On-line version ISSN 1982-0194
Acta paul. enferm. vol.29 no.4 São Paulo July/Aug. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201600063
A diretriz do acolhimento foi introduzida nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) em meados da década de 90, buscando, além de ampliar o acesso, viabilizar mudanças no desenvolvimento do trabalho em saúde, ao modificar as relações entre trabalhadores, gestores e usuários para a promoção de vínculos, corresponsabilização e resolubilidade.(1) Entretanto, o debate em torno do acolhimento se intensificou a partir de 2000, como proposta para a inversão da lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde, de modo a assumir sua missão inicial, qual seja acolher, escutar e dar uma resposta positiva, capaz de resolver os problemas de saúde da população.(1)
Quanto ao processo de trabalho, a diretriz do acolhimento busca deslocar o eixo central do médico para uma equipe multiprofissional, a qual se encarrega da escuta qualificada do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde e de transformar a relação entre trabalhador e usuário, baseando-se em parâmetros humanitários, de solidariedade e cidadania. Este aspecto vem ao encontro das discussões atuais que vem ocorrendo a respeito da construção social da Atenção Primária à Saúde (APS), buscando romper com alguns paradigmas convencionais prevalecentes, como por exemplo, a adoção de um modelo de gestão de saúde da população ao invés de um modelo de gestão de oferta, historicamente construído.(2)
Para o Ministério da Saúde existem várias definições de acolhimento o que revela os múltiplos sentidos e significados atribuídos a este termo. Ainda segundo este órgão, o acolhimento se revela menos no discurso sobre ele do que nas práticas concretas. Nesse sentido, em vez (ou além) de perguntar se, em determinado serviço, há ou não acolhimento, talvez seja mais apropriado analisar como ele se dá.(3) Diante do exposto este estudo tem como objetivo compreender, na percepção dos enfermeiros, como ocorre o processo de acolhimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de uma Regional de Saúde no Distrito Federal.
Espera-se como finalidade desse estudo contribuir para as discussões a respeito da organização dos serviços de APS na regional de saúde, particularmente no que diz respeito ao acolhimento.
Estudo exploratório, com abordagem qualitativa, desenvolvido em 10 das 11 UBS, existentes na regional. Os critérios adotados para a seleção das unidades se deu em função daquelas onde o acolhimento estava implantado. Foram convidados para participar do estudo os enfermeiros que trabalhavam realizando o acolhimento, independente do tempo em que o mesmo havia sido implantado na unidade.
A coleta de dados empíricos foi realizada no período entre abril a julho de 2014, por meio de entrevistas individuais semiestruturadas em ambiente reservado na própria UBS, com a seguinte questão norteadora: Você poderia me contar como foi implantado e como funciona o acolhimento aqui nesta UBS? Cada entrevista foi codificada utilizando a denominação Sujeito seguido de algarismo arábico 1, 2, 3,4,5,6,7,8,9,10.
Após o consentimento do profissional em participar da pesquisa por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi realizada a entrevista, as quais foram gravadas e posteriormente transcritas, mantendo o conteúdo literal das falas. Na análise dos dados, foi adotada a técnica da Análise de Conteúdo proposta por Bardin.(4)
O estudo foi registrado na Plataforma Brasil sob o número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 25086814.0.0000.5553.
Participaram das entrevistas dez enfermeiros, sendo uma por UBS, as quais eram responsáveis pelo acolhimento. Houve predomínio do sexo feminino (nove enfermeiros), com faixa etária variando entre ≥26 a <61 anos; tempo de formação em média 12 anos e 6 meses, variando de ≥3 a <33 anos; tempo de trabalho na unidade em média de 3 anos e 1 mês, variando de ≥3 meses a <14 anos; e tempo de trabalho no acolhimento em média de 3 anos e 4 meses, variando de ≥2 meses a <14 anos.
Ao analisar o conjunto das falas dos profissionais, verifica-se que o acolhimento tem estreita ligação com a forma de organização da rede local de serviços, envolvendo recursos humanos, recursos físicos e ambientais. Nesse sentido, apreendeu-se como categorias empíricas, o acesso e o processo de trabalho, conforme quadro 1.
