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Viver e comer na 'metrópole caipira': o cotidiano de trabalhadores na cidade de São Paulo entre 1920 e 1960

Viver e comer na 'metrópole caipira': o cotidiano de trabalhadores na cidade de São Paulo entre 1920 e 1960

Autores:

Érico Silva Muniz

ARTIGO ORIGINAL

História, Ciências, Saúde-Manguinhos

versão impressa ISSN 0104-5970

Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.20 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2013

http://dx.doi.org/10.1590/S0104-597020130003000021

Um campo de estudos que vem apresentando abordagens e possibilidades de análise cada vez mais complexas é a chamada história social do trabalho. Apesar disso, o que se conhece sobre o cotidiano de homens e mulheres que formaram a classe trabalhadora brasileira ainda é limitado. Dinâmicas das relações em locais como a casa, a escola e a fábrica - espaços de sociabilidade privilegiados para se apreender aspectos do cotidiano dos indivíduos - permanecem pouco conhecidos dos historiadores. A história dos trabalhadores no Brasil tem majoritariamente se ocupado de aspectos ligados ao universo do poder e das ideias sobre política, tais como concessão de direitos trabalhistas, organização sindical e demandas profissionais. Aspectos da fundação de partidos, influência de ideais anarquistas e comunistas, direitos de manifestação e de greve vêm sendo estudados há décadas por gerações de historiadores e cientistas sociais.

A dificuldade da tarefa de realizar uma história do cotidiano de operários é compreensível. Ir ao arquivo para, por meio dele, adentrar casas de trabalhadores que viveram há oito ou nove décadas buscando observar sua privacidade, os problemas cotidianos, de que se alimentavam e onde moravam é uma árdua tarefa na agenda de pesquisa do historiador social. Essas são algumas das dimensões que estão trabalhadas emAlimentação, vida material e privacidade, livro escrito pelo historiador Jaime Rodrigues, resultado de pós-doutorado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e de pesquisas posteriores desenvolvidas na Universidade Federal de São Paulo. A publicação analisa hábitos e costumes de trabalhadores paulistanos entre as décadas de 1920 e 1960, reconstituindo uma vivência capaz de dimensionar aspectos da alimentação popular, da habitação, de processos econômicos e da geografia da cidade de São Paulo.

Para compreender essa sociedade em transformação, Rodrigues realiza um grande empreendimento de pesquisa trabalhando com variadas fontes. Cartilhas, fotografias, cartazes e textos acadêmicos são alguns dos materiais analisados para contar uma história das relações familiares de trabalhadores paulistanos, com especial destaque ao tema da alimentação. O autor elege as pesquisas de padrão de vida (PPVs) como fontes privilegiadas capazes de reconstituir realidades vivenciadas ao longo do século XX. Essas pesquisas são inquéritos técnicos que visavam mensurar o custo de vida das famílias nas grandes cidades para cálculos do valor do salário mínimo. As PPVs resultaram em estatísticas seriais e cadernetas com notas de pesquisa que permitem diversas abordagens sobre o seu tempo. Como apontou Nelson Senra (2005), as estatísticas são antigas maneiras de mensurar e quantificar as populações. Os Estados nacionais historicamente têm lançado mão de pesquisas e inquéritos para regular sua administração e organizar coletividades com pretensão científica. Esses registros, quando devidamente historicizados, colocam uma série de questões que ultrapassam os dados organizados em tabelas.

No caso das PPVs, principais fontes do trabalho de Rodrigues, elas logo se revelam mais que simples fontes sobre a economia doméstica das famílias operárias paulistanas. O olhar atento do historiador mostra que as PPVs, além dessa noção do aglomerado, trazem registros compostos de cadernetas e notas que indicavam uma série de temas, como família, gênero, consumo e sociabilidade. Constituem-se, portanto, como fontes históricas, preciosos registros do seu tempo, com uma dada moral e em permanente processo de elaboração. Assim, por mais 'técnicos' que pudessem parecer cadernetas, inquéritos e gráficos, o material guardava uma série de subjetividades. Afinal de contas, as instituições estatísticas ou científicas, por mais que se pretendessem 'objetivas', eram planejadas e executadas por cidadãos de uma dada sociedade inscritos em contextos e tradições. Sob essa perspectiva, algumas das possibilidades analíticas são: quem encomendava cada estudo, seus propósitos, resultados, sua relevância social e sua eficácia.

