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Caso clínico – Esquizofrenia se manifesta após episódio traumático e associada ao abuso de álcool | Colunistas

Caso clínico – Esquizofrenia se manifesta após episódio traumático e associada ao abuso de álcool | Colunistas

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A esquizofrenia é uma desordem psiquiátrica crônica de bastante recorrência nos serviços de psiquiatria e que se caracteriza por episódios de psicose com alterações sensoperceptivas, como alucinações, desordem nos pensamentos e no julgamento da realidade, alteração nas emoções, afeto, cognição e comportamentos, sendo esses intercalados por períodos de abrandamento.

Pesquisas atuais mostram que a prevalência média mundial é de, aproximadamente, 1% da população, sendo a esquizofrenia a 10ª causa mais comum de incapacidade em adultos jovens em todo o mundo.1 Sua incidência ocorre normalmente do final da adolescência até em torno dos 30 anos, sendo raros as manifestações antes da adolescência. Além disso, há discreta predominância no sexo masculino.

A doença foi descrita já no século XIX por Benedict Morel (1809-1873), mas, a princípio, foi entendida como um quadro de demência precoce, já que era manifestada em adultos jovens e adolescentes. No final desse século, Emil Kraepelin, considerado o pai da psiquiatria moderna, diferenciou a então denominada “demência precoce” de outro quadro psicótico também comum nos adultos jovens, o Transtorno Bipolar, que diferente da “demência precoce”, não apresentava comprometimento cognitivo. E, somente no início do século XX, o psiquiatra Eugen Bleuer renomeou o quadro como esquizofrenia (“cisão da mente”).2

Com isso, o presente relato visa descrever um caso clínico relevante de um paciente com esquizofrenia manifestada após episódio traumático, associado ao abuso de álcool acompanhado pelo Centro de Apoio Psicossocial – Adulto de Votorantim – SP.

Caso clínico

Trata – se do paciente F.J.V., sexo masculino, 31 anos, branco, solteiro, natural e procedente de Votorantim – SP, ensino médio completo e curso técnico em informática, desempregado atualmente, mas já atuou em linha de produção de empresa de bebidas gaseificadas e em manutenção.

Dentre os antecedentes pessoais, apresentou histórico de etilismo por, em média, 12 anos, tendo iniciado após episódio traumático de suicídio por enforcamento de um dos irmãos presenciado pelo paciente. Na mesma época, foi diagnosticado com quadro de esquizofrenia (CID 10 – F20), segundo consta em prontuário e fora relatado pelo acompanhante. Por esses motivos, foi acompanhado no Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS – AD) de Votorantim por 3 anos e 6 meses. Não foi relatado nenhum acompanhamento médico prévio.

O paciente é acompanhado no Centro de Atenção Psicossocial – Adulto, atualmente, pelo quadro de esquizofrenia, tendo sido encaminhado pelo CAPS – AD há 2 meses, segundo consta em prontuário, uma vez que refere ter cessado o consumo de álcool.

O acompanhante relata que os primeiros sinais surgiram quando o paciente tinha 19 anos e consistiam em episódios de inquietação nos quais o paciente saia de casa para andar e andava rápido por quilômetros, além de apresentar nervosismo e heteroagressividade.

Relatou ainda que, na mesma época, iniciou episódios de alucinações auditivas com vozes desconhecidas e que não diziam nada claro, apenas ruídos. Também referiu alucinações visuais com a presença de vultos que estavam sempre ao seu entorno e cruzando seus caminhos.

Por fim, pai refere notável perda da autonomia para atividades de vida diária do paciente desde o início dos sintomas, inclusive para ir ao banho e alimentar – se, pois não procura comida espontaneamente.

Ao exame psíquico, paciente apresentou – se com postura passiva, atitude retraída, autocuidado preservado, manteve pouco contato visual, vígil, atenção globalmente reduzida, orientação auto e alopsíquica preservada, sensopercepção sem alterações no momento da consulta, memória remota preservada, imediata e recente não avaliadas, hipotímico, com embotamento afetivo, hipobúlico, lentificação na psicomotricidade com deambulação encurvada, pensamento vago, lentificado e de conteúdo pobre, ausência de delírios durante entrevista, linguagem pouco produtiva e em tom bem baixo, com aumento no tempo de resposta às perguntas, hipovalorização do eu. Inteligência não avaliada. Crítica prejudicada.

