vitimização. Sistema Nacional de Estatísticas de Segurança Pública e Justiça Criminal (SENASP). (acessado em 12/Jun/2015).
22. Violência contra a criança e o adolescente: proposta preliminar de prevenção e assistência à violência doméstica. Brasília: Ministério de Saúde/Serviço de Assistência à Saúde do Adolescente; 1997.
23. Blakemore SJ, Mills KL. Is adolescence a sensitive period for sociocultural processing? Annu Rev Psychol 2014; 65:187-207.
24. Macmillan R. Violence and the life course: the consequences of victimization for personal and social development. Annu Rev Sociol 2001; 27:1-22.
25. Farrington DP. Age and crime. In: Tonry M, Morris N, editors. Crime and justice: an annual review of research. Chicago: University of Chicago Press; 1986. p. 189-250.
26. Lauritsen JL, Sampson RJ, Laub JH. The link between offending and victimization among adolescents. Criminology 1991; 29:265-92.
27. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de informações básicas municipais. Perfil dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2004.
28. Finkelhor D, Turner H, Ormrod R, Hamby SL. Violence, abuse, and crime exposure in a national sample of children and youth. Pediatrics 2009; 124:1411-23.
29. Hamby S, Finkelhor D, Turner H. Perpetrator and victim gender patterns for 21 forms of youth victimization in the National Survey of Children&apos;s Exposure to Violence. Violence Vict 2013; 28:915-39.
30. Burgos MB. Vitimização na região metropolitana do Rio de Janeiro: um estudo sobre ameaça e agressão. In: Duarte MSB, Pinto AS, Campagnac V, organizadores. Pesquisa de condições de vida e vitimização - 2007. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública; 2008. p. 126-43. (Série Análise Criminal, 2).
31. Yahaya I, Uthman OA, Soares J, Macassa G. Social disorganization and history of child sexual abuse against girls in sub-Saharan Africa: a multilevel analysis. BMC Int Health Hum Rights 2013; 13:33.
32. Rolim M. Pesquisa de Vitimização na Cidade de Canoas/RS: relatório final. (acessado em 25/Jun/2015)
33. Beato C, Peixoto B, Andrade M. Crime, oportunidade e vitimização. Rev Bras Ciênc Soc 2004; 19:73-89.
34. Office for National Statistics. The crime survey for England and Wales. (acessado em 24/Abr/2014).
35. Kilpatrick DG, Saunders BE. National Survey of Adolescents in the United States, 1995. Ann Arbor: Inter-university Consortium for Political and Social Research; 2000.
36. Finkelhor D, Ormrod R, Turner H, Hamby SL. The victimization of children and youth: a comprehensive, national survey. Child Maltreat 2005; 10:5-25.
37. Pavão Xavier G, Aguiar de Oliveira C. Determinantes da vitimização criminal no Estado do Rio Grande do Sul. (acessado em 13/Jul/2014).
38. Finkelhor D, Hashima PY. The victimization of children and youth. A comprehensive overview. In: White SO, editor. Handbook of youth and justice. New York: Plenum Publishers; 2001. p. 49-78.
39. Fonseca DH, Ribeiro CG, Leal NSB. Violência doméstica contra a mulher: realidades e representações sociais. Psicol Soc 2012; 24:307-14.
40. Moffitt TE, Caspi A, Rutter M, Silva PA. Sex differences in antisocial behaviour: conduct disorder, delinquency, and violence in the Dunedin Longitudinal Study. Cambridge: Cambridge University Press; 2001.
41. Minayo MCS. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Rev Bras Saúde Matern Infant 2001; 1:91-102.
42. Child Welfare Information Gateway. Child maltreatment 2012: summary of key findings. Washington DC: US Department of Health and Human Services/Children&apos;s Bureau; 2014.
43. United Nations Children's Fund. The state of the world's children. (acessado em Fev/2011).
44. Duarte MSB, Pinto AS, Campagnac V, organizadores. Pesquisa de condições de vida e vitimização - 2007. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública; 2008. (Série Análise Criminal, 2).
45. Finkelhor D, Asdigian NL. Risk factors for youth victimization: beyond a lifestyles/routine activities theory approach. Violence Vict 1996; 11:3-19.
46. Hindelang MJ, Gottfredson MR, Garofalo J. Victims of personal crime: an empirical foundation for a theory of personal victimization. Cambridge: Ballinger; 1978.
47. Stein BD, Jaycox LH, Kataoka S, Rhodes HJ, Vestal KD. Prevalence of child and adolescent exposure to community violence. Clin Child Fam Psychol Rev 2003; 6:247-64.
48. Cruz J. La victimización por violencia urbana: niveles y factores asociados en ciudades de América Latina y España. Rev Panam Salud Pública 1999; 5:259-67.
49. Northcott M. Youth experiences of victimization: a contextual analysis. Toronto: Ontario Justice Education Network; 2011.
50. Lewit EM, Baker LS. Children as victims of violence. The Juvenile Court 1996; 6:147-56.
51. Turner H, Finkelhor D. Developmental victimization survey (DVS). (acessado em 24/Jun/2015).
52. Hashima PY, Finkelhor D. Violent victimization of youth versus adults in the National Crime Victimization Survey. J Interpers Violence 1999; 14:799-820.
53. Zinner SH, Conelea CA, Glew GM, Woods DW, Budman CL. Peer victimization in youth with Tourette syndrome and other chronic tic disorders. Child Psychiatry Hum Dev 2012; 43:124-36.
54. Wooldredge J, Steiner B. Violent victimization among state prison inmates. Violence Vict 2013; 28:531-51.
55. van Dorn RA. Correlates of violent and nonviolent victimization in a sample of public high school students. Violence Vict 2004; 19:303-20.
56. Tsigebrhan R, Shibre T, Medhin G, Fekadu A, Hanlon C. Violence and violent victimization in people with severe mental illness in a rural low-income country setting: a comparative cross-sectional community study. Schizophr Res 2014; 152:275-82.
57. Pereda N, Guilera G, Abad J. Victimization and polyvictimization of Spanish children and youth: results from a community sample. Child Abuse Negl 2014; 38:640-9.