versão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.33 supl.1 Rio de Janeiro 2017 Epub 25-Maio-2017
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00082816
El monitoreo de desigualdades raciales, sea en un plano socioeconómico o en términos de desenlaces de salud, presupone que la declaración de raza presenta estabilidad. En caso contrario, la dinámica de estas desigualdades podría resultar de una reclasificación racial, y no de procesos vinculados a inequidades socioeconómicas y de la salud. Este estudio propone una tipología de la incertidumbre racial clasificatoria (contextual -temporal, geográfica, procedimental- y muestral) y discute, a partir de la literatura y de datos secundarios nacionalmente representativos, la magnitud de la variabilidad racial, según estas cinco dimensiones. Los resultados demuestran que, por lo menos, dos de esas incertezas -geográfica y procedimental- son sustanciales, pero tienen poca influencia sobre el hiato racial de renta. Se abordan los impactos de esos resultados sobre la existencia y la extensión de las inequidades raciales en salud y se concluye que la estructura de las desigualdades entre blancos y negros es consistente, aunque el color de la piel sea volátil.
Palabras-clave: Inequidad Social; Distribución por Raza o Etnia; Factores Socioeconómicos
Iniquidades raciais no Brasil são notórias. Seja qual for a medida de desigualdade - Gini, Theil, dissimilaridade, razão ou diferença - e a condição de interesse - expectativa de vida, fecundidade, escolaridade, acesso ao ensino superior, taxa de homicídio, prestígio ocupacional ou renda per capita - brancos consistentemente possuem recursos ou ocupam posições hierarquicamente melhores do que pretos e pardos 1,2,3,4,5,6,7. A vantagem conferida aos brancos, relativamente aos pardos e pretos, é também persistente ao longo do tempo, ainda que evidência recente sugira tendência de redução no Brasil 8,9. Até os anos 2000, os brancos apresentavam, em média, renda domiciliar per capita 2,4 vezes maior do que a dos pardos e pretos juntos (doravante negros). Em 2008, essa razão diminuiu para 2,1. Se essa redução mantivesse seu ritmo, a igualdade racial de renda seria atingida apenas em 2029 8.
Seria a redução dessa desigualdade decorrente de uma maior aproximação econômica entre brancos e negros? Estaria a situação dos negros melhorando ou, pelo menos, se tornando mais parecida à dos brancos? A estabilidade da declaração racial seria uma pré-condição para se inferir que a desigualdade diminuiu? As incertezas da classificação racial amplamente constatadas na literatura sociológica corroboram a imprecisão de dados raciais socialmente construídos e “politicamente orientados” 10,11. Tais imprecisões, entretanto, só se tornam problemáticas a partir das suas consequências e usos. A variável raça/cor não é, em si, uma categoria estática, tampouco inútil para a percepção de realidades estatisticamente construídas e utilizadas para a alocação de benefícios compensatórios definidos a partir dessas construções. A fluidez e a multidimensionalidade da raça (percebidas como inconsistências) indicam o dinamismo do construto, mas pouco auxiliam na compreensão de suas causas e consequências 12. A raça, além de ter se tornado um critério condicionante de políticas públicas, é também responsável por definir nossas percepções de estratificação e injustiça social. A noção de desigualdade racial, afinal de contas, só existe quando se estabelece uma distribuição de recursos entre grupos de cor (estatisticamente variáveis).
O fato é que, se os grupos raciais forem instáveis, isto é, se aqueles que antes eram brancos classificarem-se como negros (e vice-versa), a desigualdade racial se modificaria a partir da reclassificação de pessoas entre os grupos raciais categorizados, ao invés da redistribuição de renda entre brancos e negros assumidos como racialmente estáveis. Por exemplo, a desigualdade racial de renda aumentaria se os pardos - os quais compõem numerosa categoria racial que tradicionalmente expressa elevado grau de ambiguidade classificatória -, especialmente os pardos pobres, passassem a se reclassificar como pretos ou se os pardos ricos passassem a se declarar como brancos 13,14. Em outras palavras, tal dinâmica classificatória conduziria a um incremento na desigualdade racial sem que houvesse qualquer realocação de recursos entre as categorias em questão. Os recursos não seriam redistribuídos, mas a cor da pele sim. Na presença de reclassificação racial, o entendimento das desigualdades dependeria, então, não apenas da distribuição diferencial de recursos entre os grupos raciais, mas também da sua estabilidade classificatória.
