versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 no.66 Botucatu jul./set. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0930
En este ensayo iluminamos temas abiertos al debate post-epidemia de Zika vírus (ZIKAV)en la vida de mujeres y niños. Analizamos 23 artículos, publicados entre 2016 y 2017, seleccionados en periódicos brasileños, en el campo de las ciencias sociales y humanas en salud. Hay un discurso mestizo de reivindicación de derechos, grandes narrativas de atractivo social y explicación por las fuerzas sociales de un estado negligente, asociado a pequeñas narrativas de cuidado de un hijo con discapacidad. Provisionalmente, concluimos que la zona de contacto se realiza por el movimiento de rescate de las pequeñas narrativas en la traducción de las inequidades producidas por el Estado en la vida de las personas comunes.
Palabras-clave: Discapacidad; Mujeres; Niños; Cuidado; Zika
Desde novembro de 2015 vivemos o período pós-epidemia do ZIKAV, acompanhado, em 2016, da declaração da emergência sanitária pelo Ministério da Saúde (MS) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Se vírus e mosquitos ganharam status de atores – retratados em dimensões humanas – as pessoas, particularmente as mulheres que engravidaram, conviviam com dúvidas e ausência de explicações. Um corpo na gravidez com marcas nomeadas como alergia, virose, “nada a se preocupar”, fez parte da cena1. A expressão do mal-estar – sem diagnóstico ou resposta convincentes – foi sendo construída nos exames de imagem, ainda na gestação, traduzidos em indagações sobre o desenvolvimento fetal. A anormalidade marcaria essas crianças desde o útero e, depois, ao nascimento, com medidas de perímetro cefálico aquém da norma, microcalcificações, choros intermináveis de bebês inconsoláveis que apresentavam abalos nomeados como “sustos”. Quando a deficiência ou a anormalidade acomete crianças, comparece a imagem da mãe abnegada, muitas vezes retratada em estado de abandono paterno, em cenário de miséria, de negação de direitos e excesso de vulnerabilidades.
Se o mosquito é democrático, como alguns anunciavam, por que os retratos na imprensa eram das mães miseráveis, esgotadas e sem escolha? Surgem aqui pari passu as narrativas da deficiência: a do pai que abandona a criança deficiente e a mulher; a das mulheres das classes mais privilegiadas que não são alvo das manchetes; a impossibilidade de falar sobre os direitos das mulheres de escolherem ou não ter um filho com deficiência, de acordo com os marcadores classe social, raça/cor e geração, e a ausência de destaque sobre a transmissão sexual do ZIKAV.
Segundo Santos2 há que se realizar uma sociologia das ausências, transformando objetos impossíveis em possíveis, e, com base neles, fazer das ausências, presenças. A sua análise não é externa à ciência, na crítica à razão metonímica. Essa que produz dicotomias de poder, subjugando um polo ao outro, para produzir uma nova totalidade, apagando as partes, impondo homogeneidade a partir de uma única ordem de referência, seja ela a do saber científico, a do domínio da ordem masculinista e racista e dos padrões de normalidade.
O presente ensaio comparece como uma análise sobre parte da produção de conhecimento da área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde no marco pós-epidemia de ZIKAV, que já foi reconhecida em editoriais de revistas3-5. Ilumina as deficiências nas crianças, a interdependência entre atores – Estado, cientistas, vetores, mídias, associações civis, movimentos de mulheres, que não necessariamente convergem para agenda com movimentos feministas, cuidado e divisão sexual do trabalho –, e cuja potência reflexiva sobre populações negligenciadas precisa ser enfrentada.
A epidemia de ZIKAV produz experiências sobre desigualdades sociais no acesso aos direitos e desvela um cenário impressionista: grávidas afetadas pelo vírus, causando o nascimento de crianças com necessidades de saúde inesperadas, com corpos marcados e exames que revelam um sistema neurológico fora de padrões até para as microcefalias já conhecidas como resultado de outras doenças congênitas. Sobressaem histórias de mulheres nordestinas pobres, que se organizam para cobrar do Estado brasileiro sua responsabilidade frente à epidemia e suas consequências na vida de seus(uas) filhos(as).