Nesse ponto as fontes de Jaime Rodrigues são privilegiadas. Cadernetas cheias de anotações feitas por pesquisadores que participam de diferentes sondagens e um cotidiano que pode ser acompanhado observando-se cada variação de preço de alimentos, notando-se recusas em participar ou entusiasmo com as pesquisas. Edward P. Thompson (1988) já havia demonstrado, para o caso da classe operária inglesa, que fontes que aparentemente falam sobre reuniões ou especificidades permitem observar a vida de uma coletividade com seus costumes e hábitos. Assim, por fontes seriais ou relatórios e acessando documentos de paróquias, juntas comercias ou do Poder Judiciário foi possível estudar como os trabalhadores londrinos foram ativos atores da Revolução Industrial. As histórias de sujeitos, suas relações, anseios e tradições também formam um tipo de identidade de trabalhador no caso paulistano, uma modalidade de consciência de classe à parte de especificidades de comportamentos comunitários ou familiares.

Assim, a São Paulo que se tornava metrópole e via sua população triplicar em menos de três décadas convivia com um modo de vida rural. A publicidade de alimentos, símbolo da modernidade, surgia simultaneamente ao auge das feiras livres com seus antigos modos de exposição e venda de alimentos. Os hábitos populares de trabalhadores, como a criação de animais domésticos, formatam um modo de vida com variadas práticas e hábitos alimentares de uma cidade cheia de estrangeiros, nordestinos e caipiras.

No capítulo um o autor inicia a exposição de suas fontes para realizar uma história da alimentação em São Paulo. Com destaque às propagandas alimentícias e aos inquéritos alimentares que faziam parte das PPVs, observa-se a visibilidade de questões relativas à alimentação popular ainda nas primeiras décadas do século XX. O pensamento de higienistas e técnicos, o uso de metodologias de pesquisa e de tradições como as do Instituto de Higiene de São Paulo e da Escola de Sociologia e Política (sociologia aplicada norte-americana) garantiram aos inquéritos a possibilidade de análise dos hábitos alimentares populares: o peso das tradições e adaptações de migrantes nacionais e imigrantes e a novidade da influência da propaganda de produtos alimentícios.

O capítulo dois é dedicado às ideias sobre alimentação popular em São Paulo. Rodrigues demonstra que as primeiras ações e políticas públicas de intervenção técnico-científica na alimentação popular ocorreram simultaneamente à consolidação do campo científico da nutrição. A visão predominante entre intelectuais e higienistas sobre a 'ignorância' da população era que, apesar de possuir variados significados, deveria ser corrigida via educação. Oriundas do campo da higiene, as preocupações com a alimentação popular surgem pela fiscalização de pontos de abastecimento (feiras, mercados e açougues) quando o 'olhar higienizador' começava a definir o que seria a 'boa alimentação'. Por meio de uma educação higiênica e de uma polícia para a alimentação pública, buscava-se instruir o povo sobre como comer.

A ideia de 'alimentação racional' e as medidas propostas a partir dela são apresentadas no capítulo três. Práticas de distribuições públicas de gêneros alimentícios essenciais, fiscalização de alimentos, debate sobre merenda escolar, criação de cursos de economia doméstica e de visitadoras sanitárias, emissões de rádio, cinema e publicidade em jornais, aliados ao ensino de nutrição nas faculdades de medicina, atendiam como medidas de uma ideia de que o combate à 'ignorância' deveria prevalecer na alimentação popular. Era a primazia da 'alimentação racional' que entendia que a má alimentação justificava-se mais pela ignorância na hora de comer e escolher os alimentos do que por variáveis socioeconômicas.