Como condutas, paciente com prescrição de Risperidona na dosagem de 2 mg/dia atualmente e com controle dos sintomas positivos apresentados, segundo pai. Inserido também nos grupos de terapia ocupacional do CAPS Adulto.

Etiologia e fisiopatologia da esquizofrenia

A etiologia é atualmente relacionada com a predisposição genética, sendo que o risco de desenvolvimento da doença pode ser até 10 vezes maior em familiares de primeiro grau de indivíduos com esquizofrenia, se comparados a casos controle sem história familiar.

Além disso, acredita – se na influência neuroendócrina com alterações bioquímicas, dentre elas, as mais importantes são: a liberação excessiva de dopamina, principalmente nas vias dopaminérgicas mesolímbicas, relacionadas às sensações de prazer e estimulação e responsáveis pelos sintomas positivos da esquizofrenia – alucinações, delírios, agitação psicomotora, desordem no comportamento e pensamentos. Também já foram descritos a presença de quantidades elevadas de serotonina nessas regiões e aumento nos receptores D2 no núcleo caudado de pacientes com esquizofrenia livres de medicamentos.3

Já os sintomas negativos presentes – embotamento afetivo, pobreza no discurso, retraimento social, apragmatismo e prejuízo cognitivo –, estão mais relacionados a alterações nas vias dopaminérgicas mesocorticais,3 ao que se sabe.

Quadro clínico da esquizofrenia

Não há marcadores atualmente que possam prever o início da doença em indivíduos já predispostos. No entanto, nota – se que a esquizofrenia geralmente tem seu início ao final da adolescência e início da idade adulta, como no caso aqui relatado com início dos sintomas aos 19 anos.

Sua apresentação inicial, em geral, é insidiosa com um pródromo antes do primeiro episódio psicótico, cursando com predomínio dos sintomas negativos: humor depressivo, isolamento social, comportamento inadequado, negligência com a aparência pessoal e higiene. No entanto, menos comumente, podem haver também quadros abruptos como parece ter ocorrido no caso de F.J.V., após um possível gatilho traumático.

Após o pródromo, há a fase ativa da doença em que são predominantes os sintomas positivos. Há psicose com delírios, alucinações, sendo as auditivas mais comuns se comparadas às visuais, e desorganização comportamental. Com a diminuição desses sintomas, há o início da fase residual em que há, novamente, maior manifestação dos sintomas negativos, como anedonia, embotamento afetivo, empobrecimento do discurso e autonegligência.

Abuso de álcool e esquizofrenia

Ainda nesse contexto, há estudos atuais que associam o uso de álcool com a antecipação do quadro esquizofrênico4, o que é uma outra hipótese possível para o caso descrito, uma vez que os primeiros sintomas positivos surgiram após o abuso da substância pelo o que se pode inferir da anamnese realizada.

O abuso de álcool foi notado como recorrente entre pacientes esquizofrênicos, assim como o tabaco, estudos apontaram uma prevalência ao longo da vida de 40% entre esses pacientes.2 Além do possível efeito antecipador do quadro de esquizofrenia já discutido, o álcool tem ainda potencial de exacerbar os sintomas psicóticos e agressividade e, por isso, aumentar os episódios de internação, reduzir a adesão ao tratamento e potencializar os déficits cognitivos.4

Outro ponto que merece atenção é a elevação das ideações e tentativas de suicídio; pacientes em abuso de substâncias merecem uma investigação e cuidado integral quanto ao risco de suicídio.

Diagnóstico

O diagnóstico de esquizofrenia é totalmente clínico, com base na história do paciente e exame psíquico, não há exames laboratoriais para confirmar esse transtorno. Além disso, não há sinais ou sintomas patognomônicos da doença, muitos dos sintomas também estão presentes em outros quadros psicóticos.

Segundo o DSM V5, os critérios diagnósticos são, no mínimo, 1 mês de pelo menos 2 sintomas: alucinações, delírios, discurso desorganizado, comportamento grosseiramente desorganizado ou catatônico ou sintomas negativos, como embotamento afetivo e retraimento social. Sendo que, pelo menos 1 deles deve ser um sintoma positivo (alucinação, delírio ou discurso desorganizado) para fechar diagnóstico.

Além disso, é preciso prejuízo notório na atividade profissional ou nas relações interpessoais ou no autocuidado e imprescindível descartar episódios de mania e efeito de substâncias psicoativas.

