Carreira em Medicina

Caso Clínico: Doença de Huntington | Ligas

Caso Clínico: Doença de Huntington | Ligas

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Área: Neurogenética

Autores: Allan Cristhyan Alves Carvalho

Revisor: Pedro Fellipe de Azevedo Rangel

Orientador: Vicente de Paulo Teixeira Pinto                       

Liga: Sociedade Acadêmica de Genética Médica de Sobral

Apresentação do caso clínico

 Paciente FAS, sexo feminino, 41 anos, parda, dona de casa, natural e procedente de Senador Sá, Ceará. Filhos a levaram à assistência médica devido ao aparecimento de movimentos involuntários coreicos há cerca de um ano, os quais iniciaram nos membros superiores, evoluindo de forma progressiva para membros inferiores e posteriormente para cabeça, a impedindo de realizar atividades laborais as quais fazia. Associado a isso, acompanhante refere também a presença de disartria, distonia, bradicinesia, disfagia, movimentos disrítmicos e repetitivos de dedos e língua. Segundo os filhos, que convivem com a paciente, esta apresentou também, durante os últimos 3 anos, sintomas psiquiátricos, como mudança de humor, heteroagressividade, ciúmes excessivos com o marido (chegando a agredi-lo) e apatia. Antes do aparecimento da sintomatologia motora, paciente tabagista, consumindo um maço de cigarro por dia durante 18 anos. No histórico familiar, o acompanhante da paciente refere que o pai e a mãe da mesma faleceram respectivamente aos 49 e 52 anos com sintomatologia semelhante. Além disso, os pais da paciente eram primos e ambos faleceram com diagnóstico de Doença de Huntington, assim como o avô materno da paciente.

Ao exame físico do paciente: Regular estado geral, AAA, hidratado, sem edema, orientado no espaço e tempo e com um pequeno déficit quanto à higiene própria. FC: 80 bpm, FR: 16 ipm, PA: 120×80 mmHg. Nota-se a presença de movimentos tipicamente coreicos nos membros. Aparelho respiratório com murmúrio vesicular presente, sem ruídos adventícios. Aparelho cardiovascular normal, com Ritmo em e tempos, bulhas normofonéticas e sem sopros. Abdome hígido, sem achados relevantes á palpação e com ruídos hidroaéreos normofonéticos. Mini Exame do Estado Mental: 24/30 e Glasgow 13/15.

Foram solicitados exames de rotina, os quais estavam dentro da normalidade, e um teste genético de Expansão em HTT para Doença de Huntington, o qual mostrou resultado positivo para Doença de Huntington. Foi feito também um heredograma da família do paciente, obtendo-se a seguinte estrutura:

Questões para orientar a discussão

               

1. Como é a genética da Doença de Huntington?

2. Qual fisiopatologia da Doença de Huntington?

3. Quais as principais manifestações clínicas da doença?

4. Quais as chances de os outros familiares da paciente adquirirem a doença, sabendo que o avô da paciente era homozigoto dominante e sua avó era homozigota recessiva, seus pais são ambos heterozigotos e seu esposo é homozigoto recessivo?

5. Tem tratamento?

Respostas

1. A Doença de Huntington (DH) é uma doença neurodegenerativa hereditária, autossômica dominante, classicamente descrita na literatura como Coreia de Huntington (‘khoreia’ é a palavra grega para dança). Uma das principais características genéticas que envolvem a DH se centra na expansão trinucleotídida da trinca CAG (citosina-adenina-guanina), que se localiza perto do terminal 5’ do éxon 1 (região codificante) do gene HD (referente a Huntington´s disease), o qual codifica a proteína Huntingtina. A quantidade normal da trinca CAG varia em torno de 20 (vinte) repetições, enquanto em uma pessoa com mutação esta repetição é geralmente acima de 36 (trinta e seis). A quantidade de repetições se relaciona de forma diretamente proporcional à severidade da doença, em que uma pessoa com um maior número de repetições da trinca apresenta uma sintomatologia mais exuberante do que uma pessoa com menos repetições. O número destas repetições pode refletir também a idade do aparecimento da sintomatologia no indivíduo afetado, como observado na tabela abaixo.

O alelo normal transmite-se de geração em geração segundo as regras de hereditariedade Mendeliana. Já o alelo mutante é instável durante a meiose, alterando o seu comprimento na maioria das transmissões intergeracionais, com um aumento de 1 a 4 unidades ou decréscimo de 1 a 2 unidades do tripleto CAG. Em casos raros, podem ocorrer expansões maiores associadas à transmissão paterna, o que reflete uma maior taxa de mutação durante a espermatogênese. O fato de tal doença apresentar caráter autossômico dominante faz com que a presença de um único gene do par alterado é suficiente para aparecer a doença. Assim, O risco de um filho ou filha ser afetado se um dos pais carrega um gene dominante é de 50% a cada gestação.

