Urgência e Emergência

Caso Clínico: Esquistossomose com Encefalopatia | Ligas

Caso Clínico: Esquistossomose com Encefalopatia | Ligas

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Área: Emergências Clínicas / Doenças infecciosas e parasitárias/ Gastroenterologia

Autores: Anna Luiza Brito Franceschini, Juliana Késia Araújo da Fonseca, Mateus Ferreira da Cunha.

Revisor(a): Fernanda Ribeiro de Lima Alves Guilherme

Orientador(a): Jule R.O.G Santos

Liga: Liga de Emergências médicas do DF (LEM-DF)

Apresentação do caso clínico

Paciente do sexo feminino, 53 anos, parda, dona de casa, casada, procedente e residente de Serra Dourada-BA, foi levada pela filha ao Pronto-socorro alegando episódio de convulsão associada a vômito volumoso há 1 hora. Há 2 meses relata náuseas e empachamento pós-prandial e perda ponderal de 10Kg motivada por inapetência. Refere há 1 mês dor abdominal, transitória, difusa, em cólica, intensa, sem irradiação, sem fatores de melhora, que evoluiu com piora. Há 2 semanas refere acolia com fezes endurecidas. Relata ainda colúria e poliúria. Há 10 dias refere icterícia progressiva, mais intensa nas mucosas, associada a prurido. A filha relata que a mãe apresentou episódios de irritabilidade excessiva e episódios de amnésia na última semana. Há 1 hora apresentou episódio de perda de consciência associada a rigidez mandibular, bruxismo e vômito volumoso com presença de alimentos. Nega hematêmese, febre, dispneia, melena. Etilista há 34 anos refere consumo frequente e em grande quantidade de álcool. Alega banhos de rio em região endêmica de esquistossomose em Tabocas-BA. Refere HAS diagnosticada há 7 meses e subtratada. Diabética há 20 anos. Mãe falecida por problemas hepáticos.

Ao exame físico, a paciente encontrava-se em regular estado geral, idade aparente incompatível com a referida, letárgica e desorientada em tempo e espaço, afebril (36,7ºC), acianótica, hipocorada +1/+4, ictérica +2/+4, hidratada, xerose +/+4, normopneica (frequência respiratória = 18 irpm), normocárdica (frequência cardíaca = 77 bpm) e hipertensa (146 x 96 mmHg). Saturando 96% ao ar ambiente. Presença de lesões eritemato-papulosas difusas no tórax. Edema em MMII sem sinais flogísticos, sinal de Godet positivo +2/+4. Tórax emagrecido em formato de sino, aparelho respiratório com murmúrio vesicular presente, sem ruídos adventícios. Aparelho cardiovascular, RCR, em 2T, bulhas normofonéticas, ausência de sopros. Abdome em ventre de batráquio, ruídos hidroaéreos diminuídos, submacicez nos flancos, fossa ilíaca direita, fossa ilíaca esquerda e hipogástrio. Espaço de traube maciço à percussão. Semicírculo de Skoda positivo, Macicez móvel positivo. Presença de dor difusa à palpação, mais intensa em HD, HE e flanco esquerdo. Fígado palpável a 7cm RCD. Baço palpável a 15 cm RCE. Ausência de tumorações. Presença de Flapping. 

A paciente foi internada e foram realizados exames laboratoriais e de imagem para investigação do quadro de insuficiência hepática e sua possível etiologia para realização de tratamento adequado. Os exames solicitados foram: hemograma completo, plaquetas, ALT, AST, Albumina sérica, coagulograma, amônia sérica, bilirrubinas totais e frações. IgM e IgG anti-HAV, sorologia para hepatites B e C. Exame parasitológico de fezes. Teste rápido para esquistossomose pela urina. Ultrassonografia de abdome. 