Seria esse o caso brasileiro? Quão inconsistentes seriam as medidas de desigualdade por conta da reclassificação racial da população? Quão estáveis são os grupos raciais em termos de sua classificação em determinadas categorias? A resposta a essas perguntas depende, em parte, da dimensão na qual se examina a fluidez da cor da pele. No presente artigo, discorremos sobre cinco dimensões: contextual, temporal, geográfica, procedimental e amostral. Essas dimensões, ainda que não excludentes e simultaneamente observadas, fornecem um arcabouço teórico para sistematizar os fatores atrelados às variações raciais de uma população. Tal tipologia tem o intuito de orientar uma agenda de investigação futura acerca dos impactos que a incerteza racial classificatória pode ter sobre medidas de desigualdade racial. A estrutura conceitual proposta inaugura a questão no campo da saúde coletiva e, ao enfatizar os componentes macroestruturais da reclassificação racial e seu impacto sobre a desigualdade, transcende a abordagem multidimensional da raça individualmente experimentada, recentemente sugerida pelas ciências sociais 12. Embora a tipologia apresentada destaque a incerteza classificatória racial, argumentamos que poderia ser igualmente útil no estudo de outros tipos de classificação social, tais como religião, etnia, orientação política, classe social etc. A Figura 1 sintetiza a inter-relação entre as cinco dimensões da incerteza racial classificatória aqui propostas e o seu impacto sobre as desigualdades raciais.
Primeiro, conceituaremos as dimensões atreladas à incerteza das fronteiras raciais, revisando evidência recente de reclassificação da cor da pele em contextos específicos (e.g., universidades) e nas esferas temporal, regional, procedimental e amostral. Em seguida, mostraremos que, apesar de a incerteza ou ambiguidade racial ser passível de detecção, ela não é necessariamente relevante para determinarmos a magnitude das desigualdades. Salienta-se que as expressões “raça”, “cor” e “cor da pele” são empregadas de maneira intercambiável ao longo do texto tanto por representarem categorias êmicas quanto por constituírem categorias de análise da presente argumentação. Ademais, adota-se a denominação “negros” como indicadora da agregação de pardos e pretos, seguindo a bibliografia consultada durante a revisão da literatura. Embora tal procedimento possa ser eventualmente problemático e questionável 15,16, frequentemente está amparado nas semelhanças entre pretos e pardos em termos de renda e escolaridade, na manutenção de poder estatístico em análises quantitativas e no fato de as políticas públicas atualmente tratarem ambos os segmentos da população de forma conjunta no país.
A primeira das dimensões, a contextual, refere-se a situações nas quais há reclassificação racial em função do contexto macrossocial no qual as pessoas estão inseridas. O contexto refere-se à influência dos fatores institucionais, socioeconômicos, interacionais e culturais que afetam, conscientemente ou não, o processo de identificação racial. Essa dimensão macrossocial abrange e influencia as demais, estando representada pela área cinza da Figura 1. Variações raciais ao longo do tempo e do espaço, por exemplo, ocorrem porque estão sujeitas a influências institucionais específicas que operam, em alguma medida, à revelia das preferências individuais. A influência institucional se manifesta de forma difusa por meio da consolidação de estruturas de poder que se reproduzem e deixam legados de superioridade de uma raça sobre a outra, contribuindo assim para a eventual reclassificação racial daqueles que são discriminados ou que não têm acesso preferencial a benefícios gerados pelo Estado e organizações 17,18. A interação entre entrevistado e entrevistador, permeada pelos seus respectivos atributos, também faz parte da dimensão contextual. O nome, a entonação, o sotaque, a habilidade verbal, a ancestralidade, a classe social e a percepção fenotípica mútua também influenciam a auto e heteroclassificação da cor da pele 12,15. O contexto macrossocial é amplo e engloba todas as influências que vão além do âmbito individual, mas que, ao mesmo tempo, o permeia. O contexto macrossocial é, assim, o todo que vai além das partes, e cujo efeito é percebido tanto ao longo do tempo quanto do espaço.