Para uma certa sociologia das emergências e das ausências no contexto pós-epidemia do ZIKAV, acionamos uma análise teórica, recorrendo ao que já foi escrito no Brasil sobre o tema, na perspectiva das Ciências Sociais e Humanidades.
Santos2,6,7, em contraposição às monoculturas, constrói um diálogo com as lógicas das cinco ecologias: dos saberes, das temporalidades, dos reconhecimentos, das transescalas e da produtividade. Para esse ensaio, em um diálogo com narrativas de intelectuais sobre a epidemia do ZIKAV e suas interfaces humanas, privilegiamos a ecologia dos saberes. Para o autor, é por meio da tradução que se articula a sociologia das ausências e das emergências, identificando, em cada momento e contexto histórico concreto, os movimentos contra-hegemônicos. É simultaneamente um trabalho intelectual, político e emocional, revelado no dar-se conta da incompletude até das ciências sociais convencionais3.
Iluminando o momento pós-epidemia de ZIKAV, refletimos sobre o movimento das mães na convivência com os movimentos feministas e de mulheres. A sociologia das emergências, articulada com a dimensão do cuidado, significa reconhecê-la a partir da especificidade dos objetos estudados, do lugar de fala8 de seus agentes. Se o cuidado de que falamos diz respeito àquele dirigido às crianças nascidas com as marcas das deficiências e das condições de saúde crônicas e complexas9, precisamos incluir as mulheres que delas cuidam. Uma das dicotomias a ser enfrentada diz respeito à ausência ou apagamento da criança na contraposição com o adulto. As crianças marcadas por uma dependência estrutural dos adultos não conseguiram desvencilhar-se por si próprias de uma visão adultocêntrica10. Para compreender a criança como sujeito transformador da cultura e das relações sociais, os estudos sociais da infância, aliados a uma antropologia da criança, resgatam a ideia de protagonismo infantil, problematizando a noção de socialização que subalterniza a criança às instituições, provocando a perspectiva da sociabilidade produzida pela criança como ser ativo no encontro com as instituições.
A importância de situar de quem se fala, como se fala e como esse sujeito comparece ou é apagado na arena pública torna-se urgente nesse contexto onde quase 3.000 crianças nascidas sob a égide do ZIKAV passam a compor também o contingente de outras crianças que, vivendo com deficiências e condições crônicas complexas de saúde, sofrem com a ausência do Estado. Gostaríamos que este artigo representasse um exercício provisório de tradução do presente, expandido pelas sociologias das emergências e das ausências, iluminando temas lançados ao debate pós-epidemia de ZIKAV na vida de mulheres e crianças, buscando as zonas de contato entre as grandes e pequenas narrativas produzidas por intelectuais e ativistas do campo das ciências sociais e humanas.
Afinamos nossa escrita como um ensaio, à luz de Larrosa11, assumindo o olhar sobre o tempo presente, onde autoria, crítica e escrita resultam num movimento de experimentação. Os 23 artigos analisados foram publicados entre 2016 e 2017, considerando que as notícias sobre ZIKAV chegam em 2015. Escolhemos periódicos brasileiros, focalizando o campo das Ciências Sociais e Humanas em Saúde, ressaltando que parte desses artigos compôs dossiês de revistas, conduzidos por intelectuais orgânicos/orgânicas desse campo. Os descritores não foram os critérios para busca, mas uma determinada cartografia, onde a epidemia do ZIKAV estava iluminada, e a partir de escritas reflexivas, problematizadoras, por vezes também de caráter ensaístico, anunciando ausências e presenças. O acervo com essa intencionalidade se mostrou suficiente para essa exploração de movimentos, atores, interesses e reflexões promotoras do ensaio.