Quadro 1 Categorias empíricas e as falas dos enfermeiros
Acesso dos usuários aos serviços de saúde |
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“[...] os pacientes acabam chegando aqui na madrugada, porque existe um número de vagas, eles precisam conseguir um espaço nessa fila. Então 5 da manhã já tem paciente chegando. Aí há risco de violência, há pacientes idosos que não podem sair nesse horário, há uma série de inconvenientes para o paciente nessa forma[...]” (sujeito 3) |
“[...] se o acolhimento funcionasse, se nós tivéssemos estrutura para isso [...] o acolhimento seria o momento que quando ele precisasse, ele viria aqui [...] sem necessitar de ficar numa fila, de madrugada.” (sujeito 05) |
“[...] onde ele chegar, onde ele for atendido, ele vai ser acolhido, independente se ali é o local específico que ele tem que ir ou não.”(sujeito.2) |
“[...] geralmente ele chega na portaria, tem uma queixa, não tem a consulta agendada [...]”(sujeito 6) |
“[...] então o percurso do usuário vai variar de acordo com a demanda que ele te trouxer [...]” (sujeito 7) |
“A nossa porta é livre demanda, bateu é atendido.” (sujeito 10) |
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Processo de Trabalho do enfermeiro que trabalha no acolhimento |
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“O papel do enfermeiro é mais de estar orientando, de promover a saúde dele. Resolução dos problemas daquele paciente, direcionar ele, pra onde ele vai, ver se ele vai pro médico. É tentar ajudar aquele paciente, ver o problema de saúde que ele tá naquele momento.” (sujeito11) |
“[...] a gente já entendeu que não é uma sala. É todo um serviço voltado para o acolhimento.” (sujeito 2) |
“ Então eu os recebo, eu os acolho, eles podem falar, eles são recebidos dentro da sala, eles são tratados com humanidade, e algumas demandas de enfermeiro são reconhecidas por mim nesse contato. Quer dizer que eles recebem uma consulta de enfermagem e algumas das suas questões podem ser resolvidas a partir desse primeiro contato.” (sujeito 3) |
“Dentro da unidade básica protocolizado, aqui no centro... não existe classificação de risco. É a mesma coisa do acolhimento, não existe protocolo, não se segue um protocolo de classificação de risco, não tem, não existe.” (sujeito 7) |
“Eu não sei te dizer que se a gente parasse pra perguntar a respeito do acolhimento no centro, o que as pessoas te diriam. Não sei se funcionaria muito bem. Elas realizam o acolhimento. Mas eu não sei te dizer se elas conhecem como isso.” (sujeito 7) |
“[...] acho que já ficou claro em todas as minhas falas a percepção de que dá uma diferença qualitativa pro trabalho, ela é enorme, ela é clara mesmo.” (sujeito 2) |
“eu vejo muitos benefícios com relação ao acolhimento, [...] a questão da organização, a questão até do acolhimento não só com relação ao usuário, mas com relação à equipe. pois quando é feito um trabalho de sensibilização a gente entende o acolhimento. até as relações interpessoais mudam, é diferente.” (sujeito 5) |
“o primordial no acolhimento é a escuta qualificada, é ouvir e definir se ele precisa de um atendimento, se é médico, se é de enfermagem, se às vezes é uma procura que não é daqui da nossa unidade, é pra uma especialidade.” (sujeito 6) |
“o acolhimento a gente faz mais ou menos dentro, a gente ainda não tem muito bem estruturado, mas a gente faz mais ou menos dentro da classificação de risco. inclusive existe muita pouca literatura de acolhimento na atenção primária. então o atendimento é priorizado pelo risco, de saúde do paciente. a gente fez um protocolo aonde tem os critérios, mas não é bem ainda um protocolo da unidade. [...]não existe um fluxo oficializado não, a gente vai mais pela necessidade mesmo.” (sujeito 9) |
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), publicada em 2006, apresenta dentre as características do processo de trabalho das equipes da Atenção Básica, a implementação das diretrizes da Política Nacional de Humanização, incluindo o acolhimento.(5)
Na revisão da PNAB, Portaria N. 2.488 de 21 de outubro de 2011, o acolhimento continua presente enquanto característica do processo de trabalho das equipes, sendo recomendado que seja realizado com escuta qualificada, classificação de risco e em uma sala multiprofissional de acolhimento à demanda espontânea com avaliação de necessidade de saúde e análise de vulnerabilidade tendo em vista a responsabilidade da assistência resolutiva à essa demanda e o primeiro atendimento às urgências.(6)
Aproximando o conceito de acolhimento para prática em saúde, podemos compreender que é uma ferramenta que possibilita garantir acesso de maneira solidária ao usuário do serviço de saúde.(7) Ele pode ser utilizado como um dispositivo interrogador das práticas cotidianas, permitindo captar ruídos nas relações que se estabelecem entre usuários e trabalhadores com o fim de alterá-las, para que se estabeleça um processo de trabalho centrado no interesse do usuário. Assim, o acolhimento constitui-se em tecnologia para a reorganização dos serviços, com vistas à garantia de acesso universal, resolubilidade e humanização do atendimento.(8)
A partir desse estudo observou-se que ainda prevalece o trabalho em saúde nos moldes tradicionais, centrados na consulta médica, por meio da distribuição de fichas para demanda espontânea. Dessa forma muitos usuários ainda deixam a unidade de saúde sem resolver seu problema. Portanto, nestes casos, a proposta do acolhimento não foi contemplada, já que se estabelece número fixo de vagas, e não atende a necessidade da população. É importante ressaltar que nem todos os usuários que buscam a UBS precisam de atendimento médico, acreditando muitas vezes que sua demanda somente será solucionada por um profissional. Por isso, a importância do acolhimento, pois pode orientar e direcionar o atendimento apropriado à necessidade apontada pelo usuário.