Os exames indicaram linfocitose, plaquetopenia, ALT e AST aumentadas, hipoalbuminemia, TTpa aumentado, amônia sérica aumentada, BD e BI aumentadas. IgM e IgG anti-HAV não reagentes. Sorologia para hepatites B e C negativas. Exame parasitológico de fezes negativo. Teste rápido para esquistossomose positivo. A ultrassonografia apontou hepatoesplenomegalia importante, pontos de fibrose hepática com espessamento periportal e sinais de hipertensão portal. Presença de líquido livre em espaço peri hepático.

Durante o processo diagnóstico evoluiu com queda do estado geral ficando em coma por 8 dias. A paciente recebeu diagnóstico de Esquistossomose hepatoesplênica descompensada cursando com Encefalopatia Hepática. Diante do tratamento adequado, apresentou boa evolução, mas com danos hepáticos irreversíveis sendo analisada a necessidade de transplante hepático.  

Questões para orientar a discussão           

  1. Como a esquistossomose pode gerar um quadro de encefalopatia? 
  2. Quais os possíveis diagnósticos diferenciais para o caso apresentado?
  3. Quais são as medidas de controle para a doença? 
  4. Quais outras complicações a paciente pode apresentar?
  5. Qual o tratamento da patologia em questão? 

Respostas

1) Sabe-se que um dos eventos patogênicos da esquistossomose é a formação do granuloma hepático e a fibrose hepática periportal. O granuloma explica a manifestação da doença, acentuando a hipertensão portal, a forma pseudotumoral, a neurológica e a vásculo-pulmonar. Em uma situação normal as bactérias entéricas transformam as proteínas em amônia que são absorvidas pelos vasos entéricos. Como o fígado está incapaz de eliminar a amônia, devido ao acometimento da função renal, observa-se uma elevação de sua taxa, provocando encefalopatias. 

2) Os diagnósticos diferenciais para Esquistossomose crônica podem ser: cirrose hepática, colangite, coledocolitíase, etilismo crônico, cirrose biliar primária, tumor hepático, tumor de vias biliares, pancreatite biliar (por conta do álcool), tumor de cabeça de pâncreas, além de outras doenças do aparelho digestivo, que cursam com hepatoesplenomegalia, como calazar, leucemia, linfomas, hepatoma, salmonelose prolongada, forma hiperreativa da malária. Além disso, outras parasitoses intestinais podem cursar com sintomatologia semelhante.

3) As medidas de controle incluem a quimioterapia de portadores, o controle do hospedeiro intermediário, a redução da contaminação da água ou do contato com a água contaminada, modificação das condições de vida das populações expostas por meio de saneamento básico e educação em saúde, com medidas básicas de higiene. 

4) Como possíveis complicações, pode-se anexar o quadro de fibrose hepática, hipertensão portal, insuficiência hepática severa, hemorragia digestiva, cor pulmonale, glomerulonefrite, síndrome hepatorrenal, falência de múltiplos órgãos, distúrbio metabólico e do equilíbrio ácido básico, além de hipoproteinemia e anasarca. Ademais, podem ocorrer associações com infecções bacterianas, como salmonelas, estafilococos e virais, como hepatites B e C. Pode haver comprometimento do sistema nervoso central e de outros órgãos secundários ao depósito ectópico de ovos.

5) O medicamento de escolha para erradicação do parasita é o Praziquantel, que possui atividade anti-helmíntica. A Organização Mundial de Saúde preconiza uma dose única de 40 mg/kg de peso para pacientes de todas as idades e para todas as espécies de Schistosoma, com reforço após 2 a 4 semanas, pois o medicamento não atinge as formas imaturas do parasita. No Brasil, atualmente o tratamento é realizado com uma dose única de Praziquantel 600mg, via oral, sendo 50 mg/kg de peso para adultos e 60 mg/kg de peso em crianças. A segunda escolha no Brasil é a Oxamniquina. Além disso, para encefalopatia hepática, visando reduzir a quantidade de amônia e toxinas bacterianas que chega ao encéfalo, recomenda-se suplementação de aminoácidos de cadeia ramificada, lactulose e antibioticoterapia com uso de neomicina, tendo como segunda opção metronidazol.