Telles 19 demonstra que, durante os anos 1990, os brancos e os pretos aumentaram a sua participação relativa no conjunto da população brasileira: enquanto os pardos reduziram de 42,1% para 38,9% entre os censos demográficos de 1991 e 2000, os brancos e os pretos passaram de 52,1% para 53,4% e de 5% para 6,1% no mesmo período, respectivamente. A frequência relativa dos pardos, entretanto, começou a aumentar novamente a partir dos anos 2000, retomando um processo de empardecimento populacional observado entre as décadas de 1940 e 1990, que foi também acompanhado por um ligeiro incremento dos pretos nos últimos anos 20. Telles entende a maior tendência de a população se classificar na categoria parda como sendo o resultado da recente valorização social que a mesma registrou no país. Segundo ele, essas pessoas podem ter se classificado como brancos no passado numa tentativa de se afastar de uma categoria racial estigmatizada; atualmente, não hesitariam em se identificar como negros em função de haver determinados incentivos sociais para tanto, incluindo as políticas de ação afirmativa implementadas no Brasil a partir dos anos 2000.
Na mesma direção, estudos realizados na Universidade de Brasília (UnB) mostram que a adoção de cotas raciais, a partir de 2004, teve efeito significativo sobre a raça autodeclarada dos candidatos 21,22. Com base em dados prospectivos, os autores desses trabalhos constataram que após a universidade reservar 20% das vagas para os candidatos autodeclarados negros, a propensão de os mesmos se identificarem com as categorias mais escuras aumentou significativamente, evidenciando o efeito indutor da ação afirmativa sobre a construção da fronteira racial 23. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), também há indícios de que processo similar tenha ocorrido. A política de bonificação adotada a partir de 2009, segundo a qual candidatos egressos de escola pública e autodeclarados negros teriam um acréscimo de 15% em sua nota de admissão, parece ter afetado de modo semelhante a classificação racial. Entre 2008 e 2009, o total de inscritos no vestibular se manteve praticamente o mesmo, mas a composição racial do número de inscritos se alterou. Houve redução percentual de candidatos autodeclarados brancos e aumento dos autodeclarados negros. Isso “pode ter ocorrido em função de um efeito de indução na declaração racial gerado pela possibilidade de obtenção de bônus no vestibular da UFMG” 24 (p. 323). Entretanto, um aumento absoluto de inscrições dos negros e a concomitante redução dos brancos também é uma hipótese que, apesar de improvável, precisa ser refutada.
Ainda sob uma perspectiva contextual, mas restrita ao âmbito das relações interpessoais como condicionantes da classificação racial, um estudo conduzido no Sul do Brasil demonstrou que homens tenderam a se classificar mais como pardos do que como pretos, quando abordados por entrevistadoras pretas, relativamente às brancas 15. As raças registradas podem ser tão diversas quanto o número de observadores e contextos nos quais elas são observadas. Ainda que a raça seja tipicamente registrada uma única vez, pode-se imaginá-la como específica de cada momento, de cada processo observacional 12.
A dimensão temporal da incerteza racial inclui, dentro de um mesmo contexto, as variações classificatórias observadas ao longo do tempo que vão além da dinâmica reprodutiva dos grupos envolvidos. Aqui, são inseridas as flutuações devidas a processos de reclassificação, em função das condições contextuais vigentes (política, economia, cultura, influência midiática etc.).
Empiricamente, a dimensão temporal envolve classificação racial dos mesmos sujeitos em diferentes momentos no tempo. Isso implica, portanto, se valer de pesquisas com uma perspectiva longitudinal, que acompanhem os participantes por um período mínimo de tempo e sejam capazes de motivar a classificação racial em duas ou mais ocasiões de contato com os mesmos. O estudo de Penner & Saperstein 25, realizado nos Estados Unidos, é bastante ilustrativo nesse sentido, pois se baseou na classificação racial, realizada em intervalos regulares de um ou dois anos, de 12.686 indivíduos entre 1979 e 2002. Em meio às análises, os referidos autores observaram que, em geral, 6% dos entrevistados tiveram sua classificação racial modificada de uma coleta de dados para a outra, passando, por exemplo, de branca (white) para negra (black) em função de uma série de marcadores sociais de status, como desemprego, encarceramento e empobrecimento. Tal valor foi expressivamente mais alto do que aquele observado para outras características dos participantes; cerca de 0,3% deles, por exemplo, alterou a sua classificação sexual no mesmo período de acompanhamento, o que representa um valor 20 vezes menor.