Entretanto, foram identificadas nas falas dos enfermeiros, tentativas de atenuar esse problema a partir de propostas locais de reorganização que buscam reverter a lógica do atendimento de quem chega primeiro, para aquele que mais precisa. Desta forma, o acolhimento esteve presente nas falas dos sujeitos 2, 11 e 6, como estratégia para viabilizar a articulação entre o trabalhador de saúde e o usuário, com a abertura para o diálogo, destacando o comprometimento e o vínculo, resgatando assim os princípios da universalidade, integralidade e o da equidade do SUS. Estes achados convergem com os resultados de estudo realizado(9) ao referir que o acolhimento e o vínculo entre o paciente e o profissional permitem que todo o sistema de saúde trabalhe de forma articulada, incrementando o acesso e melhora o processo de trabalho em saúde.
O acolhimento propõe inverter a lógica de organização e o funcionamento do serviço de saúde, partindo dos seguintes princípios: atender a todas as pessoas que buscam os serviços de saúde, garantindo a acessibilidade universal; reorganizar o processo de trabalho, deslocando seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional e qualificar a relação trabalhador-usuário a partir de parâmetros humanitários de solidariedade e de cidadania.(10)
O acolhimento deve ser visto, portanto, como um dispositivo potente para atender a exigência de acesso, propiciar vínculo entre equipe e população, trabalhador e usuário, questionar o processo de trabalho, desencadear cuidado integral e modificar a clínica. Dessa maneira, é imprescindível qualificar os trabalhadores para recepcionar, atender, escutar, dialogar, tomar decisão, amparar, orientar, negociar.
Starfield(11) discute acesso e acessibilidade e mostra que, apesar de serem utilizados de forma ambígua, têm significados complementares. A acessibilidade possibilita que as pessoas cheguem aos serviços, e o acesso permite o uso oportuno dos serviços para alcançar os melhores resultados possíveis. Seria, portanto, a forma como a pessoa experimenta o serviço de saúde. O acesso como a possibilidade da execução do cuidado de acordo com as necessidades/ tem inter-relação com a resolubilidade e extrapola a dimensão geográfica, abrangendo aspectos de ordem econômica, cultural e funcional de oferta de serviços.(10)
Uma realidade ainda muito vivenciada em outros estados e não somente do Distrito Federal é que o acesso à consulta ocorre por ordem de chegada, com critérios burocráticos, sem priorização de riscos, o acolhimento não faz parte da agenda. As limitações para o acesso evidenciaram filas e insatisfações como evidenciado na fala do sujeito 3 em que parte da população não consegue ser atendida nas suas necessidades. Da mesma forma, expõem os usuários a riscos comuns em grandes metrópoles, ocasionando sentimentos de medo e de constrangimento, pois necessitam buscar formas para garantir o atendimento, se submetendo a longas esperas em filas, expostos a todo tipo de situação.(10)
As equipes da atenção básica têm a possibilidade de se vincular, se responsabilizar e atuar na realização de ações coletivas de promoção e prevenção no território, no cuidado individual e familiar, assim como na co-gestão dos projetos terapêuticos singulares dos usuários, que, por vezes, requerem percursos, trajetórias, linhas de cuidado que perpassam outras modalidades de serviços para atenderem às necessidades de saúde de modo integral.(2) Na fala do sujeito 11, percebe-se o papel singular do acolhimento, na gestão e manutenção dessas relações.