Considerando que estamos imersos em pequenas e grandes narrativas12, recorremos a esses eixos ao olharmos para essa produção intelectual. As grandes narrativas não se resumem aqui às ideias sobre progresso, desenvolvimento e modernização, mas recorrem às discussões sobre saúde global, direitos reprodutivos e os discursos nas mídias sociais. As pequenas narrativas valorizam análises voltadas para o cuidado das crianças com microcefalia e atrasos de neurodesenvolvimento, e a organização das suas mães vocalizando seus direitos.
Contemplamos: (a) nas grandes narrativas, o campo da saúde global, as políticas nacionais e os determinantes sociais, os debates sobre direitos reprodutivos e as análises do discurso midiático; (b) nas pequenas narrativas, o cuidado às crianças pós-epidemia e as articulações de apoio entre mães de crianças marcadas pelo ZIKAV, conforme o Quadro 1.
Quadro 1 Organização do acervo de artigos
Artigos organizados segundo Eixos Narrativos | ||
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Grandes narrativas | Pequenas narrativas | |
Grupo 1 Saúde Global | Rego e Palacios13 | Scott et al.30 |
Nunes e Pimenta14 | Fleischer31 | |
Ventura15 | Pinheiro e Longhi32 | |
Lesser e Kriton16 | Diniz e Brito33 | |
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Lara Netto34 |
Grupo 2 Mídias | Antunes et al.17 | Galli35 |
Aguiar e Araujo18 | ||
Porto e Moura19 | ||
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Grupo 3 Direitos reprodutivos | Baum et al.20 | |
Galli e Deslandes21 | ||
Neves et al.22 | ||
Carvalho23 | ||
Diniz24 | ||
Pitanguy25 | ||
González-Vélez26 | ||
Luna27 | ||
Camargo28 | ||
Stern29 |
A ciência constrói narrativas produzindo conhecimento e respostas para a sociedade. Esse percurso entre a pergunta feita, os métodos utilizados e os resultados alcançados, hegemonicamente se apresenta como uma caixa preta, como refere Latour36,37. Ao centrarmos nosso critério em artigos da área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, buscamos ir ao encontro de narrativas que promovem a abertura dessa caixa, cujos métodos exploram: o discurso comum, as mídias, os documentos oficiais, de forma crítica, desvelando o oculto, o que se constrói nos intervalos dos discursos públicos. Inicialmente, organizamos os artigos nessa diferenciação entre ‘grandes’ e ‘pequenas’ narrativas, para, em seguida, alcançarmos a proposta de Charles Tilly, recuperada por Stanley38 e Castellanos12, cuja análise das narrativas privilegia as interconexões, o pensamento articulado entre o universo das estruturas sociais e as dimensões de pessoa.
Identificamos, por meio do exercício de tradução, as zonas de contato2, no diálogo com a deficiência, com os movimentos de mulheres e com as políticas sociais e de saúde, conforme mostrado na Figura 1. Interpretamos os artigos nesse diálogo entre narrativas, iluminando emergências e ausências, destacando que o acervo analisado se coloca de forma contra-hegemônica à ciência tradicional.
A pergunta que colocamos ao acervo neste ensaio é: seriam as pequenas narrativas atualizadoras das grandes narrativas, na zona de contato gerada pela epidemia do ZIKAV, a partir da interface entre gênero e deficiência? Por pressuposto, o ensaio entende que a epidemia do ZIKAV reverbera no cenário público, e convoca o Estado a ver essas crianças pelas lentes de pesquisas que não vão se resumir na biomedicina nem no hospital, mas vão às casas, associações, jornais, sites. Esses lugares – e o fato de termos um contexto de epidemia/emergência nacional e internacional – retiram da sombra a falta de rede para o cuidado às pessoas com deficiências, com destaque para as crianças, desvelando as iniquidades em saúde.
As grandes narrativas evocam a saúde global e as restrições à cidadania reprodutiva feminina39. A visibilidade das iniquidades que os permeiam é destacada no ditado “Mosquitos são democráticos”16, veiculado pela mídia já nas epidemias de dengue. Não são as doenças negligenciadas, mas as pessoas, seus determinantes sociais e marcadores da diferença, em especial: classe, cor/raça, geração e gênero.