No caso brasileiro, há evidência da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrando que cerca de 23% da população residente em regiões metropolitanas alteraram a sua cor da pele em um intervalo temporal de nove meses 20. Assim, os estudos longitudinais (coorte) conduzidos por investigadores no Brasil 20,26 oferecem uma oportunidade interessante para que a dimensão temporal da incerteza racial seja mais detidamente explorada no país. Isso, pois, diferentemente do que vem sendo realizado em outros locais 27,28,29, enquanto não conhecermos os fluxos de transição inter-racial no Brasil, dificilmente saberemos o impacto da reclassificação temporal sobre os indicadores de desigualdade, expectativa de vida ou qualquer outro resultado socioeconômico ou de saúde.
A dimensão geográfica ou regional da incerteza racial refere-se à propensão diferenciada de reclassificação de pessoas residentes em diferentes regiões do país, mesmo assumindo-se que todas as demais condições influentes do processo classificatório se mantenham estáveis. Nessa dimensão, inclui-se a influência da composição racial local sobre o processo classificatório. Espera-se que, em locais onde há proporção elevada de brancos, os indivíduos com maior potencial para mudanças em sua classificação racial (por exemplo, filhos pardos de casamentos inter-raciais) tendam a se classificar como brancos. Por outro lado, regiões com maior proporção de pretos podem fazer com que essas pessoas se identifiquem com este grupo.
Constata-se esse tipo de incerteza ao se examinar as propensões de reclassificação racial em diferentes locais do Brasil. Se, em diferentes regiões do país, existem distintas probabilidades de reclassificação racial, isto evidenciaria a incerteza espacial da raça. Para investigar tal hipótese, seguimos as ideias apresentadas por Vitor Miranda em sua tese de doutorado 20 e pareamos os dados da PME no tempo 30. O desenho de painéis rotativos permite que, potencialmente, o mesmo indivíduo seja localizado em dois momentos distintos: na primeira entrevista e nove meses depois. Com esses dados, é possível conhecer a propensão (e a proporção) das pessoas que alteraram sua classificação de cor entre duas entrevistas e em diferentes locais do Brasil.
Para ilustrar tal processo, a Figura 2 apresenta as probabilidades dos que se classificaram como pardos na primeira entrevista se reclassificarem como brancos (ou pretos) na segunda em cada uma das seis regiões metropolitanas cobertas pela PME. De modo geral, a proporção de pardos que embranquecem de uma entrevista para a outra tende a ser maior em locais que apresentam maior proporção de brancos. A exceção à tendência é o Rio de Janeiro, em que a proporção de pardos que se reclassificam é inferior a 5%, apesar de esta região ter a terceira maior proporção de brancos e a segunda maior de pretos dentre todas as investigadas.
Figura 2 Probabilidades preditas de os pardos se reclassificarem como brancos ou pretos em grandes regiões metropolitanas do Brasil.
Porto Alegre (Rio Grande do Sul), por outro lado, é a região em que pardos são mais propensos a alterar a sua raça para branco (cerca de 40%) ou preto (cerca de 15%) entre as duas entrevistas. Essa é a região metropolitana com a maior proporção de brancos (90%), mas também com a menor de pretos (5%). É possível que a maior reclassificação dos pardos em Porto Alegre seja um reflexo de fronteiras raciais mais rígidas e, consequentemente, de uma menor adesão à categoria dos pardos. As fronteiras raciais, portanto, seriam mais permeáveis e influenciáveis pela composição racial local em algumas regiões do que em outras. O impacto dessa dimensão espacial sobre a magnitude das desigualdades raciais, entretanto, será examinado à frente.