O quarto capítulo busca apreender aspectos da vida cotidiana de famílias de trabalhadores, estabelecendo as dinâmicas do espaço público e a esfera da vida privada; do mundo do trabalho e do matrimônio; da comunidade e da casa. Com formulários e métodos de pesquisa vindos da sociologia estadunidense, Rodrigues observa nos custos de vida com moradia, transporte, vestuário e saúde perfis de famílias da cidade em pleno processo de cosmopolitização. Atentando à renda, origem e perfis dos pesquisados dos bairros visitados é possível vislumbrar aspectos como perfil dos pesquisadores, carga de trabalho dos operários e escolaridade dos pesquisados.

O capítulo cinco reconstrói a dinâmica do trabalho das PPVs. Os questionários e cadernetas dos estudos, com intuito de calcular o valor do salário mínimo viram, sob o olhar etnográfico do historiador, meios para descortinar a privacidade e a vida material dos trabalhadores na cidade de São Paulo. A hierarquia das relações matrimoniais e os lazeres sobressaem na análise das anotações de despesas diárias das famílias. Assim, o poder masculino juntos às famílias, desavenças entre pais e filhos e a alta ocorrência do alcoolismo e do analfabetismo são alguns aspectos destacados. Gentilezas, recusas, esquecimentos e 'erros' na cooperação com as pesquisas são compreendidos como estratégias na relação das comunidades com o Estado, reafirmando o direito à privacidade e a desconfiança da eficácia das ações públicas.

No sexto capítulo observa-se um reenquadramento das pesquisas do tipo dos PPVs nos anos 1940. Os inquéritos incrementaram-se em São Paulo e em outras cidades justamente quando a vontade do Estado de conhecer e agir sobre o problema alimentar brasileiro aumentava como parte da formação de um Estado corporativo sob a égide do Estado Novo (D'Araújo, 2003). Maus tratos às mulheres e os problemas do alcoolismo, do racismo e da estratificação social interna à classe são, para o autor, aspectos do comportamento comunitário e familiar na cidade de caipiras, nordestinos e imigrantes. O modo de vida dos trabalhadores paulistanos e suas relações de vizinhança ajudaram a configurar uma consciência de classe dos trabalhadores.

A ênfase em uma duração maior, privilegiando fontes das décadas de 1930, 1950 e 1960, fez com que um evento histórico permaneça pouco trabalhado pelo autor, o impacto da economia de guerra e a decorrente carestia na capital paulista. As crises de abastecimentos e práticas de substituição de alimentos são brevemente mencionadas, sem que saibamos se as PPVs foram capazes de confirmar privações de produtos e a proporção do aumento dos gêneros alimentícios (Cytrynowicz, 2000).

Por fim, pode-se dizer que o livro é mais do que uma obra sobre São Paulo como alguma possível exceção. Não é somente de uma metropolização paulista observada em pesquisas de vida, de orçamento, inquéritos ou de políticas públicas na área de alimentação que trata o autor. Alimentação, vida material e privacidade aborda costumes, valores e moral dos trabalhadores urbanos, considerando aspectos da formação de uma comunidade científica multidisciplinar na área de nutrição com gradativo reconhecimento social, seguido de ação do poder público. Um mergulho nas categorias históricas dão complexidade à análise dessa história repleta de elementos da privacidade com espaço para tensões, variadas representações e moralismos. Enfim, o livro de Jaime Rodrigues é uma obra de referência para interessados na história de trabalhadores e da alimentação no Brasil.

REFERÊNCIAS

CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial; Edusp. 2000.
D'ARAÚJO, Maria Celina. Estado, classes trabalhadoras e políticas sociais. In: Ferreira, Jorge; Delgado, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil republicano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p.213-240. v.2. 2003.
SENRA, Nelson de Castro. O saber e o poder das estatísticas: uma história das relações dos estaticistas com os Estados nacionais e com as ciências. Rio de Janeiro: IBGE. 2005.
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. v.2. 1988.