Numa cadeia semântica, os artigos retratam as dicotomias da denominada razão metonímica2: as tensões global e local, entre os campos coletivo e individual. Partindo de indagações sobre o porquê um vírus já conhecido desencadearia tantos agravos inesperados, ganham destaque as questões estruturais do processo saúde-doença, conhecidas pelo Estado brasileiro nas proposições de guerra contra agentes exógenos como o Aedes aegypti e no caso do ZIKAV pela configuração de ameaça global feita pela OMS por meio do acionamento da “figura jurídica-política” de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional.
Criticando a perspectiva apolítica de governança (neutralidade) em escala mundial e a crença em soluções técnicas (cientificidade), vem à luz o discurso de securitização em detrimento da problematização da experiência de adoecer e viver15. As experiências recentes com o Ebola e a história do HIV/aids mostram os riscos desse processo, como a disseminação de medo e a estigmatização14. Uma cadeia semântica sobre o ZIKAV, num continuum de denominações, se expressa nas políticas de Aedes; guerra ao mosquito; emergência sanitária; problema de saúde pública global; surto de microcefalias; Zikafobia, Síndrome Congênita do Zika Vírus (SCZV): uma “epidemia de significados”14,40,41.
Num processo marcado pela iniquidade de gênero, conceituar e normatizar podem ser percebidos como uma necessidade para justificar decisões e proposições de medidas frente aos inesperados desdobramentos intergeracionais da exposição ao ZIKAV durante a gravidez. A investigação sobre essa associação e os comprometimentos neurológicos fetais estavam em curso em 2016, e trabalhos desse primeiro bloco expressam preocupações éticas no campo das práticas de cuidados oferecidos ou negligenciados aos expostos e as relações entre diferentes atores no campo da pesquisa. As tensões entre as liberdades individuais e o papel e dever do Estado são assinaladas considerando os limites dos direitos reprodutivos das mulheres, e a demanda por uma rede de cuidados para as crianças e apoio a suas famílias13.
Os artigos que focalizam a epidemia do ZIKAV na mídia destacam um discurso público que reafirma as assimetrias de gênero, as violências institucionais sobre os corpos das mulheres, apresentadas ora como vítimas, ora como culpadas, em ambas as posições, incapazes de decidirem19. Atores sociais de representatividade religiosa contra a descriminalização do aborto apelam para o respeito à vida do feto. Encarando essas notícias como construções sociais, os artigos articulam o componente ideológico nas narrativas dos especialistas e daqueles que estão em cena afetados diretamente pela epidemia e suas consequências: mulheres e suas famílias e os profissionais de saúde. Os posicionamentos do MS, como um ator privilegiado na formação de opinião, evocam as imagens dos bebês com microcefalia como “geração perdida” e as redes sociais virtuais iluminam as mulheres pobres, expostas à violência do Estado. Em contrapartida, a Organização Pan-Americana de Saúde assinala o feeling clínico na experiência de Pernambuco sobre a associação entre defeitos fetais e o ZIKAV na gravidez, numa dupla subversão das dicotomias hegemônicas entre profissionais que atuam no cuidado e os acadêmicos / especialistas, assim como na geografia da produção de conhecimentos dos polos Nordeste e Sudeste.
Essa epidemia faz a ciência redescobrir as mulheres produzindo ciência, o conhecimento vindo da beira de leito e das regiões mais pobres do Brasil1. A mídia esboça uma temporalidade sobre os bebês afetados, vislumbrando-os no futuro como crianças, destacando a figura materna associada ao cuidado e a recorrente imagem dos homens como aqueles que abandonam suas famílias. Talvez a novidade esteja nas interações entre irmãos, e, assim, a participação de outras crianças no cuidado, e das Organizações Não Governamentais criadas pelas mães de crianças com microcefalias causadas por diferentes patologias.