A quarta dimensão da incerteza racial refere-se à forma como a informação sobre a cor da pele é coletada. Métodos distintos de coleta - perguntas abertas, semiestruturadas, categóricas, com respostas autodeclaradas ou dadas por terceiros - conduzem a diferentes composições raciais. A essa incerteza racial, derivada do método de mensuração utilizado, atribuímos o nome de incerteza procedimental.
Como as pessoas mudam a sua classificação de cor e como a composição racial do país se alteraria, caso a informação sobre raça/cor fosse produzida de diferentes formas? Quão consistentes são os grupos raciais, quando se mede a raça com base em perguntas alternativas àquela apresentada pelo IBGE? Muniz 31, Bailey et al. 32 e Loveman et al. 33 responderam a essas perguntas utilizando dados da Pesquisa Social Brasileira (PESB) de 2002, na qual foi coletada a informação racial de quatro formas: (1) a partir da declaração racial do entrevistado com base nas categorias do IBGE; (2) a partir de fotografias, sendo que o entrevistado deveria selecionar aquela com a qual mais se identificou; (3) a partir da percepção do entrevistador; e (4) a partir da cor do ascendente direto mais escuro. Os resultados dessa investigação mostraram que “metade (27+19+3) dos entrevistados se classifica ou é classificada de maneira consistente, isto é, de modo independente da metodologia utilizada na coleta ou na construção da variável raça/cor” 31 (p. 261). A outra metade, portanto, é composta por pessoas cuja raça é incerta em função da metodologia utilizada em sua construção.
Dados de uma pesquisa de base populacional conduzida em um município do extremo Sul do Brasil 13,15 - Pelotas (Rio Grande do Sul) - também ilustram esse tipo de incerteza. Em 2005, uma amostra probabilística de 3.136 indivíduos adultos com 20 anos de idade ou mais, residentes em área urbana da referida cidade, foram entrevistados em seus domicílios por ocasião de um amplo inquérito epidemiológico realizado periodicamente no local. Os entrevistadores foram solicitados a classificar os participantes do estudo de acordo com as cinco categorias censitárias para a determinação da cor (branca, parda, preta, amarela ou indígena), em meio a entrevistas face a face e empregando questionários padronizados e pré-codificados. De forma semelhante, os participantes igualmente foram motivados a se classificar em termos de cor, tendo como referência as mesmas categorias mencionadas. A distribuição da amostra conforme cor, determinada pelo entrevistador, foi a seguinte: 84% de brancos, 4,5% de pardos, 11,3% de pretos e 0,2% de indígenas 13. Por sua vez, a autoclassificação racial produziu 81,6% de brancos, 6,6% de pardos, 10,8% de pretos, 0,4% de amarelos e 0,6% de indígenas 13. Essas diferenças entre os valores derivados da classificação pelo entrevistador e pelo próprio entrevistado são atribuíveis à variabilidade ou incerteza procedimental.
A quinta e última dimensão, a da variabilidade amostral, é puramente estatística. Nessa, observa-se alguma variabilidade na composição racial devido à utilização de diferentes amostras. Mesmo que o período e o local de interesse não se alterem, os resultados populacionais inferidos com base em amostras aleatórias irão se alterar. A ideia é simples e remete a um dos princípios fundamentais da estatística frequentista: diferentes amostras conduzem a diferentes resultados. Necessita-se, portanto, mensurar a incerteza atrelada a esse processo para termos alguma confiança sobre os resultados obtidos.