2. A mutação anteriormente descrita, culmina em uma expansão de resíduos glutamínicos localizados no terminal amínico da Proteína Huntingtina. Esta proteína mutante é expressa em todo o organismo, porém a morte celular surge em áreas específicas do Sistema Nervoso, particularmente nos núcleos da base e no córtex cerebral. Os sintomas iniciam-se cerca de 30 a 40 anos de vida em uma pessoa afetada.  Do ponto de vista neuroquímico, observa-se uma redução acentuada do neurotransmissor GABA, principal neurotransmissor inibitório do Sistema Nervoso Central, bem como de sua enzima sintética – descarboxilase do ácido glutâmico – em todos os núcleos de base, mais pronunciadamente no núcleo caudado e putâmen. Os terminais axônicos dos neurônios GABA causam, normalmente, inibição do globo pálido e na substância negra. Acredita-se que está perda de inibição possibilite surtos espontâneos de atividade nesses dois núcleos, o que causam os movimentos distorcidos. Observe abaixo um corte coronal de um cérebro normal comparado a um portador de Doença de Huntington. Visualize o tamanho geral do cérebro e do núcleo caudado no cérebro saudável e compare-os com a imagem B, um cérebro de uma pessoa com DH. A atrofia do núcleo acaba causando dilatação dos ventrículos laterais.

A demência na DH provavelmente não resulta da perda de neurônios GABA, mas da perda dos neurônios secretores da acetilcolina, talvez especialmente localizados nas áreas de pensamentos do córtex cerebral (lobo frontal). Durante a progressão da doença, alteração intracelular ocasionada pela Huntingtina mutante conduz à degeneração de neurovias importantes e também à degeneração no corpo estriado e no córtex cerebral. Embora não resultem necessariamente de um efeito direto da proteína mutante, os mecanismos de excitotoxicidade, toxicidade dopaminérgica, desregulação metabólica, disfunção mitocondrial, estresse oxidativo, apoptose e autofagia têm sido implicados na patologia da DH. A maioria destes mecanismos evoluem gradualmente, se tornando mais pronunciados em estágios mais tardios da doença. Tais mecanismos podem ocorrer paralelamente, promovendo-se mutuamente e findando em morte neuronal.

3. Clinicamente, a Doença de Huntington manifesta-se sobre a ótica de três grandes distúrbios: motores, cognitivos e psiquiátricos. A média de idade do aparecimento dos primeiros em uma pessoa afetada gira em torno de 35 a 40 anos de idade, embora possa haver casos de DH juvenil, mas bem mais raros. A patologia apresenta, em geral, apresentação insidiosa de inabilidade e de movimentos adventícios, inquietos, descoordenados e repetitivos. Alguns sinais clínicos podem apresentar-se no quadro inicial do distúrbio, a saber nistagmo, disartria, disfagia, movimentos descoordenados de língua e dedos.

A principal característica do distúrbio motor na Doença de Huntington se centra na presença de movimentos involuntários, descoordenados e aleatórios, classicamente coreicos. Tal coreia apresenta-se em mais de 90% dos afetados. As manifestações coreiformes faciais não são raras, podendo ser observada sobre a forma de contrações da bochecha, ataxia ocular, franzimento das sobrancelhas e movimentos labiais anormais. Não raramente, há envolvimento concomitante do pescoço, com movimentos anteriores e posteriores, bem como rotação da cabeça. Nos membros, as pernas podem ser cruzadas e descruzadas de forma alternadas; normalmente os dedos sofrem movimentos de flexão e extensão. De forma geral, a coreia inicia-se distalmente, entretanto com a evolução do distúrbio, torna-se generalizada e pode comprometer e interromper os movimentos voluntários. Nos estágios tardios da doença, outros distúrbios de movimento tornam-se mais ricamente exuberantes, principalmente distonia, bradicinesia e rigidez.

Quanto ao envolvimento cognitivo, tal afecção cursa, em geral, com distúrbios de memória, das funções cognitivas e lentificação do pensamento. Assim, é necessário um acompanhamento contínuo e atento do paciente afetado, uma vez que tal sintomatologia afeta drasticamente o dia a dia do indivíduo, bem como das pessoas que o cercam. Por fim, tais pacientes podem cursar com afecções psiquiátricas. É comum observar distúrbios como ansiedade, labilidade emocional, heteroagressividade e depressão. Deve-se atentar bastante

para este último, uma vez que os pacientes com DH tem alta prevalência de suicídio quando comparado com a população sem DH.