Destacamos Aguiar e Araujo18 e Antunes et al.17 que trabalharam, respectivamente, com imagens publicadas em jornais impressos e na rede social Instagram. Evidenciando as palavras medo e risco, aliadas a um alto grau de incerteza, destacam uma lacuna na atenção à epidemia que explode no eixo Norte-Nordeste, e mais tardiamente no Sul-Sudeste18. Não se ausenta a reflexão sobre as memórias da epidemia do HIV e os arquivos discursivos que silenciam um chamado grupo de risco, marcado por discriminação17. Essa classificação serve ao argumento neoliberal que trabalha com agendas restritivas. Historicamente, os movimentos sociais de pessoas vivendo com HIV/aids tiveram um papel estratégico de chamar o Estado à responsabilidade. Já no caso do ZIKAV, as imagens de dor, sofrimento e má formação em bebês tinham poucas referências públicas anteriores, predominando o discurso de prevenção e risco, responsabilização individual, com menor destaque às correlações políticas da epidemia.
A narrativa sobre crianças deficientes se confunde com as microcéfalas, reduzindo-as às suas marcas. A relação de responsabilidade do Estado ao não garantir uma rede efetiva de atenção e direitos para as pessoas com deficiência, penaliza duplamente as mulheres, pelo mau atendimento das políticas públicas falhas e pelo não reconhecimento de seus direitos reprodutivos. As referências menos iluminadas, mas que surgem nomeadas, referem ao abandono de crianças com microcefalia em abrigos, associada à pobreza e solidão dessas mulheres jovens.
O terceiro conjunto de artigos apresenta a produção de pesquisadoras e feministas, especialmente brasileiras, sobre autonomia reprodutiva, planejamento reprodutivo e legalização do aborto no contexto do ZIKAV, apontando as dificuldades que as mulheres enfrentam para o exercício de autonomia sobre seus corpos, vidas e escolhas reprodutivas. A partir do fenômeno do ZIKAV, analisam o momento histórico, suas complexidades, ressaltando as marchas e contramarchas presentes no debate sobre reprodução e direitos das mulheres23. Essa produção representa uma “reação” às primeiras ações efetuadas pelo Estado brasileiro na declaração de Emergência de Saúde Pública Nacional, em novembro de 2015, antecipando-se à OMS.
Abordando autonomia reprodutiva e aborto – temas caros à agenda feminista –, denunciam sua ausência da agenda de enfrentamento da epidemia do ZIKAV20. Mesmo sendo signatário de convenções e acordos internacionais relacionados aos direitos das mulheres, o Brasil revive uma conjuntura conservadora na esfera legislativa, onde direitos conquistados estão ameaçados. A dificuldade de avanços no campo dos direitos reprodutivos representa uma pauta importante, sinalizando uma arena de disputas e tensões25: o silêncio acerca do aborto, os problemas de acesso à informação e de insumos referentes ao planejamento reprodutivo, a possibilidade de retrocessos no campo dos direitos reprodutivos21,22. Destacamos o fato de a epidemia do ZIKAV ter afetado mulheres mais pobres, na sua maioria pardas e negras, com baixa escolaridade e moradoras de regiões mais empobrecidas do país. Os trabalhos de inspiração etnográfica24 e com uma perspectiva interseccional29 apontam que, nas famílias com crianças nascidas com as marcas do ZIKAV, é sobre os ombros dessas mulheres que recaem os ônus mais pesados. A divisão assimétrica do trabalho do cuidado as coloca na posição de principais responsáveis pelas condições de saúde dessas crianças, exigindo uma rotina intensa de tratamentos especializados.
O dever do Estado na garantia de ofertas de acesso à saúde torna-se crucial e suas restrições iluminam as iniquidades24. Os trabalhos apontam para a necessidade de um diálogo entre os grupos que discutem a questão do direito das mulheres em optarem pelo aborto e os grupos que defendem os direitos dos deficientes, rebatendo a pecha da eugenia28,42. O diálogo entre os discursos internacionais e globais, sobretudo com a OMS, e o caso colombiano de efetivação do acesso ao aborto em casos do ZIKAV por mulheres que tenham sua saúde mental comprometida e o requeiram, reaviva o argumento do direito ao aborto26.