Os enfermeiros das unidades de saúde expressaram a necessidade de adequar a teoria do acolhimento à prática cotidiana. Verificou-se, na fala dos sujeitos 7 e 9, a preocupação por uma adesão à proposta feita pelo MS, e também a busca por melhor definição do que seria essa prática do acolhimento para a melhora dos serviços.(2)
Além disso, apesar de ser útil e até necessária em alguns tipos de unidades, não basta ter uma “sala de acolhimento”, por exemplo, e é equivocado restringir a responsabilidade pelo ato de acolher aos trabalhadores da recepção (ou a qualquer trabalhador isoladamente), pois o acolhimento não deve se reduzir a uma etapa nem a um lugar específico, conforme foi evidenciado em algumas falas.
Nos relatos há o consenso de que todos os funcionários da UBS devem realizar o Acolhimento, e que o enfermeiro é um ator fundamental neste processo. A fala dos sujeitos 7 e 9 evidenciou que estes não realizam o Acolhimento com Classificação de Risco a partir de um protocolo ou instrumento construído coletivamente. Muitos profissionais afirmaram desconhecer a existência da Classificação de Risco na APS, devendo, na opinião de um dos entrevistados, ser aplicado apenas no hospital.
Dentre as 10 entrevistas, apenas dois enfermeiros, sujeitos 3 e 6, relataram realizar o processo de trabalho no acolhimento de forma sistematizada. Eles relatam que fazem a avaliação da queixa, avaliam sinais vitais, investigam doenças crônicas ou recorrentes, utilização e acesso aos medicamentos, realizando assim os encaminhamentos necessários. Ressaltam que o primordial no acolhimento é a escuta qualificada, é ouvir e definir se ele precisa de um atendimento, se é médico, se é um atendimento da enfermagem, se as vezes é uma procura que não é daqui da nossa unidade, é pra uma especialidade. A maioria não utilizam protocolos previamente estabelecidos ou baseados nas orientações do Ministério da Saúde, realizando uma escuta que muitas vezes não consegue atender à necessidade daquele paciente. Ou seja, o acolhimento não é reconhecido como uma tecnologia estruturante para a prática profissional.
Como evidenciado também em outro estudo, os profissionais consideraram o acolhimento como tecnologia para ampliação da escuta e diminuição da fragmentação do cuidado.(12) Porém ainda há uma dificuldade na organização dos serviços e atribuições da própria UBS dificultando a realização do mesmo.
Ou seja, o acolhimento está presente nas UBS da Regional de Saúde, mas não de forma estruturada nem embasada no que está preconizado pelo Ministério da Saúde. Ainda a lógica das unidades é predominantemente por ordem de chegada como evidenciam as falas dos enfermeiros, os quais demonstraram entre outras preocupações o fato do usuário necessitar se deslocar para a unidade básica, na madrugada, para entrar na fila, na tentativa de marcar uma consulta.
O fato da população do estudo ter sido composta apenas por profissionais enfermeiros, não incorporando outros profissionais que também estão ou deveriam estar envolvidos no processo de acolhimento, traduz-se em limitação deste estudo.
Embora a implementação do SUS, tenha avançado nos últimos anos, principalmente no que diz respeito às redes de atenção onde a APS assume um papel fundamental, ainda existem desafios a serem superados com destaque para as dificuldades de acesso da população aos serviços de saúde. Quanto ao acolhimento verifica-se neste estudo que de um lado estão os usuários, buscando a atenção de modo resolutivo, e do outro lado estão os profissionais de saúde, que não conseguem responder com os instrumentos e recursos de trabalho disponíveis e preconizados, demonstrando claramente, que na Regional de Saúde a implementação do acolhimento é permeada por conflitos e contradições. Entretanto, vale ressaltar que, para a UBS trabalhar com o acolhimento, o que pressupõe, entre outros aspectos, o atendimento das necessidades de saúde dos usuários, faz-se necessário que o sistema local de saúde esteja organizado com base na referência e contra referência de forma a garantir a integralidade da assistência. Ou seja, não basta a UBS, mais especificamente, os profissionais desejarem incorporar o acolhimento no seu processo de trabalho. Precisa-se de uma articulação em rede de atenção.
Por conseguinte, os resultados deste estudo pretendem contribuir para o redirecionamento de atividades e criação/implantação do acolhimento na Regional de Saúde deste estudo, de forma que o atendimento seja agilizado com consequente bem-estar do usuário. Ressalta-se ainda a importância de pesquisas futuras, voltadas para os demais profissionais, além dos usuários, enquanto beneficiários diretos, os quais podem fornecer informações relevantes para subsidiar a discussão sobre a temática do Acolhimento com Classificação e Estratificação de Risco dentro dos ambientes da APS no Distrito Federal, pois a maioria dos estudos realizados traz como cenário a área hospitalar.