Tradicionalmente, o recurso estatístico mais amplamente empregado no dimensionamento desse tipo de incerteza consiste na estimação de intervalos de confiança para valores de interesse calculados baseando-se em amostras. Os intervalos de confiança correspondem a uma faixa de valores dentro da qual se espera que o parâmetro populacional esteja representado com algum grau de certeza. Ao verificar, por exemplo, que a frequência de autoclassificados pretos em Pelotas no ano de 2005 13 foi de 10,8%, com um intervalo de 95% de confiança que se estende de 8,7% a 12,8%, os pesquisadores estão afirmando o seguinte: na amostra investigada, a frequência de pretos atingiu 10,8%, mas há 95% de probabilidade de que a verdadeira proporção populacional esteja entre 8,7% e 12,8%. Ainda, se fosse possível sortear inúmeras amostras da mesma população de Pelotas em 2005, deveríamos esperar que cada uma delas produzisse um valor ligeiramente distinto para a proporção de pretos, mas que em 95% das vezes os intervalos de confiança gerados por cada amostra incluiriam o parâmetro da população de onde as amostras foram sorteadas. Esse mesmo raciocínio se aplica não somente a uma medida direta como essa - a da proporção de pretos no município -, mas também a estimativas de desigualdades derivadas das comparações entre grupos. Desse modo, a principal função da incerteza amostral é fazer com que o pesquisador reconheça que as medidas de desigualdade racial variam em função das amostras a partir das quais foram calculadas. Embora haja essa flutuação amostral, entende-se que a mesma é aleatória em amostragens probabilísticas e pode ser quantificada usando-se o intervalo de confiança.
Nesta seção, mostraremos que as incertezas envolvidas em duas das cinco dimensões propostas não são suficientes para alterar a magnitude da desigualdade racial. Discorreremos, primeiro, sobre a influência da incerteza procedimental e, em seguida, sobre a geográfica.
A incerteza procedimental apresenta pouco efeito sobre o tamanho das desigualdades raciais, tanto as de consumo e renda 34 quanto as de saúde 35. Quando as pessoas cuja raça se altera em função da metodologia de coleta (foto, entrevista, entrevistador ou ascendência) são excluídas do cálculo da desigualdade de consumo inter-racial, esta aumenta apenas sete pontos porcentuais, demonstrando que a desigualdade entre brancos e não brancos é pouco influenciada pela volatilidade classificatória do método de coleta utilizado. O percentual da desigualdade de consumo inter-racial sobre a desigualdade total aumenta de 11% para 18%, quando excluímos da amostra todos os indivíduos cuja raça coletada não foi a mesma nas quatro metodologias utilizadas pela PESB de 2002. Isso também ocorre com a desigualdade inter-racial de renda, que passa de 13% para 19% da desigualdade total observada. Esses aumentos, entretanto, não são estatisticamente significativos. Esse resultado corrobora a evidência anteriormente apresentada 32,33. A irrelevância da incerteza procedimental sobre medidas de desigualdade, entretanto, não é suficientemente robusta para ser consensual. A importância do modo de classificação sobre medidas de desigualdade parece depender não só de escolhas metodológicas, mas também do período, do local e da variável escolhida. Nos Estados Unidos, por exemplo, jovens percebidos como pretos possuem maiores chances de serem detidos do que os que não se percebem como tais 36. O hiato de renda racial também foi reportado como maior quando a raça foi heteroclassificada do que quando autoclassificada, tanto nos Estados Unidos 37 quanto no Brasil 13,38.
No âmbito das desigualdades raciais relacionadas a condições específicas de saúde, os dados de Pelotas 13,15 também são úteis para demonstrar que a incerteza procedimental é importante, mas tem efeito reduzido sobre o quanto brancos e negros estão apartados. Conforme já mencionado, além de terem sido classificados pelos entrevistadores, os participantes desses estudos foram igualmente solicitados a escolher uma entre as cinco categorias de raça/cor empregadas nos censos demográficos brasileiros. Isso criou uma oportunidade única para que a distribuição de condições e comportamentos em saúde pudesse ser cotejada tanto conforme raça autoclassificada quanto identificada pelo entrevistador para os mesmos entrevistados. Em 2005, a frequência de tabagismo, por exemplo, foi de 25,9% em brancos e 31,2% em negros, quando a heteroclassificação de cor foi empregada. Por sua vez, com a autoclassificação de raça, o tabagismo foi de 25,8% entre os brancos e 31% entre os negros. Resultados semelhantes foram observados para a dor dentária, cujas frequências foram de 16,5% e 16,2% para brancos hetero e autoclassificados, e de 24% e 24,1% para negros hetero e autoclassificados. Em suma, a mudança nos procedimentos de classificação racial (autoclassificação ou heteroclassificação) não foi acompanhada de qualquer impacto sobre o tamanho da desigualdade racial nessas condições ou comportamentos de saúde, diferentemente do que foi encontrado em outro contexto 39.