As pequenas narrativas favorecem o testemunho dos corpos das crianças, não deixando suas mães esquecerem de suas necessidades, transformadas em discursos públicos de luta por direitos, justiça e reparação. Narrativas de primeira pessoa, em que mulheres nordestinas, mães e profissionais de saúde tornam-se protagonistas da epidemia de forma diferente, mas em conexões múltiplas33-35.
A emoção é um conector, assim como a produção de um saber das mães sobre seus filhos, tornados desconhecidos frente a outras experiências de vida com crianças não marcadas. Já os profissionais vivem com surpresa e sofrimento a leitura dos exames de imagem alterados. Bem como, um desenvolvimento infantil cujos marcos se tornam incógnitas, em função da ação não conhecida do ZIKAV no organismo. Guardadas as diferenças, Vianna e Farias43 localizam a condição de mãe como elemento de autoridade moral em atos políticos. Elas possibilitam um trânsito “entre dor pessoal e causas coletivas; entre sofrimentos e direitos; entre formas e dimensões distintas do luto” (p. 83). Essa autoridade moral aciona uma tríade que relaciona condição de mãe / ator político / ação. Essa tríade dialoga com a posição da vítima ocupada pelo filho morto, e permite a conjugação de uma narrativa ao mesmo tempo do “eu” e do “nós”. As mães das crianças nascidas com SCZV lutam por justiça e dirigem ao Estado a responsabilidade pela sua dor, pelo luto de um filho sem anormalidades, de cujas deficiências se tornam testemunhos.
A responsabilização do Estado brasileiro conduz essa narrativa na sua origem, desvelando suas falhas, agora no oferecimento de ações de reabilitação e escolarização para as crianças, presteza nos benefícios sociais e reconhecimento de que precisam ser protegidas da intolerância. Se essa narrativa é construída no contato com uma das mães protagonistas32, a mesma não se revela pessoal, mas assume o tom da representação política da “fala de muitas” – traduzida no discurso de uma mãe por meio dos aplicativos de mensagens e páginas de Facebook – conectando a grande narrativa da responsabilização do Estado, dos limites das políticas e dos rituais de discriminação social.
Na interação com a mídia, a presença paterna sofre um recuo para que – mesmo que existam pais cuidadores – as mães sejam fotografadas em destaque com seus filhos. A díade mãe-criança predomina na imagem pública, reafirmando modelos de parentalidade em que a mulher está identificada como cuidadora única. Ter um filho nascido fora dos padrões esperados de normalidade é um momento de “reclusão”, onde essa criança é estranhada, escondida e a família pode ser o lócus de preconceito32. A imagem da abnegação materna conflita com a posição feminista, ressalta a maternidade militante, o papel preponderante da mãe que luta pelo filho marcado pelas deficiências, apagando a mulher-esposa. Os filhos assumem a identidade de anjos, perdendo espaço as questões sobre direitos reprodutivos e perspectiva de cuidado com futuras gravidezes. Como molas propulsoras, essas dimensões identitárias – da cidadania biológica e da biossocialidade – articuladas e articuladoras de apoio social geram um movimento associativo de mães de crianças com microcefalia pelo reconhecimento de seus filhos(as) como deficientes e por aceder, assim, aos direitos associados a essa condição que lhe garante um lugar como cidadão44,45. Interessante identificar as referências aos contrastes e tensões com mães de outras crianças nascidas com doenças raras30,32.
Se, inicialmente, se aproximam, depois, se diferenciam: o que as mães de crianças com doenças raras não conseguem e ainda lutam para alcançar, as mães de crianças com microcefalia agilizam no debate público – no diálogo com os poderes executivo, judiciário, e legislativo –, ganhando visibilidade pela associação direta com a localização dos agentes responsáveis pelo advento das malformações e agravos: o mosquito e o Estado. Nas interações promotoras dessas reconstruções de maternidade e identidades atuam diversos atores, bem sintonizados com as análises da teoria ator-rede32,36,37.