Tratamento

O tratamento deste transtorno deve ser feito com associação entre medidas não medicamentosas e o uso de antipsicóticos6. A terapia ocupacional e a cognitivo – comportamental são as principais intervenções psicossociais com efeito positivo no tratamento da esquizofrenia e têm como objetivo promover maior autonomia aos pacientes, assim como reabilitá – los para a vida em sociedade.

No tratamento farmacológico, há discussões sobre o uso de antipsicóticos típicos ou atípicos e os protocolos diferem entre si. Em alguns casos, os atípicos podem ser a primeira escolha, já que possuem menos efeitos colaterais e menos sintomas extrapiramidais que os típicos. Eles agem como antagonistas dopaminérgicos e, por isso, atuam nos sintomas positivos. A Risperidona, prescrita ao paciente, é amplamente utilizado, mas a escolha deve basear – se na história clínica do paciente e no conhecimento dos efeitos colaterais de cada uma das drogas disponíveis. Em surtos psicóticos e situações de emergência e risco, como agitação psicomotora e agressividade, a internação pode ser considerada.

O acompanhamento dos pacientes esquizofrênicos dentro do Sistema Único de Saúde, devido ao seu quadro complexo, é realizado pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), parte da Rede de Atenção Psicossocial formulada pelo Ministério da Saúde no contexto da reforma psiquiátrica. Esses centros possuem equipe de apoio multidisciplinar que visa uma atenção integral ao paciente em sofrimento mental que chega ao serviço tanto por demanda espontânea, quanto referenciado de outro serviço de saúde.

Prognóstico

Por fim, pensando no prognóstico da doença, é importante lembrar que o curso da esquizofrenia é composto de exacerbações e remissões e que a cada nova recaída psicóticas há maior deterioração do funcionamento do paciente.

Com isso, estima – se que 40% dos pacientes vão apresentar comprometimentos por toda a vida e, em torno de 30% dos casos, apresentam remissão do quadro com o uso de antipsicótico7. E vale ressaltar a importância da investigação contínua da ideação suicida e a prevenção de surtos no acompanhamento desses pacientes, já que o suicídio é uma das principais causas de morte entre os pessoas com esquizofrenia, sendo ele responsável por até 30% dos óbitos.

Autora: Rafaelly Castro Rocha – Acadêmica de Medicina da PUC-SP Instagram: @rafiicastro


O texto é de total responsabilidade do autor e não representa a visão da sanar sobre o assunto.

Observação: material produzido durante vigência do Programa de colunistas Sanar junto com estudantes de medicina e ligas acadêmicas de todo Brasil. A iniciativa foi descontinuada em junho de 2022, mas a Sanar decidiu preservar todo o histórico e trabalho realizado por reconhecer o esforço empenhado pelos participantes e o valor do conteúdo produzido. Eventualmente, esses materiais podem passar por atualização.

Novidade: temos colunas sendo produzidas por Experts da Sanar, médicos conceituados em suas áreas de atuação e coordenadores da Sanar Pós.


Referências

  1. Marder, SR MD; Cannon, TD PhD. “Schizophrenia”, N Engl J Med 2019;381:1753-61. 2019.
  2. KAPLAN, HI. & SADOCK, B. Compêndio de Psiquiatria. 9ª edição. Porto Alegre: Artes Médicas, 2007
  3. Lieberman, JA M.D.; First, MB M.D. “Psychotic Disorders”, N Engl J Med 2018;379:270-80. 2018.
  4. Silveira JLF, Oliveira RL, Viola BM, Silva TM, Machado RM. Esquizofrenia e o uso de álcool e outras drogas: perfil epidemiológico. Rev Rene. 2014 maio-jun; 15(3):436-46.
  5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V). American Psychiatric Association. 2014.
  6. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas em esquizofrenia. Portaria SAS/MS nº 364, de 9 de abril de 2013. Disponível em: https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2014/abril/02/pcdt-esquizofrenia-livro-2013.pdf Acessado em 18/11/20.
  7. Elkis Hélio, Louza Mário Rodrigues. Novos antipsicóticos para o tratamento da esquizofrenia. Rev. psiquiatr. clín.  [Internet]. 2007 [cited 2020 Nov 19]; 34(Suppl 2): 193-197.

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