Por sua vez, o papel da incerteza geográfica sobre as desigualdades raciais pode ser mensurado respondendo-se à seguinte questão: Qual seria a variação da desigualdade de renda inter-racial se os brasileiros fossem classificados segundo os padrões de percepção racial das regiões Sul e Norte do país? Para responder a essa pergunta, utilizamos uma metodologia consagrada de decomposição matemática da desigualdade 40 para simular como a distribuição de renda se alteraria caso os brasileiros fossem racialmente classificados conforme os padrões do Sul e do Norte do país. Os resultados de tal simulação são apresentados na Figura 3.
A coluna à esquerda da Figura 3 demonstra que 88,6% da desigualdade total podem ser atribuídas a diferenças de renda entre pessoas pertencentes ao mesmo grupo racial. O outro componente (11,4%) mostra o percentual da desigualdade atribuível ao diferencial de renda média entre pessoas brancas e negras. As demais colunas representam simulações estatísticas nas quais fixam-se atributos individuais na sua média e variam-se somente as características ou coeficientes cujo efeito se quer estudar (no caso, a região). Se a raça declarada fosse função somente dos atributos considerados (cor da pele dos pais, por exemplo), o componente inter-racial da desigualdade aumentaria de 11,4% para 16,4%. Esses percentuais equivalem a rendas per capita médias 2,2 e 2,5 vezes maiores para brancos do que para os negros. Se a raça fosse tratada como variável latente, isto é, somente como função de atributos sociodemográficos e econômicos dos pais e do próprio indivíduo, a desigualdade inter-racial seria, portanto, ligeiramente maior do que de fato se observou em 2010.
As simulações realizadas com base nos modelos especificados demonstram que, se as pessoas fossem classificadas conforme as preferências raciais (ou coeficientes estimados para a amostra) da Região Sul, o peso do componente inter-racial na desigualdade total seria pouco menor (15,7%) do que quando o padrão nortista de classificação racial é utilizado (18%). Esses percentuais representam, respectivamente, rendas per capita médias 2,5 e 2,6 vezes maiores para os brancos do que para os não brancos. Em suma, as simulações mostram que se a classificação racial adotada no país se aproximasse daquela realizada no Norte, a desigualdade racial seria ligeiramente maior do que a de fato constatada. Alternativamente, se o padrão racial classificatório do Sul do país fosse adotado, a desigualdade racial tenderia a ser um pouco menor do que a esperada. As diferenças apresentadas pelas simulações, no entanto, apesar de evidenciarem que a desigualdade racial é também função do padrão racial classificatório característico de alguma região do país, não alteram substantivamente o persistente hiato de renda entre brancos e negros.
Por ser socialmente construída, a variável raça é permeada por cinco incertezas: quatro atreladas ao contexto e uma às amostras escolhidas para se medir a cor da pele de públicos-alvo específicos. A incerteza contextual inclui o tempo, o espaço, os métodos de captação e todos os demais fatores institucionais e interpessoais atrelados ao processo de reclassificação da cor da pele. Por sua vez, a incerteza amostral refere-se a flutuações aleatórias intrínsecas ao processo de amostragem.
Além de sugerir um arcabouço teórico para as dimensões atreladas à variação racial, os resultados apresentados forneceram respostas para as seguintes questões: Quão variável é a raça ou cor de um indivíduo? Quais são as consequências dessa variação racial sobre a interpretação da desigualdade? Se essas variações não existissem, ou se os racialmente inconsistentes fossem ignorados no cálculo das desigualdades estas se alterariam substantivamente?
Entre 1940 e 2010, a participação dos pretos e pardos na população brasileira passou de 35% para 50%. A dinâmica de composição desses grupos, entretanto, não se deve unicamente aos diferenciais reprodutivos dos mesmos, mas também ao processo de reclassificação racial. Entre 1990 e 2010, por exemplo, a população dos pretos aumentou em mais de 30% em função de processos ligados à reclassificação da cor da pele 19,41. Essa evidência ilustra, portanto, a incerteza contextual e temporal atrelada à raça.