Instituições, sangue, pesquisadores/pesquisadoras, fita métrica, carro, fraldas, mães, pais, crianças, carteira de identidade, benefício de prestação continuada, whatsapp, vírus, mosquito. Se a mídia ofereceu a efemeridade, esses artigos representam um não esquecer, evocando presença e cotidiano. Relatos na primeira pessoa destacam a proximidade, a alteridade e a reciprocidade, nos movimentos de segurar, andar e falar31. Expressões da temporalidade do vivido, e da gradativa expansão do encontro intersubjetivo entre a mãe, seu bebê, as outras mães, os pesquisadores, o Estado e os processos de discriminação social. Um processo gradativo de reconhecer esse filho como seu, antecedido do próprio preconceito de apresentá-lo à vida pública. Reconhecer suas necessidades, interpretá-lo e ganhar intimidade com ele, defendê-lo, transformá-lo em anjo, símbolo da luta organizada das mães da primeira geração das crianças nascidas com microcefalia associada ao ZIKAV.
Há nesse grupo de artigos a urgência de tradução das experiências como pesquisadores no encontro com as mães que buscam evocar as necessidades de seus filhos com deficiências. Residem, nesse acervo, as identificações e distinções entre ser uma mãe rara e ser uma mãe de anjo30. A mulher-mãe-de-criança-anjo que milita destaca a dimensão coletiva da iniquidade em saúde marcada na geração das mães de micro, que não está nas mães raras, cuja organização é determinada pela herança genética, e não pelos impasses de uma epidemia viral, transmitida por um agente externo. Na base estão as deficiências em crianças nascidas após serem atingidas pelo ZIKAV na gravidez, e esse acontecimento em escala deflagra uma emergência sanitária de nível internacional e nacional, com responsabilização do Estado. Não é o lugar da esposa, ou a imagem do pai, que é evocada. Mas, a da maternidade associada à luta pelo filho, cuja marca da deficiência sobressai nas tensões30.
A aproximação entre os estudos feministas e os estudos da infância não se dá sem conflitos e estranhamentos. Sobre isso, Helleiner46 resgata sua história ao dialogar feminismo e infância: como antropóloga, era estranho reconhecer algum interesse pelas crianças, considerando-se uma feminista. Tomada por essa contradição aparente, de uma certa antítese entre feminismo e criança, Helleiner nos ajuda a ampliação de olhar e crítica daquilo que Santos2 nomeia como a razão metonímica: essa que trabalha com pares de oposição a fim de se deslocar para localizar as partes no todo, reduzindo a complexidade das relações e valorizando somente um polo. Portanto, para se poder falar de mulheres teria de se falar de homens; para falar de crianças, teríamos de acionar os adultos; para falar de razão, precisaríamos opor a emoção, e assim por diante. Para Santos2, “a crítica da razão metonímica é, pois, uma condição necessária para recuperar a experiência desperdiçada. O que está em causa é a ampliação do mundo através da ampliação do presente” (p. 245).
Se fizermos o exercício de deslocamento da lógica adultocêntrica e desenvolvimentista que povoa o universo das análises sobre as crianças e a infância, nos deslocaremos do eixo que reduz a criança a um projeto socializador dos adultos, projeto de futuro, que apaga o valor da criança no presente. As crianças com atrasos de desenvolvimento e microcefalia vivem o futuro como um anúncio de um vir-a-ser nebuloso, que, no discurso do MS à época, as qualificava como “geração perdida”. Essa narrativa vocaliza a metonímia de um futuro perdido para a anormalidade e a lesão do modelo biológico da deficiência47. O reducionismo gera efeitos simbólicos e de longo prazo, evocando os rituais de discriminação a partir dos estigmas corporais, visíveis e produtores de traços identitários48. Ser mãe e ser reconhecida por cuidar de uma criança com deficiência, sobressai a qualquer outra marca identitária, reativando o debate sobre a experiência aflitiva das deficiências na interface com as iniquidades de gênero no cuidado49. Somos convocados a um exercício de reagregação do social5,37, dialogada como uma filosofia mestiça50, onde polos de oposição seriam menos dicotômicos, mais dialógicos e tensionados.
