Aspectos gerais
A adolescência é um período fortemente marcado por transformações, sejam elas físicas, sociais ou emocionais. Nesse período, há uma busca maior por autonomia, pela elaboração de uma personalidade própria e única, além de aumentar a vivência em grupos. Porém a exacerbada sensibilidade emocional dessa fase é acompanhada de uma menor capacidade de se lidar com conflitos, o que leva muitas vezes essa população a adotar comportamentos de risco. Devido a isso, como mecanismo de defesa para lidar com frustações e sentimentos negativos, muitos acabam recorrendo à autoagressão.
É bastante comum na Atenção Primária médicos se confrontarem com adolescentes que se autolesionam. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a violência em três categorias: interpessoal, coletiva e autoinfligida. A lesão autoinfligida, ou autoprovocada, se refere àquela em que o indivíduo pratica agressão contra seu próprio de corpo de forma proposital. De forma geral, ela engloba os atos de arranhaduras, mordidas, cortes com objetos pontiagudos (como faca, agulhas ou navalhas), queimar a pele (ação que ocorre tipicamente com cigarro), autoflagelação, brincadeiras perigosas, como enforcar-se, socar paredes, dentre outras. Quando essas lesões, em seus diversos trâmites, são realizadas apenas com o objetivo de causar dano físico, sem ideia de provocar a morte, são classificadas como autolesão não suicida (ALNS).
É digno de nota que há uma diferença entre autolesão e automutilação. Automutilação envolve ferimentos mais graves e muitas vezes irreversíveis, como amputação de membros e castração, em geral proferidas durante estados de delírio ou ainda em quadros psicóticos. Já a autolesão é composta de lesões mais brandas e mais superficiais que, embora sejam dolorosas, não possuem como objetivo causar a morte ou algum dano extenso.
A autolesão não suicida envolve diversos riscos. O principal risco está na evolução para futuras tentativas de suicídio, haja vista que existe uma linha tênue entre os atos de lesão autoprovocada, ideação suicida, comportamento suicida e suicídio consumado. Portanto, autolesões não devem ser menosprezadas e devem ser vistas como uma problemática a ser abordada sempre que detectada. Outro risco importante está na repercussão dermatológica dessas lesões, que pode ser por vezes irreversível. Em quadros mais graves, as lesões podem ser acompanhadas de áreas de necrose, ulceração e crostas, além de causar cicatrizes assimétricas e permanentes.
Epidemiologicamente, o pico de idade em que a ALNS ocorre está em adolescentes e adultos jovens. Na maioria das vezes, é realizada como uma forma de reduzir a tensão e/ou sentimentos negativos ou como punição por supostos erros, para resolver dificuldades interpessoais ou ainda como um pedido de ajuda. Devido a isso, muitos pacientes tendem a ter uma atitude positiva para com a autolesão, não buscando atendimento ou aconselhamento ou ainda negando sua necessidade.
Fatores de risco
Os principais fatores de risco para as ALNS incluem:
- Falha nos mecanismos de adaptação;
- Pessimismo, insegurança, autodepreciação, impulsividade;
- Distorção de imagem corporal;
- Instabilidade emocional;
- Relações familiares conflituosas;
- Abuso de substâncias (álcool/drogas);
- Outros transtornos psiquiátricos (transtornos de personalidade, transtornos alimentares, etc.);
- Dificuldades de convívio social (isolamento, bullying).
Como abordar?
A autolesão não suicida é bastante frequente no cenário da Atenção Primária. Portanto, a atuação multidisciplinar, com uma escuta ativa, permitirá que se tracem estratégias para o tratamento das autolesões. Para atendimento específico na Atenção Primária, há a disponibilidade de serviços com especialistas em saúde mental, como profissionais do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), além da mais recentemente via telessaúde.
O Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria, em um de seus documentos, traz algumas perguntas que podem auxiliar o médico ao abordar o paciente com ALNS durante a anamnese:
- Você já sentiu vontade de se cortar? Chegou a fazer vários pequenos cortes na pele?
- O que você sente quando provoca esses ferimentos?
- Por quanto tempo você fica pensando em fazer esse ato antes de realmente executá-lo?
- Você costuma ter esse tipo de comportamento diante das pessoas com quem convive?
- Quando fez esses ferimentos, você pensava em quê? Alguma vez pensou em desaparecer, morrer?
Essas perguntas auxiliam a avaliar a experiência do paciente para com as autolesões, compreender suas motivações e ainda auxiliar a buscar o diagnóstico de algum transtorno psiquiátrico associado.
Associado a uma anamnese bem detalhada, é de suma importância a realização de uma boa inspeção ao exame físico. Podem ser detectadas múltiplas lesões, sobretudo em áreas menos visíveis/acessíveis ou que possam ser cobertas com roupas ou acessórios, como em glúteos, axilas, ombros, dorso e punhos.
Para se classificar a gravidade da lesão, há uma escala adaptada para o Brasil de Giusti (2013) denominada Escala de Comportamento de Autolesão (ECA). Ela estabelece os níveis: leve (mordeduras/arranhões na pele), moderada (bater em si propositalmente, arrancar cabelos, inserir objetos sob a pele ou sob a unha, etc.) e grave (cortes na pele, queimaduras, beliscões até causar sangramentos). A definição da gravidade é importante porque reflete a dificuldade do adolescente em resolver conflitos, além de haver a hipótese de que haja uma resistência com a prática e a busca por autolesões cada vez mais graves.
Os tratamentos que atualmente têm mostrado melhor benefício incluem a psicoterapia, terapia cognitivo-comportamental, terapia em grupos e a manual-assisted cognitive behavioral therapy. Todas elas resultaram benéficas em diversos campos específicos, como no enfretamento dos problemas, do estresse, nas habilidades comunicativas, na redução das autolesões e em evitar recaídas.
As ALNS se acompanham muitas vezes de outros transtornos, como transtorno de personalidade borderline, abuso de drogas, transtorno de personalidade antissocial e transtornos alimentares. Portanto, uma consulta minuciosa com uma boa avaliação diagnóstica de outros transtornos associados permite um tratamento mais específico. Levando-se isso em consideração, o tratamento medicamentoso pode ser realizado com drogas antidepressivas, bloqueadores opioides, anticonvulsivantes e antipsicóticos, apesar de nenhum ser específico para o tratamento deste transtorno.