Mostramos, com base nos dados da PME do IBGE, que pessoas inicialmente autoclassificadas como pardas são mais propensas a se reclassificarem como brancas em localidades que têm maior concentração de brancos. Em um intervalo de nove meses, a probabilidade de pardos se reclassificarem como brancos em Porto Alegre é, por exemplo, pelo menos quatro vezes maior do que em Salvador (Bahia) ou Recife (Pernambuco). A variação nas propensões classificatórias inter-regionais demonstra o tamanho das incertezas geográficas da raça.
No que tange à incerteza racial procedimental, evidência derivada da PESB de 2002 mostra que cerca de metade das pessoas da amostra muda de cor quando se altera o modo de captação da variável raça. Somente 3% da população total, por exemplo, é “preta” tanto na metodologia de coleta do IBGE quanto naquelas baseadas na percepção do entrevistador, em fotografias e na ascendência. Esses percentuais de consistência racial classificatória são iguais a 27% para brancos e 19% para pardos 31.
Dos tipos de incerteza racial considerados - contextual (temporal, geográfica, procedimental) e amostral - avaliamos qual seria o impacto de dois sobre a construção das desigualdades. Os resultados sugerem que nem a incerteza geográfica, nem aquela atrelada ao método de classificação (procedimental) alteram de forma substantiva a magnitude das desigualdades de renda, escolaridade e consumo entre as raças. O impacto das incertezas contextuais, especificamente aquelas vinculadas à dimensão temporal, sobre a dinâmica das desigualdades raciais, entretanto, ainda precisa ser investigado.
A mensagem chave deste trabalho foi mostrar que incertezas raciais existem em diferentes dimensões e em diferentes magnitudes. A existência dessas incertezas é o que qualifica a raça como variável socialmente construída, isto é, como o produto de ideais e interações, ao invés de uma característica permanente e imutável 15. As incertezas da mesma, entretanto, parecem não ser suficientes para alterar o entendimento de outra realidade derivada e também socialmente construída, a das desigualdades por raça ou cor. Em duas das cinco dimensões da incerteza racial avaliadas, não constatamos alterações dignas de nota na desigualdade de renda, de escolaridade, consumo e nem na de saúde.
Sendo a raça uma característica putativa contextual, ela poderia não ser “um demarcador confiável para a atribuição de benefícios e para a identificação de diferenças” 42 (p. 278). O presente estudo, no entanto, mostrou que apesar de a raça estar permeada de incertezas que oscilam em função do contexto, do tempo, da amostra, do espaço e do método, tais variações parecem não comprometer o retrato geral da desigualdade racial. Dado que as desigualdades raciais aqui examinadas se vinculam a dimensões socioeconômicas e de consumo, é razoável supor que tais disparidades também se mantêm quando do escrutínio de condições e comportamentos em saúde. Ora, estando as desvantagens econômicas, educacionais e de consumo na base das iniquidades sociais em saúde, não haveria razão para supor que os privilégios conferidos aos brancos também não se reproduziriam consistentemente no âmbito da saúde. Uma demonstração disso foi contemplada no presente artigo, no qual se constatou o impacto desprezível da incerteza procedimental sobre diferenciais entre brancos e negros no que concerne ao tabagismo, ao uso abusivo de álcool e à dor dentária.
Há ainda que se investigar o efeito das demais incertezas classificatórias, sobretudo aquelas que ocorrem ao longo do tempo, sobre as iniquidades raciais em saúde. Ademais, cabe reconhecer que há uma relativa sobreposição entre as dimensões postuladas em nossa tipologia, o que provavelmente dificulta o exame empírico e isolado dos efeitos de cada uma sobre as desigualdades raciais. Não menos importante é assinalar que os resultados apresentados ao longo do texto podem não ser prontamente generalizáveis para outros contextos, além do brasileiro. De todo modo, mostrou-se, aqui, que desigualdades raciais prevalecem e são percebidas, não tanto como função estrita de incertezas raciais e oscilações metodológicas, mas como resultado de mecanismos perniciosos de manutenção de diferenças, cuja existência e efeitos gostaríamos de mitigar.