A tensão não equivale à dicotomia, mas incorpora um contraste, com zonas de contato provocadoras de movimento e de uma sensação de oposição. Vivemos esses efeitos do ZIKAV apelando para os efeitos reticulares, relacionais, simétricos, reagregadores entre humanos e máquinas, sujeitos e objetos. Na proposta da Carneiro5, das conexões existenciais, apoiada na teoria ator-rede36,37, essas misturas seriam promotoras de movimentos múltiplos, transformadores de conceitos, categorias e maneiras de agir e pensar o mundo. Um mosquito, uma mulher grávida, um vírus, uma criança: onde começariam e terminariam os limites?
As grandes narrativas para explicação de um fenômeno na interface entre cuidado e deficiência, mobilizando mulheres e opinião pública, especialistas e mídia, não prescindem dos movimentos finos dos encontros com o desconhecido, a impotência do conhecimento e das ações de enfrentamento do sofrimento e das desigualdades de gênero. Nesse cenário, o movimento feminista e outros movimentos sociais, como o negro, o das pessoas com deficiência, se aproximam, mas não necessariamente é dessas bandeiras que essas mulheres que abraçam essa maternidade identificada com a biografia da microcefalia e da deficiência querem falar.
Buscando as ausências e as emergências, identificamos grandes e pequenas narrativas. Nessas zonas de contato se configura um discurso mestiço, que caracteriza-se por produzir polaridades. Destacamos a relação crianças “microcéfalas” X crianças “deficientes/especiais”, iluminando mais as primeiras pelas marcas visuais e por representarem uma síntese da epidemia na emergência de uma novidade: microcefalia associada ao ZIKAV e a um vetor. No entanto, as pequenas narrativas representadas pelas mães dessas crianças as reivindicam como especiais, anjos. Ser especial e anjo garante maior reconhecimento no campo dos discursos comuns e, também, no campo da reivindicação pública por identidades e benefícios sociais. Outra ausência anunciada, mas que dialoga com antigas emergências, diz respeito aos modos de transmissão, onde a transmissão sexual sofre um apagamento, que parece reavivar o apagamento sobre discutir sexualidade e direitos reprodutivos, e, se for para discuti-los, será para domesticá-los.
Há um discurso mestiço de reivindicação por direitos – de grande escala, ou de grande narrativa de apelo social e explicação pelas forças sociais de um Estado omisso –, ao mesmo tempo uma pequena narrativa do cotidiano do cuidado, de um filho com deficiência, localizada ou circunscrita à luta pelo interesse legítimo em não ser esquecido, a garantir saúde, reabilitação, educação e benefícios. A interação associativa se constrói na mestiçagem: as mães de crianças com doenças raras, com diagnósticos os mais variados, reunidas em torno dessa identidade, de pouca incidência, quase invisível, e as mães de crianças nascidas com microcefalia ou SCZV, que, pela epidemia, ganham volume e visibilidade e se diferenciam. Agilizam algo que as primeiras demoraram muito a conquistar: um lugar público reconhecido, o interesse dos pesquisadores e operadores de políticas, e a visibilidade para um grupo de crianças que geralmente passa invisível: aquelas que vivem com deficiências. Talvez a emancipação social advenha de reconhecer o caráter heterogêneo e híbrido das mulheres que vocalizam os direitos de seus filhos nascidos com as marcas da microcefalia, das alterações de desenvolvimento, renegociando com vários marcadores: raça/cor, gênero e deficiência. Desses três marcadores de diferença, talvez a deficiência evoque outros referidos à imagem das crianças-anjos, dos seus direitos, da sua não escolha e responsabilidade por esse nascimento alterado em sua herança social.