4. Tendo em vista o heredograma e as informações acima descritas, pode-se estimar a probabilidade de a família da paciente vir a desenvolver a doença. É importante relembrar as informações: o avô materno da paciente era homozigoto dominante e sua avó materna era homozigota recessiva, seus pais são ambos heterozigotos e seu esposo é homozigoto recessivo. Calcularemos conforme a herança mendeliana básica.

Primeiramente, observaremos os avós maternos da paciente:

• O avô é homozigoto e afetado, representando-o como: AA

• A avó é homozigota não afetada, representando-a como: aa

Ao se fazer o cruzamento, obtém-se os possíveis resultados:

  1. Aa
  2. Aa
  3. Aa
  4. Aa

Assim, podemos observar que 100% dos descendentes destes indivíduos são portadores da DH e heterozigotos, que é o caso da mãe da paciente.

Agora, analisaremos os pais da paciente. Importante relembrar que são primos.

• Seu pai é heterozigoto, sendo representado por: Aa

• Sua mãe é heterozigota, sendo representado também por: Aa

Ao se fazer o cruzamento, obtém-se os possíveis resultados:

1. AA

2. Aa

3. Aa

4. aa

Assim, podemos observar que há a probabilidade de 75% de um descendente do casal desenvolver a Doença de Huntington e 25% deste ser saudável.

Por fim, analisaremos a paciente e seu cônjuge.

• A paciente é heterozigota, sendo representada por: Aa

• Seu marido é homozigoto recessivo, sendo representado por: aa

Ao se realizar o cruzamento, obtém-se os possíveis resultados:

1. Aa

2. Aa

3. aa

4. aa

Assim, podemos observar que, neste caso, há a probabilidade de 50% de um descendente do casal desenvolver a doença e 50% de ser saudável.

Tendo todas estas informações como base, é importante instruir o casal e realizar o aconselhamento genético adequado, elucidando as probabilidades de seus filhos terem a doença bem como associar na conversa os próprios filhos e elucidá-los adequadamente acerca da hereditariedade da doença.

5.   Infelizmente, ainda não há um tratamento farmacológico que reverta a neurodegeneração natural da doença. Há algumas questões importantes a serem levadas em conta em relação à terapia centrada somente na coreia. Primeiramente, tal problema pode não ser o mais importante para o paciente e seus familiares; depressão, irritabilidade, agressividade ou apatia podem ser problemas mais complexos. Dessa forma, quase sempre os pacientes com um grau moderado a grave fazem utilização de medicamente antipsicóticos e ansiolíticos. Em segundo lugar, uma vez que o distúrbio de movimento é uma mescla de coreia, bradicinesia e distonia, tratar somente a coreia pode agravar a bradicinesia, a distonia e a apatia. Os movimentos coreiformes podem ser o foco do tratamento farmacológico se sua amplitude for grande ou se causar angústia no paciente; caso contrário, o foco do tratamento farmacológico deve ser a sintomatologia psiquiátrica. Os clínicos gerais e as clínicas hospitalares têm um papel no apoio geral das famílias durante um período prolongado, além de apoio psicológico e do aconselhamento genético envolvendo toda a família do paciente. Para controlar os movimentos coreicos, são utilizados fármacos como haloperidol e indutores de sonolência que promovem maior repouso e alívio dos sintomas. Mais recentemente, surgiu para a promessa de redução da coreia um medicamento chamado Tetrabenazina. Entretanto, ao se utilizar este fármaco nos pacientes com DH, observou-se uma piora acentuada dos sintomas psiquiátricos na maioria dos pacientes, vários apresentando inclusive suicídio. Em contrapartida, desenvolveu-se mais recentemente um medicamento semelhante, a Deutetrabenazina (chamado comercialmente de Austedo), o qual promete diminuir os movimentos coreicos e não afetar o aspecto psiquiátrico do paciente. Este ainda carece de comprovação e estudos, mas os resultados obtidos por ora são animadores. Além disso, cabe salientar que para um paciente afetado é fulcral a atenção multiprofissional, necessitando de acompanhamento psicológico, fisioterapêutico, fonoaudiólogo e médico. O acompanhamento é extremamente importante, visto que tendem a diminuir a progressão da severidade dos movimentos coreicos, da rigidez, da bradicinesia, da disartria e da disfagia, possibilitando maior tempo de independência do paciente.